03 fevereiro, 2021

A menina Amélia

 A dimensão da louça que há para lavar é um indicador muito significativo. Desde logo do esforço que dá a lavar, numa data, como é o caso, em que uma máquina de lavar era posse rara em qualquer família da classe média. Estou a falar em meados da década de sessenta, tinha a menina Amélia cerca de 15 anitos, quando entrou naquela casa e passou ela a lavar a louça.

Mas, como indicador significativo, a quantidade de louça a lavar também reflecte o nível económico da família, pois numa família pobre, a louça é pouca. Aquela família, da classe média, usava os pratos todos e era significativo o número de talheres que a menina Amélia tinha que levantar da mesa. Exactamente seis: o casal, o Manuel e a Judite; o pai desta, o avô Garcia; três filhos, o Alberto, a Teresa e a Paula, a mais nova, que a menina Amélia sempre tratou por Paulinha.

A casa, uma moradia de dois pisos, quatro quartos e duas salas, davam trabalho na proporção e não era pouco. Sempre a somar, importa falar do quintal, onde, ao lado do galinheiro, numa pequena casa onde num tradicional tanque era lavada roupa, que os bons preceitos de higiene, determinava que fosse muita. Essa era também tarefa da menina Amélia, talvez aquela em que perdesse mais tempo pois a Paulinha gostava de dar à língua e a menina Amélia partilhava esse mesmo gosto, perante a aceitação paciente da Judite, a dona da casa.

Mais ou menos por essa altura, o Alberto frequentava a Academia Militar mas a folga da menina Amélia, decorrente dessa ausência, foi sol de pouca dura. É que, talvez uns três meses depois, entrei eu em cena. Ao casar com a Teresa, passei a habitar a casa e uns meses mais tarde, não muitos, nasceu a nossa filha João. E poucos anos depois, nasceu a Sandra. A menina Amélia manteve-se ao serviço, este mais aligeirado pela racional distribuição de tarefas e também por a menina Amélia não se sentir a criada para todo o serviço. Ela fazia parte da família e como tal, assim era tratada. Todos partilhavam com ela os seus sorrisos e as mulheres até cumplicidades. Mulheres, já não meninas. Menina, menina, só a Amélia.

Os anos foram passando. Primeiro o avô Garcia, depois o dono da casa. A menina Amélia partilhou connosco as suas silenciosas lágrimas. Com a morte do Manuel, a Judite veio viver para Oeiras e a menina Amélia por cá aparecia, não como mera visita, mas para ajudar num mundo de coisas, nomeadamente lavar a louça.

Falecida a Judite, a Teresa manteve-a. Falecida a sua (nossa) Teresinha, eu mantive-a e partilhámos juntos a dor de tão sentida partida.

O acordo é vir dar a volta à casa, deixando-a limpa e arrumada, de quinze e em quinze dias. Na semana passada esteve cá. Troca de roupas de cama, aspirar, passar a ferro, lavar chão e janelas, uma formiguinha ágil e trabalhadeira numa azáfama que não pára até à despedida.

Sexta-feira, ligou-me consternada: "Senhor Rogério, fiz o teste ao Covid e deu positivo". Falámos mais um pouco para detalhe do como terá acontecido e depois disso temos vindo a ligar um ao outro. 

Estamos ambos bem!

PS: Este texto foi feito num ápice e terei de o rever mais tarde, talvez com a ajuda da menina Amélia e... com uma foto dela.

12 comentários:

  1. Graças a Deus que estão ambos bem. espero e desejo de todo o coração que assim continuem.
    Abraço

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    1. Obrigado pelo teu cuidado.
      Já passaram 10 dias... e estão aqui, são que nem um pêro

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  2. :) Fico muito, muito contente por ambos!

    Quanto ao texto, nem precisas de o rever; garanto-te que está perfeito. E a menina Amélia vai dizer o mesmo! :)

    Hoje faria anos a minha mãe... 93 faria, se não tivesse partido aos 76. Curiosamente, era ela a "menina Nelinha", para as empregadas da casa do Dafundo. O que tu me vieste lembrar...

    Abraço grande!

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    1. Maria João, não se trata de melhorar o texto mas sim de validar se a minha memória coincide com a dela. Caso não, emendo.
      Caso dê uma ideia, acrescento.

      Se te desencadeei as tuas memórias, parabenizo-me a mim no dia em que o não podemos fazer a ela...

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  3. A minha Inácia está comigo há 27 anos.
    No 1º confinamento eu estava em Lisboa e ela pôde vir à vontade tratar dos gatos, da casa e do jardim.
    No 2º confinamento mandei-a confinar também e só voltará quando esta coisa der algum sinal de melhoria.
    Está em casa sem perda de direitos, tal como eu.
    Que tudo continue a correr bem!

    Abraço

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    1. Também a podes considerar família.
      A menina Amélia, há 55 anos que zela pelo que é nosso e além dos direitos tem os afectos de três nossas gerações...

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  4. 55 anos? Maravilha!
    Rogério, não te preocupes pois o texto (delicioso) está óptimo!
    Saúde para a menina Amélia e para ti.
    Beijos.

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    1. Obrigado pelo elogio ao texto, mas tenho mesmo que confirmar algumas coisitas, nomeadamente a idade com que começou a trabalhar em casa da minha (tão) terna sogra...
      Falarei de ti e de todos os que me dão carinho. Ela gostará de saber disso, tenho a certeza!

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  5. Um texto que podia ser um início de um romance sobre uma família portuguesa. Comoveu-me 💦

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  6. Uma menina a vida inteira !
    Que ambos ponham depressa a casa em dia e que partilhem connosco essa alegria.
    O texto está perfeito, como é o seu jeito (:

    Beijinhos para ambos!

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