O livro. O livro que, sem incentivos de amigos, nunca seria um livro, um livro dos verdadeiros, daqueles de tocar, de folhear, de estar ali ao pé, fechado, aberto em qualquer lado ou onde se ia... É importante isso de se ter um livro? Sim, talvez.... por vezes só por isso de ser um livro, um livro com memórias lá dentro... nomeadamente...
"(...) Naquele dia, véspera do primeiro Natal em terras de Angola, o capitão Só Alma surpreendeu. Não compareceu a todas as formaturas, nem ao içar da bandeira, nem almoçou na messe de oficiais com os demais. Foi o cabo cantineiro, a mando do oficial de dia, saber o que se passava e veio com o recado: «O nosso capitão está bem e disse que já cá vem.»
NATAL DE 1969
."(...) Naquele dia, véspera do primeiro Natal em terras de Angola, o capitão Só Alma surpreendeu. Não compareceu a todas as formaturas, nem ao içar da bandeira, nem almoçou na messe de oficiais com os demais. Foi o cabo cantineiro, a mando do oficial de dia, saber o que se passava e veio com o recado: «O nosso capitão está bem e disse que já cá vem.»
E veio. Trazia
na mão uma carta, pediu para que todos se reunissem na parada
e assim aconteceu. Firme, sentido, eram a voz de comando seguida
de calcanhares batendo. O capitão Só Alma aproximou a carta
à altura de ser lida. Esteve longos segundos com a carta nessa posição.
Depois deixou lentamente o braço descair e desistiu de a
ler, se é que tinha intenção de o fazer. Com uma voz que ninguém lhe
ouvira antes, disse: «Hoje,
por ser a noite da consoada, temos rancho melhorado, vinho
à descrição e mais uma refeição à meia-noite. Há bacalhau e
couves e a luz só se desliga depois do menino nascer.» De seguida
deu ordem de destroçar. Minha
Alma até poderia ter comentado mas seguiu o estar do Meu
Contrário que ficou calado. Assim também ficaram todos e foi
em silêncio que dispersaram, sem achar excessiva ou despropositada a
cena. Talvez porque todos tínhamos recebido uma carta
e sentido ganas de a ler em voz alta…
A
ceia foi como o capitão Só Alma disse
que iria ser, e foi prolongada com os mimos que quase todos receberam de casa, no último correio chegado de Maquela: broas; duros
bolos-reis; passas e até alguns sonhos e rabanadas, retardadas por
alguns dias de viagem. Tudo era partilhado. O
vinho não chegou em quantidade e não chegaria nunca para a
avidez de todos. As securas de alma não se amenizam assim, de pé
para a mão. As conversas animaram-se até tarde. Já passava muito
da meia-noite e a luz se apagara, quando voz aflita veio interromper
o meu uísque com bala dentro, travestida de gelo (hábito
que entretanto regressou). Veio dizer-me que o soldado Alma
do Oriente estava mal e sem acordo de si. O Alma do Oriente
era um soldado de ascendência goesa, magro, baixo e de olhos
muito negros e humildes como os seus gestos e trato. A sua religião
não lhe permitia o álcool e ninguém o tratava por «monhé»,
tal o respeito que lhe tinham. Estava de lado, deitado, de
camisa e calças desapertadas. Hirto, sem arfar, parecia em coma.
Pedi que arranjassem amoníaco para lhe dar a inalar, mas apenas
consegui aguarrás. Demos a beber café bem adoçado e por ali
fiquei a seu lado. Passadas horas, duas talvez, ouviu-se-lhe um som
de lamúria ininteligível. Segundos depois um «ó mãe» e nova pausa
para depois outro «mãe» e «ó mãe».
Não sei quantos «ó mães»
ouvi mais, tantos foram esses ais. Todos suspirámos de alívio.
Minha Alma, sorridente dizia com a já conhecida ironia: «Rogério, esse é Jesus renascido e meu nome é Maria.»
Rogério Pereira, in "Almas Que Não Foram Fardadas" (pode adquirir aqui)
Rogério
ResponderEliminarÉ a segunda vez, pelas minhas contas, que me põe a chorar.
Quando eu tiver o seu livro, espere por um dilúvio. Depois não diga que o não avisei...
Bom Natal, meu Amigo!
Caro Rogério
ResponderEliminarUm excerto do "livro" que conta uma pequena "estória" que só quem a viveu consegue verdadeiramente perceber.
Agora outra conversa. Então a sessão de lançamento? Pronto o meu caro é que sabe. Não é por nada mas gostava de ter lá um autógrafo.
Paciência. Vou já encomendar.
Reitero os votos de um bom Natal
Abraço
Rodrigo
Excelente documento o seu livro, Rogério. Cada excerto que se lê, a gente está lá. Eu nunca fui a Angola, eu nunca fui militar e em toda a minha vida só passei um Natal fora de casa. Mas ao ler este bocadinho eu "estive lá". Um abraço e Feliz Natal.
ResponderEliminarIncluo-me no grupo dos amigos que o incentivaram. Tinha a certeza, agora a garantia, ao ler este extracto, de que em boa hora o fazia.
ResponderEliminarBOM NATAL para si e família.
Rogério
ResponderEliminarSó para lhe dizer que acabei de encomendar o seu livro...
Mas não vai livrar-se de lhe "prantar" lá uma dedicatória, ai não vai não!
Beijo
Caro Rogério:
ResponderEliminarMuitos parabéns!
É uma óptima prenda de Natal para todos.
J. Rodrigues Dias
Depois disto, só lhe pergunto duas coisas.
ResponderEliminar1) Onde é que posso comprar o livro ?
2) Qual o nome do livro ?
Eu não vou perder esta leitura. Ai não vou mesmo !
Já clarifiquei, caro Eduardo
ResponderEliminaro nome do livro e onde pode ser comprado
(rimando, rimando sempre...)
:))
.
ResponderEliminar.
. grato pela visita .
.
. votos de festas felizes .
.
.
fico cada vez com mais vontade de ler a obra por inteiro
ResponderEliminarBjinhos
Paula
Excelente. Comovente. Feliz Natal. Abraco
ResponderEliminarClaro que quero o livro...
ResponderEliminar...com assinatura!
Feliz Natal com uma menção especial ao teu neto!
Abraço,
António
Rogério,
ResponderEliminarTudo já resolvido com sucesso.
Ontem bateu-me o sono e acho que adormeci em cima do teclado, :).
Até pensei que tinha comentado este texto, ma acho que já o fiz noutro lado, pois, memórias que nunca se devem apagar, que são história.
Quando vi "JÁ PODE...(se puder)...achei tão original e discreto que fui logo a correr fazer disparates e adormeci antes de escrever aqui nesta caixinha.
Mais uma vez uma noite e um dia de Natal com o calor da família, eu vou desaparecer na mesma onda...
Beijos
Branca
Em Maquela, a esposa de um comerciante fazia e vendia bolos-reis que de bolo-rei só tinham o nome e uma vaga aparência. Aquilo era tão duro que não havia dentes que conseguissem entrar naqueles pedregulhos... Se alguém atirasse um daqueles bolos-reis à cabeça de outra pessoa, matava-a!
ResponderEliminarFeliz Natal
Um abraço, caro Rogério.
ResponderEliminar:)))
O Natal é o calor que volta ao coração das pessoas,
ResponderEliminara generosidade de compartilhá-la com outros e a esperança de seguir adiante.
Que a paz e a compreensão reinem em nossos corações neste Natal
Com todo carinho te deixando meus votos de Um Feliz Natal para você familia e amigos.
Beijos no coração .
Um belo texto. Um belo conto de Natal.
ResponderEliminarMuito bonito, Rogerito. Parabéns uma vez mais. E beijinhos.