Chegada a Luanda de um Vera Cruz sobrelotado de militares, pouco menos que gente (os salva-vidas estavam lá só para fazer pirraça)
11 Dias de viagem, chegada ao porto de Luanda no dia da 1ª alunagem. Dia histórico para a humanidade e para mim. Viagem distraída, imersa na ocupação voluntária e preocupada em juntar todos os conhecimentos possíveis nas práticas de enfermagem e actos médicos, no posto de socorros de bordo, O convívio com sucessivas equipas de médicos militares dos Serviços de Saúde. Permitiram-me aprimorar algumas técnicas de aplicação de agrafos e de pequena cirurgia. Eu, tinha de encarar uma colocação que tanto podia ser assim como assado, mas que me confrontaria, sempre, com a minha quase que irrelevante preparação. De outras coisas, retenho as condições em que viajaram os soldados ao visitar pisos inferiores sob a proa do Vera Cruz. Maricas como era, emocionem-me. Eles… Eles teriam tido a pior viagem das suas vidas. Tratados a um nível abaixo de gente certamente que não estariam em condições ideais para grandes actos de heroísmo…
Estadia em Maquela do Zombo, sofrendo: Não era bem em Maquela mas a poucos quilómetros dessa vila, situada perto da fronteira do norte de Angola, que se situava o aquartelamento. Os primeiros meses foram de sofrimento (os seguintes também). Durante a rendição das unidades militares, houve alguma passagem de know how do estilo: “pouca confiança nesta gente” e registávamos mil ocorrências a comprovar os conselhos. Quanto a distracções? À pergunta sucedeu-se uma resposta longa, como quase sempre acontece quando se fazem perguntas estúpidas: “Dantes ainda se caçava alguma coisa de jeito. Hoje, se apanhares uma pacaça num mês, terás muita sorte. Contentem-se na caça ao “churrasco”(1), aí nas sanzalas (2). Mas nada de usar armas, os “secúlos” (3)não gostam e os sobas(4) costumam fazer queixa na sede do Batalhão. Se para nós militares a distracção tinha acabado para as populações locais esse recurso alimentar tinha-se esgotado há muitos anos. A guerra tinha dizimado todas as espécies animais em grandes áreas territoriais de Angola. Mas não foi isso que me levou a pensar que a situação não seria sustentável. Foi mais forte esse sentimento quando percebi que à passagem da nossa coluna militar os caminheiros, mulheres e crianças, afastavam-se da picada (5) e entravam capim dentro aí uns bons 10 metros, distancia considerada de segurança perante o risco de atropelamentos de ódio e vingança”. Foi igualmente forte quando, conferindo o material sanitário e o stock de medicamentos, dei conta de quantidades inusitadas de morfina. Que estaria aquilo ali a fazer? Quantos toxicodependentes saíram daqui ontem? Quantos andariam por aí, abastecidos pelos Serviços de Saúde do Exército?
Estadia em Maquela do Zombo, zombando – A partir de certa altura, foi o deboche (talvez a partir da altura em que passamos a cumprir efectivamente a missão e a ter de mandar grupos de combate para o terreno das operações). Diariamente, passavam na “instalação sonora” do aquartelamento todo o tipo de música entremeada com Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Padre Fanháis e outros… Os oficiais passaram a frequentar a messe de sargentos que passou a ser apelidada por Universidade Livre do Reino da Roça (6) lugar de culto ao livro, à conversa solta e ao whiskey (que eu bebia com uma bala de G3 dentro simulando, pelo tilintar, a pedra de gelo que nem sempre havia). Quando apareceu a ordem de transferência para a região do Andulo eu tinha uma certeza: a complacência nestes comportamentos era sinal de que todos, do comandante ao soldado, estavam ali por razões que nada tinham a ver com o discurso oficial do regime…
(continua)
Notas
- “churrasco”, todos os animais com penas, eram designados assim
- sanzalas, aldeamentos (no centro e no sul são designados por kimbos
- “secúlos”, os mais velhos oa quais detèm vários poderes
- sobas, autoridade representativa dos negros junto da administração colonial
- picada, caminho ou estrada de terra
- roça, fazenda normalmente com plantações de café
Fico esperando a continuação :)
ResponderEliminarLembro-me bem do 25 de Abril, andava no actual 11ºano, mas ainda só tinha 16 anitos.
Agora sabia da tristeza das minhas tias quando os meus primos iam para o Ultramar, isso era o pão nosso de cada dia, desde muito pequena.