Sinopse: Tudo começa com "Ele" a acordar num dia ímpar, em que tudo se resolve para os dois. "Ele" e "Ela", enamorados, rendem-se à paixão e, a partir daí, durante 40 semanas, os acontecimentos sucedem-se numa vertigem de ocorrências e fenómenos que o mundo cientifico, mobilizado, não consegue explicar. O mundo vai ficando diferente, não só para os personagens, mas para toda a gente. Deus, não sendo maltratado, não fica bem neste retrato por mim contado. Uma história impossível? Impossível é apenas aquilo que ainda não aconteceu...Viria a ser editado pela Pastelaria Studios Editora - Outubro 2012
O primeiro sintoma – Levantou-se mais cedo de que era seu costume e sentiu-se como
há muito não se sentia, sem contudo se dar bem conta de como de facto era o seu
sentir. Lavou-se, barbeou-se e, como sempre, encaminhou-se para a cozinha onde
preparou o frugal pequeno-almoço. Bebeu a caneca de leite olhando através da
janela. Deu um primeiro olhar em volta e depois um outro, detendo-se em todos
os pormenores do que se avistava dela: a praceta, os logradouros, o carro do
vizinho da frente que saía, a rua transversal onde o trânsito ainda era raro. Fixou-se nos pombos
que sempre por ali esvoaçavam e depois no Tejo, ao fundo. Encheu os pulmões do
ar fresco da manhã. Ia estar um maravilhoso dia de fins de Junho, pensou. Bebeu
o resto do leite e foi-se vestir. A mãe, que se cruzou com ele no corredor,
deu-lhe o sorriso matinal, “tão cedo?”, comentou como quem cumprimenta.
Respondeu com uma piada a que ele próprio achou graça e sorriu, por dois
motivos, pela própria graça dita e como resposta ao cumprimento. Poucos minutos
depois saía. No caminho cruzou-se
com o vizinho, que vivia no terceiro andar do prédio ao lado do seu.
Cumprimentou-o sorridente com “bom dia, passou bem” que nunca antes acontecera,
em tantos anos de vizinhança indiferente. Mal pronunciou um “Bom dia, tudo
bem?” e continuou o caminho com destino à esplanada, onde contava ler o jornal
e planear como preencher o dia. Ao passar junto ao logradouro, o da palmeira
grande, no canteiro que lhe desenhava o limite com o empedrado, deu-se conta
daquilo que, se antes existia, lhe passara totalmente despercebido. As plantas,
não muitas, mas todas as que havia e que rodeavam os agapantos roxos e brancos,
apresentavam hastes novas e viçosas. Hastes novas, viçosas e de cores
diferenciadas das hastes velhas ou se não velhas, das que já existiam antes
destas e que pareciam ser rebentos novos. Novos e estranhamente mais belos. Pareciam
enxertos a partir dos quais a planta primitiva deixaria ser o que até ali tinha
sido. Calhando a natureza era assim que procedia sempre que qualquer planta
crescia. Ele é que estaria diferente e hoje, por qualquer inexplicável razão, é
que de tal se dera conta. Curvou-se e estendendo a mão, partiu uma das hastes
novas. A seiva projetou-se como se dentro dela uma força inusitada a expelisse
em jorro. Estranhou, sem ter a certeza de ter razão em estranhar.
Tirou um cigarro e
prosseguiu, esquecendo aquele pequeno reparo mas culpando-se de nunca reparar
nas coisas belas e de nem sempre saber desfrutar delas. Ia a meio do seu
primeiro cigarro e sentiu-se ligeiramente agoniado como se o seu organismo pela
primeira vez, em já muitos anos de vício, invertesse o sentido do apelo, quase
exigência, de tão longa dependência. Deitou fora o meio cigarro, pensado que
lhe saberia melhor o que fumaria depois de bebido o café. Entrou no centro
comercial e comprou o jornal. Desceu ao piso de baixo, onde ficava a cafetaria
e no balcão, fez o cumprimento habitual e o habitual pedido: “Pago dois e levo
um”. A empregada, mil vezes o ouvira pedir assim o seu primeiro café,
antecipando o pagamento de outro que beberia cerca de uma hora depois, mas
comentava sempre aquilo que considerava ser um pedido com espírito engraçado.
Saiu com a chávena na mão. A saída naquele piso dava acesso a uma pequena
esplanada. Pousou o café e o jornal e sentou-se no seu canto. Antes mesmo de
passar os olhos pelos títulos do dia, tomou a decisão de passar à procura mais ativa
de emprego. Desacreditara que o envio do curriculum poderia dar qualquer
resultado prático. Nem bebeu o costumado segundo café, que ficara pago, fez-se
à vida. Tudo indicava que aquele dia ia ser diferente, e foi com essa certeza
que dali partiu
Mais sintomas
– Contrariamente ao sentimento que nela se tinha instalado, de medo e
insegurança, naquela manhã sentia-se diferente. Não, não era o retorno da
confiança nem o instalar de qualquer ideia nova quanto ao futuro. Não sabia
explicar. Não havia razões para ter outro sentimento do que aquele que há mais
de um mês a tomara. Da sede já tinham chegado ordens para antecipar o fecho dos
projetos de investigação em curso, e os dois estagiários tinham sido já
dispensados e cortadas as bolsas para financiar mais ocupações de recém-licenciados.
Tinha falado com o
namorado há minutos e ambos tinham comentado esse bem-estar inexplicável. “Vem
da alma”, disse ele e ambos riram. Tinham em comum a certeza de que compete às
almas tarefas menores na procura da sobrevivência do corpo, entregue às
vicissitudes de um tempo pouco favorável ao que todos designam por futuro.
Combinaram encontrarem-se ao fim da tarde e desligaram com a brincadeira do
costume: “Desliga tu”, “Não, tu primeiro”, para de seguida desligarem ambos ao
mesmo tempo.
De momento estava a
redigir o parecer da instituição sobre o último relatório referindo alterações
quanto às previsões do aumento de mais uns centímetros do nível da água do mar.
Fazia-o com o desagrado de quem pratica uma rotina que nada tem a ver com trabalho
científico. Até os jornais do dia já referiam, em antecipação, a notícia sobre
aquilo a que pomposamente chamavam parecer. Importante seria, isso sim, dar
continuidade aos estudos de impacto sobre os ecossistemas marítimos e sobre a
fauna costeira, quer do aumento desse nível, quer em consequência do
aquecimento dos mares.
A Marília,
funcionária administrativa, veio interromper-lhe os pensamentos e o trabalho.
“Doutora, o professor pede, para quando puder, passar lá no gabinete”. Não
tinha mais dúvidas, era chegada a temida mas esperada altura. Por educação e espírito metódico tinha aprendido e desenvolvido a espontaneidade de associar
às observações sistemáticas de uma tendência os efeitos inevitáveis sobre a
forma de consequência: o professor iria anunciar-lhe que o seu trabalho ali
tinha terminado. Que iria deixar de ter verba para poder ser continuado. Alisou
o cabelo com ambas as mãos. Tinha o consolo daquele inexplicável bem-estar
interior e quis colocar na apresentação alguns retoques para que o seu parecer
estivesse ao nível do seu sentir. Ensaiou algumas palavras de circunstância e
que seriam de manifestar compreensão. Rejeitou liminarmente a ideia, que chegou
a passar-lhe pela mente, de se insurgir contra a atual situação. De resto não
saberia exatamente que palavras usar nesse cenário de reação.
“Posso?”, perguntou
ao entrar no amplo gabinete do professor. “Senta-te aí, e espera só um pouco.” Sentou-se
e esperou, procurando não pensar em nada. Não pensado não corria o risco de se
afastar do discurso de resignação que tinha preparado. Enquanto esperava olhou
em redor para perceber a possível origem daquele odor ligeiramente florado,
embora ténue, que sentira até mesmo antes de entrar. O professor não usava
flores no gabinete e nem tinha por hábito usar qualquer perfume. Suspendeu a
procura percebendo que o professor a olhava fixamente.
O ar dele era
carregado, a testa ligeiramente franzida e enquanto reconduzia os óculos à
posição certa, num tique comum a todos os que usam óculos, iniciou a conversa
com uma voz pouco condizente com o seu ar sério, pois era como se estivesse na
sala de aula, a transmitir em tom didático uma teoria. “Doutora, temos aqui
matéria de elevada preocupação”. Pareceram-lhe aquelas palavras um tanto
deslocadas para iniciar o discurso esperado, mas admitia que o professor
estaria a passar, tal como ela, por uma experiência nova e que, para ele também
dolorosa, carecia de rodeios. “Desde ontem que estão a chegar, por via
diplomática e com classificação de reservado, relatórios que têm origem em
vários centros da comunidade científica.” Estendeu-lhe uma pasta “Tem tudo aí,
leia e prepare-se para uma reunião que está a ser coordenada pelo Porto, mas
que se vai realizar aqui com gente de todo o lado. A ministra da tutela já está
inteirada e virá assistir ao final da reunião para participar nas conclusões.
Os diretores das diferentes instituições e centros estão já a trabalhar sobre
esta mesma informação” à medida que o professor ia falando as feições iam-se
descontraindo como se aquela simples transmissão lhe aliviasse a tensão provocada
pelo segredo que estava a ser partilhado. O mesmo se passava com ela que, à
medida que o ia ouvindo, se iam dissipando os receios para no lugar deles se
instalar a curiosidade e a perceção de estar perante questão de grande gravidade:
“E de que se trata, professor?”, “Todos esses documentos, oriundos das mais
diversas partes do mundo, referem baixas impressionantes na salinidade da água
do mar. Há dados, como os do golfo de Omã, onde a água é praticamente a de um
rio… e nem uma única espécie marinha a ser atingida a ponto de essa alteração
lhe causar a morte. Há no meio dessa papelada relatórios de especialistas de biologia
genética e biologistas moleculares que dão conta de mudanças inexplicáveis em
todas as espécies analisadas. Por enquanto apenas foram detetadas modificações
morfológicas visíveis em dois pontos muito distantes, um no Chile outro na
África do Sul… a comunidade piscatória desses países ainda não reagiu e a
imprensa até há duas horas atrás não
sabia de nada.” Interrompeu e olhou o relógio para depois propor “Vá doutora,
já passa um pouco das 11, se achar bem mandamos vir alguma coisa para comer e
ficamos por aqui. Acha que 2 horas lhe bastam para ler tudo isso e falarmos de
seguida? “ A resposta foi um sorriso, ambos sabiam bem quanto gostavam, uma e
outro, trabalhar sob pressão…
Como se fosse a primeira noite – Ele e ela encontraram-se à nova hora aprazada,
depois de ela lhe ter ligado a dizer que iria chegar só à hora do jantar e que
jantariam no mesmo restaurante onde dois anos antes o fizeram juntos pela primeira vez. Durante a
espera do que escolheram para comer e durante o tempo em que comiam não falaram
de outra coisa para além do que tinha mudado as suas vidas. Ela falou,
vagamente, do projeto e da reunião convocada de emergência. Ele falou, sem
detalhes, do conteúdo do seu novo trabalho. Falaram deles e dos planos de vida
que imaginaram passar a poder ter. Saíram da cidade. Para onde foram
prolongaram a noite, trocando gestos de afetos, alongando beijos e caricias até
os corpos se darem uma e outra vez, sob o olhar conivente das flores cujas
pétalas se ruborizavam contrastando com as cores daquele leito de erva
refrescada pela brisa da noite e pelo humos de uma terra que se agitava, ela
também, sob a volúpia dos amantes. Amaram-se como se fosse a sua primeira
noite.
(continua)
Tudo está bem quando acaba bem, no amor.
ResponderEliminarMuito bom, Rogério!
Beijinhos :)
Não acaba aqui, o amor
Eliminar(seja lá isso o que for)
é uma passagem
para a outra margem
O conto ainda acaba melhor...
Um conto muito interessante. que gostei de ler e que me instigou a curiosidade pela continuação. As águas do mar ficarem doces, sem que todas as espécies marinhas sofressem alterações, era a resolução do problema para a falta de água do planeta. Desde que claro o homem não continuasse a poluí-lo.
ResponderEliminarEspero a continuação.
Fez leitura atenta, mas não despreze nunca os primeiros sinais...
Eliminarvai ver que a segunda parte lhe agradará ainda mais!
Li atentamente a primeira parte da tua História Impossível e gostei muito... também eu penso, às vezes, que escrevo poemas impossíveis...
ResponderEliminarBeijo!
Maria João
Que pena
Eliminarque seja impossível um poema...
Os teus alterariam o Mundo
... mas eu escrevo-os, Rogério! :)
EliminarEsse impossível, que tu defines como o que ainda não aconteceu, é quase sempre a minha temática favorita!
Bjo!
Mª João
Gostei dos ingredientes. Espero que a leveza do "ar", a atmosfera positiva desse primeiro dia, sejam capazes de tornar possível uma certa história que parecia mesmo impossível.
ResponderEliminarFico à espera do resto.
Bj.
Não haverá surpresas quanto à impossibilidade
Eliminarde o Mundo mudar
da forma como vou contar...
Só há uma esperança
é que seja a humanidade a produzir tal mudança
Estou a pensar... que gostava tanto que o que está a acontecer nesta história fosse possível.
ResponderEliminarVou ler o final
beijinho
Vou passar para o final.
ResponderEliminarAgora, com esta escrita, nada é impossível...