As pegas de ambos os sacos vincavam-lhe os dedos, deixando-lhes as pontas arroxeadas e um ligeiro formigueiro, sintoma de que lhe iam ficar dormentes. Ignorava isso. Se ligasse, seria mais penoso chegar com aquele peso vencendo a ainda longa distância até chegar a casa. O frio também fazia por não o sentir e quando este a venceu, sorrio por não haver Natal sem esse frio que vence sempre quem tão pouca roupa trás. “Mais um pouco e o esforço afastá-lo-á”, ia pensando à medida que o rosto se lhe afogueava e o corpo, um pouco, já transpirava. Tanto peso…: Uma garrafa de azeite, pequena; umas batatas; duas postas de bacalhau; latas de conserva; arroz; cenouras; um pequeno olho de couve… Ia mentalmente fazendo desfilar a carga, não para inventariar ou conferir se alguma coisa estaria em falta, - pois o dinheiro não tinha sobrado – mas para ir ocupando o espírito com alguma coisa que não fossem as últimas palavras do marido, na chamada que há pouco fizera e que fora interrompida por o pré-pago se ter esgotado. Parou para mudar de mão os sacos e encher o peito daquele ar frio que agora até lhe dava alento. Foi o suficiente para deixar que o livre pensamento, que até ali rejeitara, lhe invadisse a memória: “Sabes? Eu não receio… Eles pagam sempre, só que demoram a pagar. Logo que tenha algum dinheiro…” As chamadas para Luanda, de um telemóvel, são caras e o saldo insuficiente para ouvir o que, afinal, foi fácil adivinhar que teria dito o marido. “Qualquer dia o miúdo nem o conhece nem ele conhece o menino”, ia pensado enquanto chegava. Procurou as chaves e ia delineando o discurso, escolhendo as palavras, para explicar como é que um presépio o é com apenas um menino, uma vaquinha e um moinho. Seria directa dizendo que o dinheiro não chegara para todas as figuras. Resoluta, meteu a chave à porta. O filho tinha percebido que chegara e desceu uns lances de escada ao seu encontro para a ajudar. Ele, com um sorriso, pegou num saco, quase do seu tamanho e, torto e trôpego, subiu a custo quatro degraus. Pousou o saco para de seguida o levantar com duas mãos, com esse esforço estampado no rosto. Enfim chegados. A mãe pediu para ele guardar cada coisa em seu lugar enquanto lhe aproveitava essa distracção para esconder o pequeno presente que lhe tinha comprado. Esperaria a meia-noite do dia seguinte, não para outra coisa que não fosse cumprir a tradição. Mostrou então, ao filho, as peças para o presépio. O Menino, a vaquinha e o moinho. “Pão e leite, não faltarão a Jesus”, disse a mãe sem se aperceber o sentido exacto do que acabara de dizer, afastando Maria e José, daquele nascimento. Caiu nela. Como podia? E teve a ideia de procurar cartão, lápis de cor, aguarelas, lã de cor de cabelo e farrapos de tecido. Contou-lhe o propósito vencendo a incerteza da qualidade final de tão santa obra. Ela e o filho ficaram horas a fio, recortando e pintando todas as figuras que era costume figurarem. O tempo deixou de contar. O filho olhava mais as mãos ágeis da mãe que os olhos fixos e mal desenhados de São José. Ele gostava das mãos da mãe. Tanto… A certa altura quebrou aquele silêncio sem outras luzes que não fossem as que por dentro iluminava ambos e perguntou: “mãezinha, tu acreditas no menino Jesus?” Ela hesita na resposta. Pára no recorte da bossa do camelo de Belchior e diz séria: “Sabes meu filho, nós temos que ter força para acreditar em qualquer coisa”. E o menino voltou ao que estava fazendo, desenhando no rosto de Maria, um sorriso bonito como era o de sua mãe. Com um sorriso assim, estava certo que seria menor o esforço de sua mãe para continuar a acreditar, ainda que ele próprio duvidasse...
E ficaram ambos por ali, ele olhando o rosto de Maria, ela acertando pormenores no rio feito de prata e na ponte improvisada. Riram ambos do anjo que caíra e perdera a asa mal pregada. Estavam felizes e ela nem contristada por lhe ter mentido quanto à fé que depositava no menino.
E ficaram ambos por ali, ele olhando o rosto de Maria, ela acertando pormenores no rio feito de prata e na ponte improvisada. Riram ambos do anjo que caíra e perdera a asa mal pregada. Estavam felizes e ela nem contristada por lhe ter mentido quanto à fé que depositava no menino.
Rogério Pereira
Querido amigo Rogério.
ResponderEliminarDizer-lhe que o conto é lindo e comovente, que tenho os olhos cheios de lágrimas...não é suficiente para traduzir, em palavras, aquilo que estou sentindo. No entanto, mais não consigo dizer!
Acreditar em algo que nos dê força e ânimo para continuar esta penosa caminhada, é tudo o que mais precisamos.
Vou continuar a andar por aqui, para saber qual é a surpresa.
Beijos com carinho.
Janita
Ternurento. Muito bonito. Todos os adjectivos bonitos que aqui não escrevo. Porque me comoveste com o menino a desenhar o olhar de Maria...
ResponderEliminarUm beijo.
lindissimo
ResponderEliminarBjinhos
Paula
Rogerito, amigo, este conto de Natal é a sério! Nada tem a ver com o que eu transcrevi hoje lá para o mê blogui... Ou terá?
ResponderEliminarBeijinhos e continue a escrever assim!
Não conseguiria escrever uma mensagem para cada um, mas querendo que receba meu carinho e gratidão por mais esse ano de amizade e convivência deixo aqui meus desejos
ResponderEliminarQuisera
neste Natal
armar uma
árvore dentro do
meu coração e nela
pendurar, em vez de
presentes, os nomes de
todos os meus
amigos. Os amigos de longe e
os de perto. Os antigos e os mais
recentes. Os que vejo a cada dia e os
que raramente encontro. Os sempre lembrados
e os que as vezes
ficam esquecidos. Os
constantes e os intermitentes.
Os das horas difíceis e os das horas
alegres. Os que sem querer magoei ou,
sem querer me magoaram. Aqueles a quem
conheço profundamente e aqueles que me são
conhecidos apenas pelas aparências. Os que pouco
me devem e aqueles
a quem muito devo. Meus
amigos humildes e meus amigos
importantes. Os nomes de todos os
que já passaram pela minha vida. Uma
árvore de raízes muito profundas, para que
seus nomes nunca mais sejam arrancados do
meu coração. De ramos muito extensos, para que
novos nomes, vindos de todas as partes, venham juntar-se
aos existentes. De sombra
muito agradável, para que nossa
amizade seja um momento de repouso,
nas lutas da vida. Que o natal esteja vivo em cada dia
do ano novo que se inicia, para que as luzes e cores da vida
estejam presentes em toda a nossa existência e concretizem, com
a ajuda de Deus, todos os nossos desejos. Feliz Natal!
Feliz Natal!
Feliz Natal!
Feliz Natal! Feliz Natal!
QUE A HARMONIA, O SENTIMENTO DE SOLIDARIEDADE E COMPAIXAO, O RESPEITO E AS ALEGRIAS DESSA ÉPOCA DO ANO SE SOLIDIFIQUEM NO MAIS PURO AMOR, ENCHENDO DE LUZ TODOS OS CORAÇOES...
E QUE ESSA LUZ ALCANCE TUDO E TODOS... MUITA PAZ!
Com amor
Regina
Um sorriso grande para a Maria e o menino dela :)
ResponderEliminarFeliz Natal!
... temos mesmo que ter força para acreditar em qualquer coisa... mas está a ficar, cada vez mais difícil
ResponderEliminarBjos
Acho que vivemos na mesma galáxia... Tu sorriste e eu sorri também e concluí que, felizmente, o Natal ainda é o que era...pelo menos para alguns!
ResponderEliminarSanto e Feliz Natal para ti e todos os teus.
Bj.
Graça
Muito terno:o esforço para chegar com todo aquele peso, o fazer do pouco...o suficiente!
ResponderEliminarUm conto belíssimo e comovente como já acima foi dito.
Te abraço,
“d'O Gladiador”
O que você faz nesta vida ecoa na eternidade.
BShell
Rogériamigo
ResponderEliminarEta conto de Natal!!! - como diriam os Brasileiros
Fabulástico!!! - digo eu. Se há escritos que se registam e guardam para se voltar a ler e voltar a ler e voltar a ler, este é um deles. Muitos parabéns !
E muito obrigado pelo que postaste no Rochedo do Amigão Carlinhos.
E uma pergunta: quando voltas à nossa Travessa? Fazes lá falta.
Abç
Este sim é um belíssimo conto de Natal, um Natal real e tão feliz, apesar de tudo, porque tem o amor de um menino que desenha o sorriso de sua mãe.
ResponderEliminarHoje ainda não dormi porque desde o princípio da noite, até mesmo desde o fim da tarde, que muitas coisas aconteceram e porque ao passar por acaso por aqui senti que não terminaria o já longo serão sem ler este conto, adivinhei-o e não me desiludiu em nada, tinha todos os ingredientes que eu esperava.
Beijos Rogério
Caro amigo Rogério,
ResponderEliminarvocê tem o dom de me comover com os seus escritos, é um malandro! ;DD
Caro, votos de um Feliz e Santo Natal, para si e família, e um (melhor) ano de 2012!
Abraço,
Ricardo
Alerta, Alterei agora mesmo o texto original editado ontem. Peço desculpa, mas teve de ser...
ResponderEliminarRogério, adorei o seu conto de Natal, tocante...
ResponderEliminarAgradeço a sua presença e palavras deixadas ao longo deste ano, lá no Oceano.
Desejo-lhe um Feliz Natal e um excelente Ano Novo.
Abraço
oa.s [cecilia]
Há contos que geram indiferença em quem os lê.
ResponderEliminarEste não!
Prendeu-me. Tive que o reler. Com gosto o fiz.
"...E o menino voltou ao que estava fazendo, desenhando no rosto de Maria, um sorriso bonito como era o de sua mãe. Com um sorriso assim, estava certo que seria menor o esforço de sua mãe para continuar a acreditar, ainda que ele próprio duvidasse..."
Rogério!
ResponderEliminarEste é um conto verdadeiro, porque muito do que está aqui escrito eu vivi na realidade.
Um dia já muito mais tarde, deixei uma filha com poucos meses de idade e fui em busca do que não havia aqui, pelo menos para mim, regressei depois de um ano a minha filha chorou umas duas horas seguidas, acho que era com mede mim. Nunca mais fui, na altura achei que fiz bem, hoje acho que fiz mal, devia de a ter levado para o pé de mim.
Rogério.
ResponderEliminarVejo que a parte alterada foi o final.
Assim também não está mal...está lindo e de acordo com o sentir do autor. :-))
Mãe e filho a rir felizes.
Ela sem constrangimento pela falta de verdade quanto à crença no Menino e o menino feliz por ter pintado um sorriso no rosto de Maria: a Mãe do outro Petiz.
Rogério, aquilo que fazemos com o coração sai sempre bem, seja com muita ou pouca convicção...
Beijinhos.
Algo me diz que a surpresa tem a ver com o seu livro.
excelente
ResponderEliminare riram-se com a queda do anjo.
acho que o mais importante é o espírito de natal: fazer com que o outro se sinta feliz, com esforço ou com dúvidas.
um feliz Natal
“Sabe meu amigo, nós temos que ter força para acreditar em qualquer coisa”
ResponderEliminarEu acredito na força da amizade!
Por isso estou aqui para lhe dar uma abraço amigo, que mais não consigo pois estou muito comovida...
Adorei o conto, Rogério! Lindo!
ResponderEliminarbelo e comovente conto. muito bem escrito, com equilibrio e sabedoria...
ResponderEliminargostei muito.
privilegio meu a tua amizade.
abraços
Um conto como outros pintado de ternura e carregado de muita coragem.
ResponderEliminarSenão fosse a coragem não tinha o encanto de todo o transporte resistindo ao frio e às necessidades do presépio e do interior de cada um dos participantes.
Como outros contos, o Rogério conseguiu levar-nos a essa carga e essa dúvida.
Afinal o Presépio faz bem a todos e remete-nos para a criança que nos habita.
Adorei, adorei o vocabulário!
ResponderEliminarTudo o que já foi dito sobre esta ternura.
ResponderEliminarObrigada!
Beijo
gostei!
ResponderEliminarum abraço
Obrigada, somente isso, obrigada,
ResponderEliminarUm bj no teu coração
Simplesmente Lindo!
ResponderEliminarHá muito que não passava por aqui, sinto-me grata de ainda assim continuar a fazer parte da sua árvore de natal.
Beijinho e Feliz Ano Novo!
Ana Martins