Lendo a imprensa da semana e a do dia, não contenho, contrafeito, o sentir que nos vão estragar o mar e o que ele tem para nos dar. Desertificada e depauperada a terra, agora querem também fazer o mesmo ao mar. Esta gente pode tudo. Retirar-lhe até o sal, que diz o poeta serem lágrimas de Portugal. Não posso deixar de o temer, agora que se diz que a grande esperança da Europa está na estratégia para o Atlântico. Por estas palavras poder-se-ia pensar que eu tinha escolhido a "jangada de pedra" para a homilia de hoje. Estive para fazê-lo e repetir aqui a minha expressão de então: "Depois de afundarem o país, preparam-se para afundar o oceano".
Não o farei. Prefiro lembrar, hoje, que foi um brasileiro, do outro lado do mar, que me fez ler Saramago. Conta-se em poucas palavras: Retribuía-me, com a vinda dele, um estágio meu, em São Paulo, onde tive tratamento que me orgulhou e comoveu. Foi em 1989. Tinha que o tratar por igual, aqui. Terminada a estadia e já de regresso, aquando da saída, à despedida, ofereci-lhe duas garrafas de vinho do Porto e um livro, escolhido por conhecer seus interesses e hobbies, de entre os que figurava a paixão por construções com história, mosteiros e castelos e outras edificações monumentais. Não tinha lido tal livro, mas por saber ser esse o tema escrevi-lhe longa dedicatória. Levou as oferendas, agradecido. Passaram os dias até à chegada daquele intrigante mail. A linguagem era clara mas o assunto era estranho e parecia deslocado dos temas profissionais que nos ligavam. Blimunda e Sete-Sóis apareciam no seu discurso, como parentes nossos... Fez-se um clique e lá fui correndo à livraria próxima (hoje já encerrada) comprar "O Memorial do Convento", decidido a lê-lo e a responder na mesma toada. Não foi fácil e a resposta ao mail do meu colega brasileiro saiu com um atraso de dois dias. O romance? Tive que voltar a lê-lo depois, para saborear as palavras que a ele tanto tinham agradado. Este episódio tem entre nós um significado tal que mais parece não haver entre nós tanto mar.
HOMILIA DE HOJE
[...]Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltasar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz, e então, sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.
Deitaram-se, Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bate de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.
Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.[...] - pág. 56
[...] na vida tem cada um sua fábrica, estes ficam aqui a levantar paredes, nós vamos a tecer vimes, arames e ferros, e também recolher vontades, para que com tudo junto nos levantemos, que os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer, isso mesmo fizemos com o cérebro [...] - pág. 134
Caro Rogério
ResponderEliminarHá sempre uma primeira vez para tudo.
Senti uma repentina necessidade de reler o "memorial". Talvez nos tempos que correm seja mais fácil perceber aquilo que Saramago descreve com tanto realismo, mas que muita gente por aí não veja mais do que ficção.
Abraço
Para mim o melhor livro dele.
ResponderEliminarSera que ainda ha peixe no mar?
Bjinhos
Paula
Há momentos de uma beleza tão genuína que nos deixam assim... sem podermos dizer nada.
ResponderEliminarBeijo
Uma amizade muito especial que desencadeou momentos e decisões que o enriqueceram! São essas que nunca se devem perder. Abraço : )
ResponderEliminarBelíssimo!
ResponderEliminarDo Memorial a memória...
"e também recolher vontades, para que com tudo junto nos levantemos, que os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer, isso mesmo fizemos com o cérebro [...]"
ResponderEliminarCom Saramago vemo-nos melhor por dentro, a nós e aos outros.
Reler as suas palavras é descobrir que nelas há sempre mais para ver. É um ver que engrandece a alma e nos reconcilia com a vida...
Obrigada
Um beijo
Pois eu tenho de voltar a lê-lo, sendo que o Memorial foi o meu primeiro Saramago, o que me abriu o apetite para essa escrita maravilhosa do Mestre e já lá vão muitos anos.
ResponderEliminarSaramago. Um brilhante que nos deixou, mas está eternizado pelos seus belos textos.
ResponderEliminarParabéns pelo Blog, estou seguindo sem medo.
Abração .
papeldeumlivro.blogspot.com
Amigo Rogério:
ResponderEliminarCada página, cada parágrafo do Memorial do Convento é um mundo a descobrir e a ensinar-nos constantemente.
Tive o privilégio de ter uma professora na Universidade Sénior que frequentei, que me fez amar toda a obra de Saramago.
Esta sua homilia é das mais belas que aqui escreveu.
Obrigada!
beijinhos e boa semana
Sei das asas, conheço-as bem. Se assim não o fosse como seria... como seria?
ResponderEliminarMais uma coisa, quando se está dentro olhar em volta é simples.
Um grande bj aos dois outros, uma vez que a este ainda estou a pensar.
Também precisava de relê-lo, mas tenho tantos livros para ler antes de reler!... Um espetáculo o Memorial, mas, para mim, o que me deu mais gosto em ler foi "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Talvez por gostar tanto de Fernando Pessoa.
ResponderEliminarBoa semana
A destruição será cpmpleta, certamente!
ResponderEliminarSó quando estragarem tudo, aprenderão que o dinheiro é incomestível!!
Uma semana sem más notícias lhe desejo