30 setembro, 2012

Homilias dominicais (citando Saramago) - 101

...dar atenção finalmente às plantas - essas nossas irmãs
.
"A alegoria chega quando descrever a realidade já não nos serve." escreveu não sei onde Saramago. Ele continua a inspirar cada homilia mas os tempos que vão correndo me obrigam a chamar a este lugar outros saramaguianos. Não, não se trata de virar costas a Saramago, mas sim dar atenção a quem (também) a merece e lhe segue os passos...

HOMILIA DE HOJE
- Era o que eu dizia a Vossa Excelência.
- Era.
- Um homem depois de cair pode ainda cair mais.
- A queda interminável, a queda infinita.
- Vossa Excelência dizia ser mais fácil esmagar um corpo já caído no chão. Era isso?
- Em pleno século XXI cair no chão com grande força e velocidade deve ser considerado uma grande oportunidade...
- Para ser esmagado?
- Sim, para ser esmagado.
- É.
- No fundo, repare Excelência... o que é esmagar um corpo senão uma incomparável delicadeza civil de fazer que um corpo que antes ocupava determinado espaço passe a ocupar menos espaço?
- Não entendi, Excelência: frase longa.
- Dizia: esmagar um corpo é apenas, no fundo, diminuir o volume de um corpo, diminuir o espaço que esse corpo ocupa.
- Ou seja, de um outro ponto de vista...
- De um outro ponto de vista: esmagar um corpo é alargar o espaço comum, o espaço da cidade.
- Por cada corpo esmagado, portanto, a cidade ganha espaço, metro quadrado. Enfim, até podemos utilizar esse espaço livre para construir espaços verdes. Que lhe parece?- Que bela ideia! Construir espaços verdes no lugar de...
- Abrir espaço na cidade através do esmagamento organizado dos diferentes corpos de cidadãos que por aí andam, aos caídos, por assim dizer... e, com esse espaço livre, começarmos a dar atenção finalmente às plantas - essas nossas irmãs. Isto é planeamento urbano... ou não?
- Sim, sim, claro.
- As nossas irmãs plantas.
- Nunca respeitei seres humanos que não respeitem os espaços verdes (...)
Gonçalo M. Tavares, hoje, no DN-Magazine 

10 comentários:

  1. Depois do cansaço, uma boa noite de sono e agora Rogério, apenas um grande abraço!

    Para aqueles cujo jogo de espelhos os paralisa no eterno terror, de que qualquer acção lhes trará um "volte-face" terrível, que se fiquem no marasmo deixando os acontecimentos passar ao lado e que encolham os ombros, enquanto lhes é possível. No pântano lodoso se afogarão e ao musgo darão lugar, uma espécie em extinção. As plantas essas nossas irmãs, também precisam de espaço e há muitos candidatos a ceder-lho... festejemos então.

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  2. «... é verdade que se um homem misturar absinto com a realidade fica com uma realidade melhor.... mas também é certo que se um homem misturar absinto com a realidade fica com um absinto pior.... muito cedo tomei as opções essenciais que há a tomar na vida – disse o senhor Henri.... nunca misturei o absinto com a realidade para não piorar a qualidade do absinto.»

    Gonçalo M. Tavares, in O Senhor Henri


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  3. No wisky nunca se deve adicionar gelo

    para não estragar o gelo

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  4. ... é difícil continuar adormecido quando a fome começa a apertar... as Manifestações deviam acontecer para prevenir as causas e nunca as consequências... assim é um acordar de dor... e era evitável mas a maioria preferiu dormir, ficar quietinha e esperar para ver o que acontecia...

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  5. O texto atinge seus objetivos: choca e faz pensar.
    Um grande bj querido amigo

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  6. Faz mesmo pensar...e é esse o objectivo!

    Abraço

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  7. Que engraçado! Recortei o diálogo de hoje de Gonçalo M. Tavares para o transcrever lá no meu espaço... Por acaso, eu que tanto gostei de ler "Uma Viagem à Índia", não gosto muito destes seus diálogos de domingo por serem por de mais herméticos; mas o de hoje está cinco estrelas - carregadinho de significado.

    Boa semana!

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  8. o que ele queria dizer disse mesmo...falou tudo.

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  9. O pior é que os corpos se esmagam e em vez de espaços verdes, nasce o betão.

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  10. Enchi-me de verde com esta homilia.
    Perfeita!

    beijinhos

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