Troco o meu pano azul por um chá de menta, disse o viajante. Sacudiu a água das sandálias, passou os dedos pelos cabelos e sentou-se no primeiro degrau da escada. Era um ser pequenino, talvez uns doze centímetros de altura, moreno do sol, o véu azul e a túnica branca. Eu andava por ali a apanhar chuva e apesar de não ser muito habitual uma proposta destas, não estranhei. Na minha rua, os cães conhecem-nos pelo nome, os gaios roubam-nos os frutos e os melros conversam connosco de manhã. O carteiro não entrega as cartas, os jardineiros conduzem comboios pela noite dentro e aparecem estremunhados quando faz sol. O mar sobe uns metros a cada maré alta, mas desertos nunca vi.
Tens os pés molhados, disse eu estupidamente e acrescentei, posso fazer-te um chá preto ou de limão ou de erva-príncipe. Ele olhou-me de baixo para cima e eu senti-me envergonhada e alta, que é um sentimento que me acompanha quase todos os dias. Peguei nele, meti-o no bolso com a cabeça e os braços de fora e andei pelos canteiros até encontrar os pés de hortelã.
Convidei-o a entrar. Na cozinha fervemos água e por esta ordem, ele exigiu um bule de prata com um bico longo, açúcar mascavado em abundância, um copo de vidro e dez folhas de menta. Admirei-lhe a perícia e enquanto ele bebia o seu chá, eu bebia o meu, preto e sem açúcar. Coloquei mais lenha na lareira e ele sentou-se no chão sobre o tapete, as sandálias e o pano azul a secar e assim aquecido e confortável, soltou-se e começou a falar. Dos ventos quentes do deserto, das tempestades de areia, do azul-índigo dos panos e de como, sem ele saber porquê, uma corrente contrária o tinha envolvido, enrolado e feito perder.
E saberás regressar? perguntei. Claro, respondeu, logo que tiver os pés quentes e a roupa seca, encontro o caminho de volta. Deixo-te o pano azul, acrescentou.
Não quero o teu pano azul, faz-te falta para tapar o rosto, respondi. Porque és tão pequeno? acrescentei. Porque és tão grande? respondeu.
E deitando a cabeça sobre o braço direito, adormeceu. Silenciosamente fui buscar um lápis e um bloco e esbocei o viajante, o pano, as sandálias e a túnica. A monotonia da chuva, o calor da lareira e o ligeiro roncar daquele ser magnífico fizeram-me adormecer também.
Uns minutos ou muitas horas depois, acordei, e ele tinha partido. Sobre as folhas de hortelã, um anel de prata.
Nunca mais o vi e lembro-me dele quando chove e quando faz vento, quando sacudo a areia das botas e quando o céu se azula ao amanhecer. Não lamento não o ter fotografado, porque qualquer imagem não lhe faria justiça, como as linhas que tracei dele.
E nos dias cinzentos, ponho o anel de prata no dedo médio da mão esquerda para que os deuses não me abandonem.
Manuela Baptista
18 março, 2018
Um conto ao Domingo - VII (tirado de "Histórias com mar ao fundo")
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Belo conto de Domingo!
ResponderEliminarUm abraço para ti e outro para a autora.
A autora é minha irmã
EliminarSerá, então, minha também :)
Eliminare de segunda-feira também :)
ResponderEliminarum abraço, Rogério
Um conto, para ser mesmo um conto, deve e tem de ser contado com a magia e o encanto que este conto tem. Adorei!
ResponderEliminarParabéns à autora que tão bem escreve.
Ela anda por aí,
Eliminare vai gostar que tivesses adorado
Não é a primeira vez que leio contos da Manuela Baptista e todos me tem encantado. Há muita poesia na sua escrita.
ResponderEliminarAbraço
Os contos dela são para serem lidos em voz alta...
Eliminar... e se alguém estiver em redor,
soa ainda melhor