28 janeiro, 2016

Vergilio Ferreira faria hoje 100 anos... Fê-los, e juro que até me comentou

Há tempos, anos atrás, já não lembro se dois se três, minha filha estendeu-me umas folhas fotocopiadas. "Lê, pai". Há tempo, há tanto que me não lembro quanto, talvez uns cinco anos que não lia nada dele. Li e ela ficou ali até que eu chegasse ao fim, o que deu para perceber que ela tinha feito uma descoberta que a comovera. Sem que lhe perguntasse nada avançou-me a resposta à pergunta que adivinhara: "Não é belo? Foi a professora de português do Miguel... e ele leu esse conto na aula e a turma em peso aplaudiu". Tinha quase decidido trazer para aqui o texto aplaudido, quando descubro outro. Decido-me por este, pois parece um comentário ao que ontem publiquei. 

Parece, ou será mesmo? Ao certo, não sei.

No Fundo Somos Bons Mas Abusam de Nós

O comum das gentes (de Portugal) que eu não chamo povo porque o nome foi estragado, o seu fundo comum é bom. Mas é exactamente porque é bom, que abusam dele. Os próprios vícios vêm da sua ingenuidade, que é onde a bondade também mergulha. Só que precisa sempre de lhe dizerem onde aplicá-la. Nós somos por instinto, com intermitências de consciência, com uma generosidade e delicadeza incontroláveis até ao ridículo, astutos, comunicáveis até ao dislate, corajosos até à temeridade, orgulhosos até à petulância, humildes até à subserviência e ao complexo de inferioridade. As nossas virtudes têm assim o seu lado negativo, ou seja, o seu vício. É o que normalmente se explora para o pitoresco, o ruralismo edificante, o sorriso superior. Toda a nossa literatura popular é disso que vive.
Mas, no fim de contas, que é que significa cultivarmos a nossa singularidade no limiar de uma «civilização planetária»? Que significa o regionalismo em face da rádio e da TV? O rasoiro que nivela a província é o que igualiza as nações. A anulação do indivíduo de facto é o nosso imediato horizonte. Estruturalismo, linguística, freudismo, comunismo, tecnocracia são faces da mesma realidade. Como no Egipto, na Grécia, na Idade Média, o indivíduo submerge-se no colectivo. A diferença é que esse colectivo é hoje o puro vazio.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 2'

16 comentários:

  1. O bonitinho, o rodriguinho de país. Tudo a terminar em "inho"! Muito nos deixamos espezinhar...

    (Dizer que Vergílio é extraordinário é pouco, muito pouco)

    Beijinhos, Rogério :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. " humildes até à subserviência e ao complexo de inferioridade." Vergílio dá-nos uma boa imagem do que somos... e nisso foi mais do que extraordinário!

      Eliminar
  2. O que faz de alguns escritores, grandes escritores é a intemporalidade das suas obras. A actualidade das suas ideias, das suas escritas. E é também através deles que temos a noção da estagnação do país.
    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É verdade... mas... nós também somos os escritores que temos (e tivemos)!

      Eliminar
  3. Gosto de ler Virgílio Ferreira pela beleza da sua escrita e pensamento claro e sempre actual.
    Não se perdeu a alma do POVO.
    Perderam-se as almas dos Políticos, Padres, Juízes, Banqueiros.../...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Luís,
      antes de escrever o seu artigo
      Vergílio deveria ter falado, primeiro, contigo

      Eliminar
  4. Além de escrever qual foi a sua contribuição cívica para melhorar um pouco esta triste realidade? Como muitos outros intelectuais limitou-se a observar e criticar; é fácil!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Cid,

      Sei que baixei a bitola do meu grau de exigência... mas no que se refere à participação cívica, ao compromisso político, ao efeito catalisador para a mudança, ao semear da esperança, é fraco o panorama dado pelos homens da escrita... Vergílio caracterizou bem uma realidade da qual guardou distância cautelosa.
      Aceitemos que a culpa não será tanto dele mas muito mais nossa!

      Eliminar
  5. Os 'intelectuais' guardam sempre "distância cautelosa" para não se comprometerem, por cobardia.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Poucos, muito poucos, fazem intervenção cívica. E menos ainda tomam partido...

      Eliminar
  6. Enquanto o comboio passa ficam alguns nos belos apeadeiros

    ResponderEliminar
  7. Passaram mesmo 100 anos ?

    Um beijinho e bom fim de semana amigo Rogério

    ResponderEliminar
  8. A intervenção também passa - e muito - pela escrita. Ou pela canção. Ou pela pintura. Pela Arte no todo. E nisso VF foi exímio!!

    Gostei do excerto escolhido.

    Bom fim de semana!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Gostar, gostar, gosto mais da "Estrela" (as folhas fotocopiadas que maravilharam a minha filha) mas este texto dá mais o tipo do descomprometido de que fala o Cid... e, nisso, também VF foi exímio

      Eliminar