28 fevereiro, 2019

Mário de Carvalho e o perigo da «reactivação do nazismo»


Andava eu naquela labuta conhecida da procura da notícia, para a candonga costumada, trazendo para este meu espaço textos que outros vão escrevendo, quando tropeço no título "Não se deve perder de vista um mundo mais justo e solidário" e onde o escritor alerta para as «tremendas transformações» que o mundo está a sofrer, em que se assiste à recuperação de pontos de vista que se pensavam «completamente ultrapassados».

Trata-se, como pode (e deve) ler aqui, de um enquadramento a um anúncio querido (mais um livro). Para além de ter eu encontrado este modo em divulgá-lo e porque às tantas ele refere ter sido criado numa família de ideais republicanos, que nunca o quis ver vestido, quando aluno do Liceu Gil Vicente, em Lisboa, com a farda da Mocidade Portuguesa, organização juvenil da ditadura de Salazar, de pronto me ocorreu aquele outro texto seu, por mim aqui citado:
Eu nunca fui obrigado a fazer a saudação fascista aos «meus superiores». Eu nunca andei fardado com um uniforme verde e amarelo de S de Salazar à cintura. Eu nunca marchei, em ordem unida, aos sábados, com outros miúdos, no meio de cânticos e brados militares. Eu nunca vi os colegas mais velhos serem levados para a «mílícia», para fazerem manejo de arma com a Mauser. Eu nunca fui arregimentado, dias e dias, para gigantescos festivais de ginástica no Estádio do Jamor. Eu nunca assisti ao histerismo generalizado em torno do «Senhor Presidente do Conselho», nem ao servilismo sabujo para com o «venerando Chefe do Estado». Eu nunca fui sujeito ao culto do «Chefe», «chefe de turma», «chefe de quina», «chefe dos contínuos», «chefe da esquadra», «chefe do Estado». Eu nunca fui obrigado a ouvir discursos sobre «Deus, Pátria e Família». Eu nunca ouvi gritar: «quem manda? Salazar, Salazar, Salazar». Eu nunca tive manuais escolares que ironizassem com «os pretos» e com «as raças inferiores». Eu nunca me apercebi do «dia da Raça». Eu nunca ouvi louvar a acção dos «Viriatos» na Guerra de Espanha. Eu nunca fui obrigado a ler textos escolares que convidassem à resignação, à pobreza e ao conformismo; Eu nunca fui pressionado para me converter ao catolicismo e me «baptizar». Eu nunca fui em grupos levar géneros a pobres, politicamente seleccionados, porque era mesmo assim. Eu nunca assisti á miséria fétida dos hospitais dos indigentes. Eu nunca vi os meus pais inquietados e em susto. Eu nunca tive que esconder livros e papéis em casa de vizinhos ou amigos. Eu nunca assisti à apreensão dos livros do meu pai. Eu nunca soube de uma cadeia escura chamada o Aljube em que os presos eram sepultados vivos em «curros». Eu nunca convivi com alguém que tivesse penado no Tarrafal. Eu nunca soube de gente pobre espancada, vilipendiada e perseguida e nunca vi gente simples do campo a ser humilhada e insultada. Eu nunca vi o meu pai preso e nunca fui impedido de o visitar durante dias a fio enquanto ele estava «no sono». Eu nunca fui interpelado e ameaçado por guardas quando olhava, de fora, para as grades da cadeia. Eu nunca fui capturado no castelo de S. Jorge por um legionário, por estar a falar inglês sem ser «intréprete oficial». Eu nunca fui conduzido à força a uma cave, no mesmo castelo, em que havia fardas verdes e cães pastores alemães. Eu nunca vi homens e mulheres a sofrer na cadeia da vila por não quererem trabalhar de sol a sol. Eu nunca soube de alentejanos presos, às ranchadas, por se encontrarem a cantar na rua. Eu nunca assisti a umas eleições falsificadas, nunca vi uma manifestação espontânea ser reprimida por cavalaria à sabrada; eu nunca senti os tiros a chicotearem pelas paredes de Lisboa, em Alfama, durante o Primeiro de Maio. Eu nunca assisti a um comício interrompido, um colóquio desconvocado, uma sessão de cinema proibida. Eu nunca presenciei a invasão dum cineclube de jovens com roubo de ficheiros, gente ameaçada, cartazes arrancados. Eu nunca soube do assalto à Sociedade Portuguesa de Escritores, da prisão dos seus dirigentes. Eu nunca soube da lei do silêncio e da damnatio memoriae que impendia sobre os mais prestigiados intelectuais do meu país. Eu nunca fui confrontado quotidianamente com propaganda do estado corporativo e nunca tive de sofrer as campanhas de mentalização de locutores, escribas e comentadores da Rádio e da Televisão. Eu nunca me dei conta de que houvesse censura à imprensa e livros proibidos. Eu nunca ouvi dizer que tinha havido gente assassinada nas ruas, nos caminhos e nas cadeias. Eu nunca baixei a voz num café, para falar com o companheiro do lado. Eu nunca tive de me preocupar com aquele homem encostado ali à esquina. Eu nunca sofri nenhuma carga policial por reclamar «autonomia» universitária. Eu nunca vi amigos e colegas de cabeça aberta pelas coronhas policiais. Eu nunca fui levado pela polícia, num autocarro, para o Governo Civil de Lisboa por indicação de um reitor celerado. Eu nunca vi o meu pai ser julgado por um tribunal de três juízes carrascos por fazer parte do «organismo das cooperativas», do PCP, com alguns comerciantes da Baixa, contabilistas, vendedores e outros tenebrosos subversivos. Eu nunca fui sistematicamente seguido por brigadas que utilizavam um certo Volkswagen verde. Eu nunca tive o meu telefone vigiado. Eu nunca fui impedido de ler o que me apetecia, falar quando me ocorria, ver os filmes e as peças de teatro que queria. Eu nunca fui proibido de viajar para o estrangeiro. Eu nunca fui expressamente bloqueado em concursos de acesso à função pública. Eu nunca vi a minha vida devassada, nem a minha correspondência apreendida. Eu nunca fui precedido pela informação de que não «oferecia garantias de colaborar na realização dos fins superiores do Estado». Eu nunca fui objecto de comunicações «a bem da nação». Eu nunca fui preso. Eu nunca tive o serviço militar ilegalmente interrompido por uma polícia civil. Eu nunca fui julgado e condenado a dois anos de cadeia por actividades que seriam perfeitamente quotidianas e normais noutro país qualquer; Eu nunca estive onze dias e onze noites, alternados, impedido de dormir, e a ser quotidianamente insultado e ameaçado. Eu nunca tive alucinações, nunca tombei de cansaço. Eu nunca conheci as prisões de Caxias e de Peniche. Eu nunca me dei conta, aí, de alguém que tivesse sido perseguido, espancado e privado do sono. Eu nunca estive destinado à Companhia Disciplinar de Penamacor. Eu nunca tive de fugir clandestinamente do país. Eu nunca vivi num regime de partido único. Eu nunca tive a infelicidade de conhecer o fascismo.

Mário de Carvalho - in "DENEGAÇÃO POR ANÁFORA MERENCÓRIA"

3 comentários:

  1. Sobre Mário de Carvalho e a sua verticalidade, muito poderia eu escrever, mas não escrevo. Apenas chamo a atenção para um filme, chamado Quem é Ricardo?, com base num argumento dele, sobre a tortura do sono feita pela pide. Mário de Carvalho sabe, por experiência própria, porque foi submetido a ela, como uma tal tortura era feita. O filme está no Youtube e pode ser visto aqui. Não é um filme "bonito", nem nunca poderia sê-lo, mas vale a pena perder 35 minutos vendo-o. É a pide chapada e escarrada que nele se vê.

    Fernando Ribeiro

    P.S. - Afinal vou escrever algo sobre Mário de Carvalho, a propósito de um livro de contos que me desapontou profundamente. O livro não é literariamente mau, de maneira nenhuma, mas é muito pouco verosímil. Refiro-me ao livro de contos "Os Alferes", sobre a guerra colonial. Como é possível que alguém que não foi à guerra colonial, porque desertou, ouse escrever sobre ela? "Os Alferes", de Mário de Carvalho, é um livro para esquecer. Por exemplo, a forma extremamente desumana como os alferes (como eu fui) e os furriéis tratavam os seus subordinados num ambiente de guerra, tal como é retratada no livro, não correspondeu à realidade, nem nunca poderia corresponder. Mário de Carvalho deve ter-se baseado na sua própria experiência pessoal na Companhia Disciplinar de Penamacor. Se eu tratasse os meus homens, no meio da guerra, do jeito odioso descrito por Mário de Carvalho, por certo eu acabaria por ser morto durante uma operação, com uma bala "perdida", "por acaso" ou "por acidente". Ao contrário do que Mário de Carvalho julga, na guerra as coisas não se passavam assim.

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  2. Fernando Ribeiro, acho que sim, que na guerra os superiores não eram assim tão maus para os soldados: o meu irmão, que andou na guiné e levava para o campo os outros soldados, fazia-os sentarem-se no capim, sem fazer barulho e mandava-os esperar até que os autóctones fossem embora.

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  3. Lua Azul, nas zonas onde não havia guerra ou onde ela era pouco mais do que uma simples ameaça, havia que ter pulso em dezenas de rapazes de vinte anos à solta, que eram tentados a fazer asneiras se ninguém lhes impusesse alguma disciplina. Neste caso, o melhor que havia a fazer era mantê-los ocupados em diversas tarefas durante o maior tempo possível, o que nem sempre era fácil de arranjar. Nas zonas de guerra aberta, os rapazes chegavam das operações militares de tal maneira esgotados, física e psiquicamente, que não estavam em condições de fazer asneiras, quaisquer que elas fossem. Do que eles precisavam, neste caso, eram sopas e descanso, o que era muito difícil de lhes dar. Num ambiente de guerra, eles eram permanentemente solicitados para realizarem as mais diversas ações militares, colunas, patrulhamentos, escoltas, etc., sempre em situações de perigo. Era imperioso, neste caso, tratá-los com a máxima humanidade e compreensão.

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