26 dezembro, 2011

Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
---------------------------------------------É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
---------------------------------------acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
-----------------------------------------------juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.
José Saramago 

14 comentários:

  1. Depois somente, ainda bem, pois agora nada poderá tirar o brilho que emana do fluxo contínuo das águas.
    Um grande bj querido amigo

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  2. Há pouco tempo de conhecer os três através das letras escritas por um deles. Aguardo a encomenda para depois comentar.
    Um grande bj querido amigo

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  3. Obrigada pelo belo poema de Saramago. Foi bom voltar a lê-lo.

    Beijo.

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  4. Belíssimo poema de Saramago.
    Lembranças.

    Rogério, a Natal já se foi mas vim desejar-te um Ano Novo de muitas alegrias, saúde, paz, amor e muita prosperidade à você e aos seus.

    Beijo, um abraço

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  5. Um dos mmeus textos preferidos...obrigada....
    O livro...ah, assim que puder eu arranjo, sem dúvida!

    Vou tentar vir ates do fim do ano...se assim não acontecer deixo já aqui votos de um 2012 abençoado.
    BShell

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  6. Um poema com alma de guerreiro.
    A busca do rio que corre em nós e faz parte de cada um.
    O barco e as árvores que formam parte das margens e dos limites até:

    "Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
    -----------------------------------------------juntarem às mãos."

    Bom ano de 2012

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  7. ..eis-me imersa no silêncio primordial, como sempre estive e gosto de estar… saboreio agora as densas mãos que sabiam escrever … fulvo das sílabas tonificadas de tardes por descobrir...

    Grata pela partilha. Deliciei-me...


    Boas Festas daqui

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  8. Saramago esmaga-me pela simplicidade e grandeza das coisas que aborda.

    O fascínio é tanto que quero comentar e nem sei como fazê-lo.

    Hoje deve vir no correio, assim espero, o seu livro. Se for o caso, haverá uma longa noite de leitura.

    Beijo

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  9. Caro Rogério
    Em cada excerto de Saramago que nos dá a conhecer em forma de texto ou poema, há sempre uma uma originalidade que mesmo que tenhamos lido o livro nos escapou.
    Provavelmente já lhe disse algo parecido.O meu caro merecia um "prémio" pela sua incansável divulgação. Sem duvida que conheço muito mais de Saramago do que antes e a si o devo em grande parte.

    O outro livro,o seu. Dei-o como prenda a mim próprio. Encomendei-o no Sábado.Espero que chegue amanhã.
    Abraço

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  10. E esta seita, quis secar a corrente deste rio, que transbordava de humanidade, coisa que eles desconhecem.

    José.

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  11. Saramago e Rogério.
    Rogério e Saramago.

    Um prazer lê-los.

    Feliz Ano Novo amigo

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  12. Meu amigo, como posso adquirir o seu livro autografado por si?
    Desculpe só agora vir aqui mas nesta época fico sempre com muuuuito que fazer :(
    Sei que me perdoa ;)

    beijinhos

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  13. Coisas belas, sim! "Fazer" um livro é uma coisa muito especial que Saramago traduz com estas palavras de água.

    L.B.

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