27 outubro, 2013

Geração sentada, conversando na esplanada - 37 (o jornal já mal o leio)

(ler conversa anterior)
"...O pé não pode falhar porque não há pedra em todo o chão - noventa por cento do chão é água. Estamos pois perante a necessidade de ser certeiro, como quem atira a um alvo. De pedra em pedra o corpo, ele mesmo por inteiro, tenta, ora com um pé ora com o outro, acertar no único ponto próximo do mundo, vasto mundo, de onde não se cai, o único ponto que é chão firme (chão firme: aquilo que possibilita o passo seguinte). E assim se avança com a precisão que evita a queda e a energia que nos conduz, sem lentidão nem pressa, às clareiras sensatas que no mundo ainda há..."
Gonçalo M. Tavares, in Noticias Magazine
A mesma cor, alguns abafos de outono, mas a maioria gozava o sol. Eu mal enxergava a leitura...

Ainda é a rotina o que nos dá a impressão que as coisas vão bem como vão. A esplanada mantinha as mesmas cores, só que não nas mesmas vestes, nem em tons semelhantes às do domingo passado. As professoras, na mesa do canto, riam como de costume. Quando a rotina é quebrada por alguém, o efeito é imediato a avaliar pelo que acontecera:  o senhor engenheiro, comera todo o bolo e esquecera-se de o dividir com o seu cão rafeiro, que amuou, como nunca se tinha visto.
- "O que é que se passa consigo?" perguntou-me o engenheiro e sem esperar pela resposta, "li o que foi escrevendo e fiquei sempre em dúvida se o que escrevia tinha a ver com a sua saúde ou com tudo isto. Não pense que o acuso de ambiguidade, mas como escreve sempre com um segundo sentido..."
- "Já caminho sobre as pedras em equilíbrio, o meu problema agora é acertar nelas. Vê-las para manter o passo firme e conseguir dar o passo seguinte."
- "Tinha um problema de equilíbrio. E agora?... Não percebi! Apenas descortino que terá feito as pazes com o escritor... Mais uma boa metáfora?"
- "Não há qualquer metáfora. Agora tenho um problema de visão, no sentido exacto de não conseguir ver... "
O velho engenheiro, fez uma cara entristecida por entre as abundantes rugas do rosto.
- "Não se vá embora. Vou só ali, preciso fazer as pazes com o meu cão". Pouco tempo depois regressava com um novo bolo na mão, partiu-o ao meio e deu metade ao cão. A outra metade, ofereceu-ma e eu aceitei. Continuámos a conversa falando de cegueiras, de clareiras, de poetas, e na confiança que eu tenho no cirurgião. "A palavra e o bisturi devem fazer incisões exactas", disse ao despedir-me.

5 comentários:

  1. Belo "ensaio" sobre o equilíbrio da visão.

    ResponderEliminar
  2. Vivi a cena e identifiquei-me com esse caminhar sobre as pedras...

    ResponderEliminar

  3. Espreitei no outro canto... e fiquei a saber.
    Há de ler! Não digo reler porque o que se lê é , agora, muito mau.

    Beijinho

    Laura

    ResponderEliminar

  4. "Emprestar ao discurso, não a paixão apressada e fácil, mas a serenidade de quem há muito veio e não pensa partir tão cedo."
    Assim, a prosa de Eugénio.

    E não só...

    Um beijo



    ResponderEliminar
  5. Bom dia Rogério
    Gosto de te ler e ver se te equilibras nesses passos de pedra em pedra.
    É este saber escrever e metamorfosear que dá cor e vida aos teus escritos.
    Geralmente leio mas não comento pois tenho receio de não ter interpretado o pensamento do autor.
    Desculpa o meu silêncio e a ousadia de hoje.

    ResponderEliminar