Tempos difíceis, uma nova escola e a primeira relação com o dinheiro....
O primeiro dia de aulas foi vivido com o orgulho e a curiosidade de ter iniciado mais uma etapa da vida escolar. Nem por um momento sequer me lamentava de não ter enveredado pelo ensino liceal. Meus país também não, a impossibilidade de levar longe os estudos retirava do seu pensar outra hipótese que não fosse aquela. A escola, pela distancia, obrigava a transportes. Eléctrico ou autocarro, sendo este, embora mais caro, mais recomendável pois a carreira era de porta a porta. O uso do eléctrico, não só era mais demorado, como obrigava a caminhada, não longa mas considerada por minha mãe penosa, de subida da calçada, da Rua do Grilo até à Estrada de Marvila. Minha mãe queixava-se, naquele ano, serem as despesas com a escola mais do dobro do que fora no ano anterior não aumentado o magro salário de meu pai na mesma porporção, nem eram maiores as gorjetas recebidas, por cada "freguês" transportado no taxi que não era seu . O senhor Cunha, que partilhava o espaço da sua loja com a mulher, florista, sendo o seu negócio o aluguer de todo o tipo de livros de histórias e romances, aproveitava esse período para vender livros e material escolar, explicava que era o facto de haver menor número de alunos naquele tipo de ensino - o industrial - o que encarecia o preço dos livros. Mas minha mãe não se referia apenas a isso, mas ao custo dos transportes e a outros. É que, se não era necessária a bata, passou a ser exigido um fato, um fato-de-macaco, para usar nas oficinas de serralharia mecânica, disciplina considerada nuclear tal como o desenho de máquinas, a física e a matemática. Foi na agora quase arruinada Rua dos Fanqueiros, no "armazém dos mal encarados" , assim alcunhado o estabelecimento por minha avô, sua grande cliente, por todos os que atendiam os clientes o fazerem sem dizer mais do que o estritamente necessário à compra e sem um sorriso, mas com muita paciência na escolha do tipo de tecido ou no padrão da fazenda. A compreensão de ter agravado o orçamento tornou-me mais responsável, mas, ainda assim, disponível para a prática de algumas, pequenas, intrujices como inventar um horário para possibilitar a deslocação a pé embolsando o dinheiro dos transportes para ser gasto em práticas poucos recomendáveis. A atracção era o do "jogo do virinhas" e outros, de regras inventadas por sabidos para sacarem as poupanças dos caloiros e os viciarem na batota. Não prolonguei por muito tempo tal prática, valendo-me a auto-censura e outros atractivos onde gastar algumas poucas moedas por mim poupadas. Se minha mãe me dava o dinheiro para os transportes e eu o gastava noutras coisas, só mais tarde veio a ser questão, até por sentir que trair a confiança depositada em mim, tornava me incomoda a mentira. Antes de me questionar sobre isso surgiu a necessidade de o gastar mais bem gasto... Assim, a minha primeira (e tardia) relação com o dinheiro, teria catorze anos, não é grande motivo de orgulho, mas sinto que faz sentido recordar isso...
Continua
É engraçado como a relação inicial que tivemos com o dinheiro nos ficou presente. Porque era quase considerado sagrado porque possibilitava a compra dos alimentos.
ResponderEliminarHoje já não é assim. Parece um dado adquirido, os miúdos irem a um café com os pais e terem de consumir; irem ao supermercado e terem de ter um prémio.
Relativamente ao assunto do post, também me lembro de, quando entrei para o 1º ano do Liceu, juntar todos os tostões (e eram mesmo) para logo que tinha a quantia poder comer, no intervalo, um "fresquinho gelado" como apregoava o vendedor.
À distância, ainda salivo. Mas eram uma verdadeira porcaria. Um misto de gelo e creme, encarrapitado no cimo de um cone. O vendedor andava pelas ruas com uma caixa de lata, que rolava sobre duas rodas e berrava " fresquinho gelado". Sabiam bem e melhor porque ouvíamos, em casa, referências à pouca higiene que teriam aqueles gelados.
Apesar de tudo, agora até ia um "fresquinho gelado"... daqueles!!!
Beijo
Agora com os cartões que inventaram nas Escolas Secundárias, os jovens cada vez mais tarde lidam com o dinheiro na sua forma palpável... quer dizer, não o vêm a diminuir... a acabar... não fazem contas de cabeça, não sabem fazer trocos simples e são muitas vezes enganados em compras básicas... sempre achei um disparate estes cartões de pagamento nas escolas, assim como o não puder sair da escola... mas isso já me levava longe. Também andei numa Escola Industrial e Comercial por falta de espaço no Liceu na altura e foram os melhores anos de Liceu!! Os alunos de electricidade, de mecânica e as de costura e contabilidade, misturavam-se connosco do ensino regular e o ambiente era mesmo especial, coisa que hoje não acontece entre os alunos dos diversos cursos, completamente segregados...Admiro a sua memória Rogério!! Também ia um gelado de cone, rrsss (morango e baunilha sff!) :)
ResponderEliminarVenho só falar ma memória. Não é grande. Pequenos pecados e um caso ou outro estilo "o primeiro dia". Mas... querem acreditar que ando aqui às voltas e não consigo reconstituir o "jodo do virinhas"? Lembro apenas que eram com cromos da bola... Se me lembrar conto. Se alguém souber venha contar. Vale?
ResponderEliminarRogério
ResponderEliminarNós tínhamos um que era com os invólucros das pastilhas. Bafejávamos a mão e tentávamos virar para o verso o tal invólucro. Ao consegui-lo, ficávamos com ele.
Sei que não é este, mas lembrei-me.
Beijo
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarTemos mais uma narrativa que promete, que bem que me sabe ouvir falar dos tempos da escola.
ResponderEliminarAmigo Rogério, há hipotéticas afinidades entre as nossas adolescências.
O facto parece-me normal, afinal somos da mesma geração.
Por imposição do meu pai, fiz o Curso Geral do Comércio e na Escola Industrial e Comercial António Sérgio.
O meu namorado na altura, o Jorge Figueiredo, estava no Industrial e eu e os meus dois irmãos rapazes, no Comercial.
Odeio matemática, cálculo e álgebra, para não falar em Contabilidade, mas fiz o Curso e mal terminei fui logo trabalhar.
Ele abriu-me as portas ao mundo e à continuação dos estudos do que sempre mais gostei. Línguas.
Creio que todos nós tivemos também uma incursão na gestão da nossa mesada de alguma forma idêntica !!!
Não creio que tenha sido crime, mas muito mais uma aprendizagem.
Espero ser capaz de te acompanhar neste conto.
Se não vier, lembra-me, por favor.
Beijinho
Ná
O meu irmão, às vezes, mandava-me pedir dinheiro à avó para uma cartolina de que eu não precisava. Agora é que vejo para que ele queria o dinheiro!...
ResponderEliminarAinda bem que eu contava tudo ao ouvido da avó. Ele levava dois "tabefes" e, durante uns dias, eu era a "queixinhas".
Um beijo
Interessante este seu texto.
ResponderEliminarGostei. Tentarei segui-lo.
Um abraço/Irene
gostei do texto ,vou aguardar o próximo,,,
ResponderEliminarBeijo amigo,,,
Embora não comentando vou seguindo atentamente a sua escrita e...
ResponderEliminarque a mão não lhe doa.
Bem Haja!
Nunca tivemos assim dinheiro vivo nas mãos. Era tudo contado, pesado e medido.
ResponderEliminarO meu irmão mais velho aprendeu a vir de boleia para casa. Eram dez quilómetros e foi um perigo. Felizmente tudo acabou bem.
Um tempo que não volta mais.
Memórias delicadas, obrigada por compartilha-las.
ResponderEliminarbjs
Jussara
memórias vivas. que se apaguem... para memória futura!
ResponderEliminarabraços
Fico a aguardar a continuação da crónica. Sempre interessantes e ricss essas recordações.
ResponderEliminarOla ainda aqui a aproveitar o sol e a trabalhar arduamente para o bronze, vim aqui espreitar os blogs.
ResponderEliminarPor acaso ainda me lembro do meu 1 contacto com dinheiro , e da semsacao de independencia e de liberdade, que ate agora gosto de sentir.
O maior problem do dinheiro e que a liberdade como tudo o que bom, de certa maneira nos prende.
Bjinhos
Paula
paula.rodrigu3s@gmail.com
Muito lindo este texto. Foram tempos difíceis: felizes os que como o Rogério (e eu e alguns outros) pode/pudemos ter acesso à escola.
ResponderEliminarBeijinhos
Olá Rogério!
ResponderEliminarVim parar a este blog ao procurar na net por "Antigos alunos da Escola Industrial Afonso Domingues". Também eu andei nesta escola, tendo terminado o curso de montador electricista em 1965 e tendo também transitado da Nuno Gonçalves. Quem não se lembra do BB (Belarmino Barata, professor de português com um 2CV)? Também eu utilizava o eléctrico ou o autocarro (18 ou 42) e muitas vezes, pelos mesmos motivos, fazia o regresso a pé (morava no Saldanha). Eram tempos difíceis, mas quem me dera voltar a eles.
Vou tentar seguir o blog, sempre que me lembre.
Um abraço.
João Morgado
A primeira relação com o dinheiro fica marcada para aqueles que com ele não tinham relação... aqueles que sabiam que não abundava e que nada aparecia do céu...
ResponderEliminarHoje, mesmo nos meios um pouco mais humildes, os esforços dos pais não me parecem entrar na consciência da primeira relação (com o dinheiro) tão só quando começam a trabalhar, porque aí, grande parte destinada ao salário mínimo acaba por se perguntar se vale a pena ir trabalhar por aquele valor...
Foi um regresso ao passado, não o meu, mas que dou de facto muito valor.
Abraço