02 julho, 2012

Geração sentada, conversando na esplanada - 6 (geração Wikipedia)

“Justificar tragédias como "vontade divina" tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas.”
“As pessoas nascem sempre sob o signo errado, e estar no mundo de forma digna significa corrigir dia a dia o próprio horóscopo.”
Umberto Eco (aqui)

A Ana afastou-se do silêncio que havia na sua mesa, talvez para evitar rompe-lo 

Nunca a esplanada estivera tão sossegada. A Teresa olhava para nada, a Gaby, com a agilidade que lhe era gabada, dedilhava no teclado funções e letras formando palavras em múltiplas sessões do facebook, abertas nas páginas das amigas predilectas e a Rita folheava uma revista. A Ana afastou-se do silêncio que havia na mesa, talvez para evitar rompe-lo. Estava também operando o  computador, um note-book de muito bom aspecto. O senhor engenheiro e o seu cão rafeiro não tinham ainda chegado e sua mesa estava vazia, como há muito não acontecia. Calmamente eu lia o jornal.
- "Olá menina, posso sentar-me ao seu lado?" A Ana sem responder deslocou-se abandonando o centro do banco de jardim, quase de costas para mim. O velho que chegara, sentou-se no espaço deixado, e esse eu mal via. Contudo sua voz, límpida como se saísse de um corpo jovem, era nítida.
- "O que está fazendo?" A Ana não pareceu incomodada por ser interrompida. 
- "Estou a fazer um trabalho para a cadeira de Filosofia..."
- "E gosta de Filosofia?"
- "Nem por isso, mas faz parte do curso..."
- "Mas, então... gosta do curso e tem pena do curso a obrigar a estudar Filosofia?"
- "Para lhe falar a verdade, preferia Medicina."
- "Gostava então mais de Medicina?"
- "Não se trata de gostar, mas de poder seguir uma boa carreira... há muitos médicos na família"
- "Ah!", o velho calou-se um bom bocado e depois voltou a interromper "É difícil , isso?"
- "Não, não dá trabalho nenhum... a Wikipédia tem tudo... é fazer copy past, e pronto!"
- "Nem é preciso... matar a cabeça a pensar?"
- "Bom... sempre é... um bocadinho... é preciso saber escolher a palavra certa no motor de busca... e depois colar no texto, segundo a lógica que pretendo ou aquela que for saindo..."
- "Nem precisa, a menina, escrever nada?
- "Quase nada... a Wikipédia está muito melhorada... tem tudo. De certo modo estou contente. Se estivesse em Medicina, não podia ser assim... esse curso dá muito trabalho... este... assim, assim. O pior..."
- "O pior ?..." 
- "O pior é que ainda não sei se para o ano há dinheiro para pagar a matricula... meu pai está numa empresa à beira da falência... queira Deus, que tal não aconteça"
- "É pena, sendo tão fácil esse seu trabalho..." e dizendo isto levantou-se "Tive muito gosto. Como se chama a menina?"
- "Ana. E o senhor?"
- "Livre-arbítrio, à sua disposição!" - e no rosto, que agora dali via, assomou-se um sorriso que eu diria ser de ironia.Despediram-se. Ele, lentamente trôpego de velhice, lá se arrastou até desaparecer entre os arbustos e folhagens do jardim. Pensei na coincidência do nome e o dialogo estabelecido e pensei que o Livre-arbítrio lá vai sobrevivendo, embora bastante diminuído. Um dia destes, talvez a Ana descubra na Wikipédia a data em que tenha falecido...

13 comentários:

  1. O Ministério da Saúde adverte, buscas no Google afetam a memória!

    Adorei! Por aqui também há muita coisa que nos faz pensar.

    Estou saindo de férias. Se sumir (mais que o de costume rss) não se espante!

    Bjs

    ResponderEliminar
  2. Pois e sempre o livre-arbitrio batendo na cara da gente a gente finge que no viu rsrs
    bjs


    meu blog foi indicado , preciso de voto, se vc poder me ajudar te agradeço , e só entrar no blog e clicar no selo bjs

    ResponderEliminar
  3. Eco tem razão.

    Livre arbítrio existe, sim. Mas há quem recuse : é mais fácil atirar a responsabilidade para cima do Outro.

    Boa semana.

    ResponderEliminar
  4. Ainda não tinha ido à WiKipédia... e para ser franca, não a acho assim tão fiável como afirma a tua personagem, mas que dá muito jeito para os cabulões, dá!!!

    Comparo, de algum modo a Wipipédia ás traduções do Google ... sai sempre asneira da grossa.

    Já há mais de 20 anos que me deparo com gente licenciada com graves sintomas de iliteracia, porque será??? !!!

    Beijinho

    ResponderEliminar
  5. Meu querido amigo

    Infelizmente há muita gente fazendo isso, e depois vê-se o nível da maior parte dos nossos "doutores/as".
    Sem mais palavras, que o resultado é o que se sabe.

    Um beijinho
    Sonhadora

    ResponderEliminar
  6. Meu amigo:
    O Livre-arbítrio está sempre de mãos dadas com a liberdade, e acho que ambos estão tão esquecidos.
    Adorei esta sua frase:

    "A Ana afastou-se do silêncio que havia na mesa, talvez para evitar rompe-lo."

    Beijinhos

    ResponderEliminar
  7. Abri aqui e estou a ler a Homilia...
    Vou lá. Interessa-me o tema.
    Depois vou dormir que amanhã há festa.
    Beijinho

    ResponderEliminar
  8. Meu amigo, por este andar não precisamos pensar. É só escolher a palavra e ir ao computador. Será que qualquer dia em medecina escreve-se a palavra e o dito cujo diz ao médico o que fazer? Isto para ele, não perder o tempo a pensar. Gostei do seu Livre- arbítrio. Beijos com carinho

    ResponderEliminar
  9. Uma realidade assustadora. Os jovens hoje têm tudo à disposição e fazem de tudo uma 'copy'.

    Salve-nos o livre-arbítrio dos que ainda podem e querem pensar...

    Beijo

    Laura

    ResponderEliminar
  10. O Humberto Eco deve ter lido João Calvino!
    Quanto à Wikipédia alinho pelo que aqui se disse....contém erros científicos graves além de contribuir para o facilitismo que caracteriza as gerações mais jovens atuais! Copy past e bora lá! Raciocínio, trabalho, empenho e dedicação - zero. Alguns chegam a ministros, para quê trabalhar....

    Abraço

    ResponderEliminar
  11. A uma hora destas, dou comigo a ir à Wikipédia e a ficar com imensa vontade de submeter o meu cérebro - para aproveitar, enquanto ele vai estando vivo... - à tal maquineta que mede o tempo que medeia entre a actividade subsconsciente e o acto de dar um piparote no próprio braço, só para pedir que me meçam o intervalo entre o momento em que me começo a sentir indisponível para quase tudo e aquele em que se dá o nascimento de um dos meus poemas... mas eu não me posso perder muito nestas pequenas auto-satisfações... rapidamente mandei Morfeu às urtigas, a curiosidade à fava e decidi que mais valia fazê-los do que passar o resto da vida a tentar perceber como e porque os faço. Nesta altura do campeonato tenho mesmo de fazer escolhas... são escolhas mais ou menos livres, eu sei, mas, a nível consciente, tão livres quanto uma escolha pode ser.
    Gostei muitíssimo deste post!
    Obrigada e um abraço!

    ResponderEliminar
  12. :)

    Aconselho vivamente as leituras de Umberto Eco. Sei que não são leituras fáceis, mas são sem dúvida alguma, excelentes leituras...

    Gostei bastante deste post! Vá-se lá saber porquê?!?!?!?!

    ResponderEliminar
  13. Como se fosse assim tão fácil ... enfim. infelizmente por suborno, pode-o ser, quem encha os bolsos a alguém ...
    beijinhos

    ResponderEliminar