Antes que a enxurrada de desinformação produzida pela
comunicação social corporativa mistifique a história oficial destes dias
de guerra, caos e ilegalidade na cena internacional é altura de
descodificar a cadeia de acontecimentos para que seja possível
distribuir responsabilidades e invalidar mentiras. Se os Estados Unidos
da América, como é habitual e natural, sobressaem como os artífices de
uma trama que ameaça o planeta, é importante notar que o “nosso mundo
civilizado”, com a NATO e a União Europeia à cabeça, não fazem figura de
inocentes. Aliás, nem o governo da República Portuguesa se salva.
Já
poucos terão presente que esta escalada de guerra dos Estados Unidos
contra o Iraque e o Irão – ao que parece agora militarmente amainada –
se iniciou em 27 de Dezembro com um suposto ataque da organização
paramilitar iraquiana xiita Kataeb Hezbollah contra uma base ocupada por
tropas norte-americanas no Iraque, provocando a morte de um contratado
civil e ferimentos em quatro militares.
E aqui começa a história a ser mal contada.
Em
momento algum, até hoje, as fontes oficiais e oficiosas
norte-americanos prestaram informações adicionais sobre este incidente,
por exemplo divulgando a identidade do falecido, a entidade para a qual
trabalhava e os nomes dos feridos.
No dia seguinte veio a
“resposta” norte-americana: caças F-15 bombardearam cinco bases do
Kataeb Hezbollah no Iraque e na Síria, instalações que foram e continuam
a ser fulcrais no combate contra o Isis ou Estado Islâmico e a
al-Qaida. Desenhava-se aqui uma tendência: punir organizações ou
entidades que contribuem para tentar desmantelar o terrorismo que
descende directamente do que foi criado no Afeganistão por Bin Laden e a
CIA em coordenação com outros serviços secretos, designadamente os
britânicos, sauditas e paquistaneses.
O pormenor mais intrigante
da “resposta” militar norte-americana levanta ainda outras fortes
suspeitas sobre a versão dos acontecimentos difundida por Washington. As
bases do Kataeb Hezbollah atingidas pelos bombardeamentos situam-se a
mais de 500 quilómetros das instalações onde supostamente terá morrido o
mercenário e foram feridos os quatro soldados. É de admitir, portanto,
que o grupo paramilitar iraquiano não seja responsável pela acção, como o
próprio garante; e que o suposto “ataque com rockets” não tenha passado
de uma provocação que qualquer reminiscência do Isis ainda seja capaz
de executar.
A acção terrorista norte-americana gerou reacções
imediatas e espontâneas sobretudo no Iraque. O Kataeb Hezbollah é uma
facção do bloco designado Unidades Populares de Mobilização (PMU),
milícias associadas ao segundo maior grupo do Parlamento iraquiano. Além
disso, integra operacionalmente o exército regular do país. Com esta
representatividade não espanta que se tenham formado importantes
manifestações contestando o bombardeamento norte-americano e tendo como
alvo a Embaixada dos Estados Unidos. Em momento algum, porém, houve
invasão das instalações diplomáticas, ao contrário do que foi afirmado
pelos media corporativos ecoando as mensagens de propaganda emanadas do
Departamento de Estado em Washington.
Um acto de guerra
Os protestos, porém, serviram como novo pretexto para alimentar a escalada.
Invocando
os focos de violência em torno da embaixada – motivo que depois
desapareceu, para ser substituído por uma mentira que continua a ser
repetida – os Estados Unidos assassinaram, em 3 de Janeiro, o general
Qasem Soleimani, comandante da organização Al-Qods (Jerusalém) da Guarda
Revolucionária do Irão.
Demonstrando que conhecia ao milímetro os
movimentos do general, o Pentágono enviou um drone Reaper contra o
conjunto de viaturas que transportava Soleimani do aeroporto
internacional de Bagdade para uma reunião com o primeiro-ministro
iraquiano, Adel Abdul al-Mahdi.
No ataque morreram também o número
dois do PMU do Iraque e um destacado dirigente do Hezbollah libanês,
organização que integra o governo do Líbano.
Os Estados Unidos tinham acabado de cometer um acto de guerra contra três Estados Soberanos.
O Iraque protestou oficialmente contra o evidente ataque à sua soberania.
E o Irão prometeu reagir.
Logo
acudiu a chamada “comunidade internacional”, praticamente a uma voz e
com uma só palavra de ordem: “contenção” – pedida a todas as partes,
agressor e agredidos.
Do “nosso mundo civilizado” não se ouviu qualquer condenação do acto de barbárie.
A
NATO, pela voz do secretário-geral Stoltenberg, garantiu que não estava
envolvida mas fora informada e sabia de tudo. E recomendou ao Irão,
país vítima de uma agressão primária que rasgou também o direito
internacional, o cuidado de “abster-se de violência e provocações”
O
primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, assegurou que se
tratava de “um acontecimento americano” no qual o seu país não deveria
ser “misturado”. E, no entanto, a operação replicou os muitos
“assassínios selectivos” praticados pelo Estado sionista, principalmente
na Faixa de Gaza. Netanyahu ameaçou ainda o Irão com uma “resposta
retumbante” no caso de atacar alvos israelitas.
O secretário-geral
da ONU, António Guterres, falou mais ou menos do sexo dos anjos, na
impossibilidade de discorrer, por uma vez, das alterações climáticas: “O
caldeirão de tensões conduz cada vez mais países a tomar decisões
imprevistas com imprevistas consequências e risco profundo de erros de
cálculo”, declarou.
Concluiu ainda que “as tensões geopolíticas estão ao
nível mais elevado deste século”, coisa que ainda ninguém tinha
percebido.
Não se ouviu, no entanto, qualquer comentário de
Guterres quando o Departamento de Estado norte-americano se recusou a
emitir um visto ao ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Javad
Zarif, que pretendia deslocar-se à sede das Nações Unidas, em Nova York,
para explicar os acontecimentos. Uma recusa que deveria suscitar
reacções exemplares da ONU, uma vez que viola o tratado celebrado entre
esta organização e os Estados Unidos que regula, desde 1947, o
funcionamento das Nações Unidas na cidade norte-americana.
A Rússia e a Turquia, em declaração conjunta, admitiram que as atitudes dos Estados Unidos no Médio Oriente são “ilegais”.
Guerra para calar negociações
O
general Soleimani não era apenas um general admirado no seu país. Ficou
conhecido como brilhante estratego do combate travado
internacionalmente contra o Estado Islâmico – praticamente dizimado – e a
al-Qaida - em vias de sofrer uma esmagadora derrota na Síria e em fase
de transferência para a Líbia.
O assassínio de Qasem Soleimani
confirma, portanto, a tendência norte-americana para ajustar contas com
pessoas, entidades e organizações que combatem o terrorismo oriundo do
tronco comum afegão. O que não surpreende, porque o Estado Islâmico e a
al-Qaida desempenharam – e desempenham – funções de braços armados dos
Estados Unidos e da NATO em guerras como as do Iraque, da Síria e da
Líbia.
O primeiro-ministro do Iraque revelou, entretanto, que o
general Soleimani se deslocara a Bagdade para se encontrar com ele
próprio e entregar a resposta do governo do Irão a uma iniciativa da
Arábia Saudita, na qual o Iraque serviu de mediador, e que tinha o
objectivo de reduzir as tensões entre Teerão e Riade. Uma aproximação
entre o Irão e a Arábia Saudita é fulcral para qualquer processo de
pacificação em todo o Médio Oriente; por outro lado, seria um obstáculo à
estratégia de “guerra sem fim” conduzida pelos Estados Unidos na
região.
A intenção da administração norte-americana de fazer
abortar negociações desenvolvidas entre Teerão e Riade através de
Bagdade é muito mais do que uma simples suspeita.
A versão
norte-americana sobre a viagem de Soleimani é diferente: o general iria
preparar ataques contra alvos militares e interesses norte-americanos.
Nem o secretário de Estado Pompeo nem o presidente Trump, em múltiplas
intervenções, conseguiram ir além da formulação abstracta desta teoria,
apesar de instados a apresentar pormenores. A acusação a Soleimani acaba
por revelar-se uma deslavada e repetida mentira.
Vítima de uma
agressão norte-americana contra o seu próprio território, o Parlamento
iraquiano decidiu, por unanimidade, expulsar as tropas estrangeiras e
revogar o pedido de assistência de uma coligação internacional com base
na NATO, fundada com o alegado intuito de combater o Isis ou Estado
Islâmico.
A NATO suspendeu as operações em solo do Iraque. O
primeiro-ministro al-Mahdi recebeu uma carta norte-americana – com
versões em inglês e em árabe – manifestando disponibilidade para acatar a
decisão. Como os textos têm conteúdos diferentes nas duas línguas, o
chefe do governo do Iraque pediu esclarecimentos. Então os Estados
Unidos argumentaram que a carta não deveria ainda ter sido enviada, pelo
que não existe resposta oficial à posição soberana de Bagdade.
Tanto
quanto se sabe, a versão oficial de Donald Trump é a de que não
tenciona retirar as tropas do Iraque. O assunto vai dar ainda muito pano
para mangas.
A reacção iraniana
O Irão não
tinha outra opção que não fosse a de reagir ao acto de guerra
norte-americano. Por razões de dignidade e soberania, por necessidades
internas e por lhe ser facultada pelo direito internacional.
Teerão
começou por anunciar que deixa de respeitar os limites de
enriquecimento de urânio impostos pelo acordo nuclear internacional 5+1,
do qual os Estados Unidos já se tinham retirado.
E o circo da
“comunidade internacional” voltou a reagir a preceito, argumentando que,
agora sim, o Irão iria avançar para a bomba nuclear – circunstância que
passou a valer propagandisticamente como se o regime iraniano já
tivesse entrado no “clube atómico”, pronto a “varrer Israel do mapa”,
como se ouviu a circunspectos analistas.
O filme começou, uma vez
mais, a ser rodado ao contrário, escondendo que Israel é a única
potência nuclear do Médio Oriente em condições de “varrer vizinhos do
mapa”, actividade em que tem muita e proveitosa experiência.
A
NATO garantiu que “não permitirá que o Irão tenha armas nucleares”.
Donald Trump assegurou que “o Irão jamais terá armas nucleares”. Afinal,
apesar dos “distanciamentos”, NATO e Trump, Trump e NATO actuam a uma
só voz.
Na madrugada de 8 de Janeiro, o Irão bombardeou então duas
bases iraquianas ocupadas por tropas norte-americanas. Na sua conta
twitter, o chefe da diplomacia iraniana, Javad Zarif, explicou que “a
resposta foi proporcional” ao ataque sofrido e o Irão abster-se-á de
novos ataques.
As narrativas em torno deste ataque, porém, estão longe de serem coincidentes e de estarem concluídas.
Circulam
informações, por um lado, de que antes da operação o Irão contactou o
Iraque e este país os Estados Unidos a tempo de serem tomadas precauções
para evitar baixas. Alguns mísseis, inclusivamente, teriam sido
preparados para evitar danos.
Existem, porém, informações
completamente diferentes. O Irão teria procedido exactamente como os
Estados Unidos na altura do assassínio de Soleimani: informou o Iraque
praticamente em cima da execução do ataque.
A versão oficial de Donald Trump é a de que o ataque não causou baixas nas tropas norte-americanas ou iraquianas.
Trump e os seus amigos
O
presidente norte-americano fez um balanço oficial dos acontecimentos
num “discurso à nação” proferido na manhã (de Washington) de dia 8,
quarta-feira. Anunciou novas sanções contra o Irão, além de estar “a
avaliar outras opções de resposta”. De momento, a escalada militar
parece entre parêntesis, embora permaneçam todas as circunstâncias que
conduziram a esta nova fase da agressão norte-americana.
Trump
pediu “maior envolvimento da NATO”, não especificando em quê
relativamente à situação criada, confirmando assim a “decepção”
transmitida por Pompeo perante a reacção da aliança ao assassínio de
Soleimani. Ficou implícita, através desta abordagem, a obrigatória
disponibilização de meios atlantistas para o que quer que se siga na
guerra sem fim sustentada pelos Estados Unidos na região do Médio
Oriente.
Donald Trump parece estar ainda a avaliar os resultados
da situação, como manobra de diversão do impeachment, e as suas
repercussões na campanha para as eleições de Novembro deste ano.
Além
da pressão do impeachment, que em última análise será travado pela
maioria republicana do Senado, Trump está sob pressão do Congresso por
não ter comunicado previamente a operação contra Bagdade e por não
dispôr de qualquer autorização válida para travar uma guerra contra o
Irão. Alguns congressistas consideram este facto como a razão de maior
peso para um impeachment de um presidente.
Apesar da
agressividade, o discurso de Trump soou a recuo: está colocado perante a
exigência de retirada das tropas do Iraque, as pressões do Congresso, a
multiplicação de manifestações em dezenas de cidades do país contra a
guerra, a denúncia das mentiras sobre Soleimani na própria comunicação
social dominante e também a possibilidade de as versões sobre avultadas
baixas militares ganharem terreno se forem, de facto, fundamentadas.
O
ataque cerrado no discurso contra Obama, personificando na
circunstância o Partido Democrático, confirma que a agressão contra o
Irão integra os planos de Donald Trump para tentar retomar a iniciativa
frente ao impeachment e desenvolver a campanha eleitoral.
A
campanha “América primeiro” parece ter derivado para as campanhas de
guerra como suporte da propaganda político-eleitoral, ao leme das quais,
sem horizonte estratégico, vão Pompeo e os seus cristãos sionistas, os
fundamentalistas evangélicos de Pence e as manobras sionistas do genro
de Trump, Jarred Kushner, em sintonia absoluta com o primeiro-ministro
de Israel.
Estando Trump e Netanyahu ambos acossados internamente,
tanto em termos políticos como de justiça, a associação de
circunstâncias não joga a favor da redução de tensões mas sim da sua
exploração ao ritmo das batalhas político-jurídicas que se seguem nos
Estados Unidos e em Israel.
O cenário mundial está assim refém das
necessidades e interesses próprios dos Estados Unidos e seu satélite
israelita – ou vice-versa – em plena guerra intercapitalista. Enquanto a
União Europeia prega a “contenção” ao Irão; e o governo português, na
velha tradição de bom e respeitador aluno, esteve mudo perante a manobra
terrorista que consumou o assassínio do general Soleimani mas já teve
voz para condenar o ataque de retaliação conduzido pelo Irão.
Comentários dispensam-se.
As duas últimas semanas foram exemplares
da situação arrepiante a que a chamada “comunidade internacional”
deixou que o mundo fosse conduzido pelas mãos de sociopatas incuráveis.
Por José Goulão, n´O LADO OCULTO
*A versão inicial deste artigo, e que poderá já ter sido conhecida por alguns leitores, foi alterada. As referências alusivas aos dados em poder do jornalista israelita Jack Khoury foram suprimidas a pedido deste. As informações contidas na sua página de twitter - entretanto cancelada - fazendo alusão à existência de 224 militares norte-americanos feridos recebidos num hospital de Telavive são falsas. Khoury informa que a sua conta de twitter foi alvo de um acto de pirataria de que resultou a inserção de informações não verificadas ou inexistentes. Pelo facto peço desculpa aos leitores.
Não me foi fácil, mas consegui ler na íntegra. Partilho.
ResponderEliminarAbraço