06 setembro, 2012

Adriano Moreira, a história e um extraordinário momento para o seu branqueamento...


O traço humanizado, a voz macia, uma humildade que tanto aparenta verdade, quase fizeram esquecer o resto...

Se esperava, e é verdade que esperava, uma entrevista com a condução das anteriores, embora com perguntas mais educadas, adequadas a senadores, depressa percebi que não ia ser assim. Sobre a situação actual, nem uma mão cheia de perguntas ocupou longas respostas sobre a situação actual. Neste aspecto, foi breve e nem comento o juízo, e a oportunidade, de um ou outro aviso feito por Adriano Moreira. O que aconteceu foi uma esmerada lavagem à longa noite do fascismo. O entrevistado prestava-se a isso e deu dele, (e de Salazar), uma imagem de impoluto e, por isso, de exemplar politico, homem e cidadão. O regime do Estado Novo, que com ele teve meros desacertos, não deixou de o reconhecer como filho legitimo. Ele o disse. No resto foi poupado por uma Fátima cúmplice. Eu, eu não esqueço. E só por ironia, transcrevo o que tão bem retrata esse passado negro:
Eu nunca fui obrigado a fazer a saudação fascista aos «meus superiores». Eu nunca andei fardado com um uniforme verde e amarelo de S de Salazar à cintura. Eu nunca marchei, em ordem unida, aos sábados, com outros miúdos, no meio de cânticos e brados militares. Eu nunca vi os colegas mais velhos serem levados para a «mílícia», para fazerem manejo de arma com a Mauser. Eu nunca fui arregimentado, dias e dias, para gigantescos festivais de ginástica no Estádio do Jamor. Eu nunca assisti ao histerismo generalizado em torno do «Senhor Presidente do Conselho», nem ao servilismo sabujo para com o «venerando Chefe do Estado». Eu nunca fui sujeito ao culto do «Chefe», «chefe de turma», «chefe de quina», «chefe dos contínuos», «chefe da esquadra», «chefe do Estado». Eu nunca fui obrigado a ouvir discursos sobre «Deus, Pátria e Família». Eu nunca ouvi gritar: «quem manda? Salazar, Salazar, Salazar». Eu nunca tive manuais escolares que ironizassem com «os pretos» e com «as raças inferiores». Eu nunca me apercebi do «dia da Raça». Eu nunca ouvi louvar a acção dos «Viriatos» na Guerra de Espanha. Eu nunca fui obrigado a ler textos escolares que convidassem à resignação, à pobreza e ao conformismo; Eu nunca fui pressionado para me converter ao catolicismo e me «baptizar». Eu nunca fui em grupos levar géneros a pobres, politicamente seleccionados, porque era mesmo assim. Eu nunca assisti á miséria fétida dos hospitais dos indigentes. Eu nunca vi os meus pais inquietados e em susto. Eu nunca tive que esconder livros e papéis em casa de vizinhos ou amigos. Eu nunca assisti à apreensão dos livros do meu pai. Eu nunca soube de uma cadeia escura chamada o Aljube em que os presos eram sepultados vivos em «curros». Eu nunca convivi com alguém que tivesse penado no Tarrafal. Eu nunca soube de gente pobre espancada, vilipendiada e perseguida e nunca vi gente simples do campo a ser humilhada e insultada. Eu nunca vi o meu pai preso e nunca fui impedido de o visitar durante dias a fio enquanto ele estava «no sono». Eu nunca fui interpelado e ameaçado por guardas quando olhava, de fora, para as grades da cadeia. Eu nunca fui capturado no castelo de S. Jorge por um legionário, por estar a falar inglês sem ser «intréprete oficial». Eu nunca fui conduzido à força a uma cave, no mesmo castelo, em que havia fardas verdes e cães pastores alemães. Eu nunca vi homens e mulheres a sofrer na cadeia da vila por não quererem trabalhar de sol a sol. Eu nunca soube de alentejanos presos, às ranchadas, por se encontrarem a cantar na rua. Eu nunca assisti a umas eleições falsificadas, nunca vi uma manifestação espontânea ser reprimida por cavalaria à sabrada; eu nunca senti os tiros a chicotearem pelas paredes de Lisboa, em Alfama, durante o Primeiro de Maio. Eu nunca assisti a um comício interrompido, um colóquio desconvocado, uma sessão de cinema proibida. Eu nunca presenciei a invasão dum cineclube de jovens com roubo de ficheiros, gente ameaçada, cartazes arrancados. Eu nunca soube do assalto à Sociedade Portuguesa de Escritores, da prisão dos seus dirigentes. Eu nunca soube da lei do silêncio e da damnatio memoriae que impendia sobre os mais prestigiados intelectuais do meu país. Eu nunca fui confrontado quotidianamente com propaganda do estado corporativo e nunca tive de sofrer as campanhas de mentalização de locutores, escribas e comentadores da Rádio e da Televisão. Eu nunca me dei conta de que houvesse censura à imprensa e livros proibidos. Eu nunca ouvi dizer que tinha havido gente assassinada nas ruas, nos caminhos e nas cadeias. Eu nunca baixei a voz num café, para falar com o companheiro do lado. Eu nunca tive de me preocupar com aquele homem encostado ali à esquina. Eu nunca sofri nenhuma carga policial por reclamar «autonomia» universitária. Eu nunca vi amigos e colegas de cabeça aberta pelas coronhas policiais. Eu nunca fui levado pela polícia, num autocarro, para o Governo Civil de Lisboa por indicação de um reitor celerado. Eu nunca vi o meu pai ser julgado por um tribunal de três juízes carrascos por fazer parte do «organismo das cooperativas», do PCP, com alguns comerciantes da Baixa, contabilistas, vendedores e outros tenebrosos subversivos. Eu nunca fui sistematicamente seguido por brigadas que utilizavam um certo Volkswagen verde. Eu nunca tive o meu telefone vigiado. Eu nunca fui impedido de ler o que me apetecia, falar quando me ocorria, ver os filmes e as peças de teatro que queria. Eu nunca fui proibido de viajar para o estrangeiro. Eu nunca fui expressamente bloqueado em concursos de acesso à função pública. Eu nunca vi a minha vida devassada, nem a minha correspondência apreendida. Eu nunca fui precedido pela informação de que não «oferecia garantias de colaborar na realização dos fins superiores do Estado». Eu nunca fui objecto de comunicações «a bem da nação». Eu nunca fui preso. Eu nunca tive o serviço militar ilegalmente interrompido por uma polícia civil. Eu nunca fui julgado e condenado a dois anos de cadeia por actividades que seriam perfeitamente quotidianas e normais noutro país qualquer; Eu nunca estive onze dias e onze noites, alternados, impedido de dormir, e a ser quotidianamente insultado e ameaçado. Eu nunca tive alucinações, nunca tombei de cansaço. Eu nunca conheci as prisões de Caxias e de Peniche. Eu nunca me dei conta, aí, de alguém que tivesse sido perseguido, espancado e privado do sono. Eu nunca estive destinado à Companhia Disciplinar de Penamacor. Eu nunca tive de fugir clandestinamente do país. Eu nunca vivi num regime de partido único. Eu nunca tive a infelicidade de conhecer o fascismo.

Mário de Carvalho, escritor - in "DENEGAÇÃO POR ANÁFORA MERENCÓRIA", retirado da sua página do facebook

13 comentários:

  1. Grande poste.
    Foi bom teres trocado estas ideias sobre o assunto.

    Mário de Carvalho,é um Escritor Maior.

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  2. Uma leitura para nos deixar desassossegados, no mínimo...
    Sobre a entrevista: idade e imunidade poderão andar de mãos dadas? Ou: A "construção" da memória segundo "Pilatos".

    Um beijo

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  3. Aliás, nunca existiu ditadura e Cerejeira e Salazar foram personagens de ficção.

    Nem Catarina Eufémia foi assassinada a sangue frio por um facínora que lhe afastou as pernas do filho que levava ao colo e a baleou à queima-roupa, continuando a fazer a sua vida calmamente e sem ser sequer incomodado.

    Mas de Fátima Campos Ferreira , toda a gente conhece o talento para fazer fretes.

    Tudo de bom.

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  4. Obrigado pelo teu texto e de Mário de Carvalho, que não conhecia. De facto este país é perito em reabilitar pessoas como foi o caso recente de José Herman Saraiva.

    Um abraço

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  5. A memória é seletiva. Poucos lembram, a maioria esquece.
    Um grande bj querido amigo

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  6. há uma amiga sua que não se cala...

    Manda cada bomba!

    http://duas-ou-tres.blogspot.pt/2012/09/adriano-moreira.html

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  7. Ainda bem que cheguei a tempo deste excelente post!
    Infelizmente tornei-me escrava...

    Isto, meu amigo, é o regresso da lavagem: «Boa e honesta pobreza».

    Abraço

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  8. Ainda bem que " nunca" e nesse aspecto teve muita sorte... ou protecção.
    No entanto, reconheço que é uma figura maior da história e da cultura.Este pode usar o título de senador.

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  9. Um excelente texto, que lemos com prazer. Aqui, não há poesia, mas considerações sábias. Seus versos encantados, guardamos, nos felizes comentários que deixa em nossos espaços. Bjs.

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  10. Foi o puxar 'como as cerejas' que me trouxe aqui. Mas li as duas ou três últimas publicações. Esta, particularmente, não me deixou indiferente. Porque recordo o que o senhor disse sobre a (já esquecida) Guerra do Ultramar. Sobre a pluralidade lusa...
    Deixo um extracto, a esse propósito, inserido num texto meu sobre o tema:
    '(anos mais tarde, o general Kaúlza de Arriaga, disserta em O problema estratégico português -vol.XII das Lições de Estratégia do Curso de Altos Comandos:
    (...) Se caminharmos de norte para sul, parece que a latitude tem uma influência qualquer nas raças. Vemos que as raças, à medida que descem de latitude, vão adquirindo certas características que, em relação aos parâmetros da vida moderna, são inferiores. Vemos os nórdicos, capazes de uma opinião pública muita esclarecida; depois começamos nós, os latinos, já muito menos esclarecidos; depois passamos aos árabes, muito piores que nós, e acabamos nos pretos. Se em Angola ou Moçambique houvesse 20 ou 30 milhões de negros, o problema para nós seria extremamente grave, ainda bem que essas populações são tão reduzidas. Eu sei que isto resultou da exportação que se fez para o Brasil; se foi isso, ainda bem que se fez essa exportação (...) Lição 3ª e 4ª, pág. 5, 15 e 16)
    ...
    Àparte disso... parabéns pelo blogue!

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  11. Não ouvi nem li nada sobre o assunto a não ser esta postagem!
    Calculei que o objectivo fosse mesmo o branqueamento do sujeito!

    Abraço

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