Três meses depois – A médica ia dando pequenas instruções e olhava atentamente o monitor por onde ia seguindo os pequenos movimentos do feto, sempre que premia a barriga. Parecia não estar tudo bem mas como não conseguia interpretar o que via, para além do que considerava normal, comentou “está aqui um rapagão” e ia pensando se iria recomendar ou não a antecipação da próxima ecografia.
Ele olhava embevecido ora o rosto dela ora o monitor, onde se percebia que a médica ia fazendo pequenas operações e registos. Depois fez uma impressão cuidada e guardou o máximo de imagens em arquivo, muito para além do recomendado pela direção clínica.
Passou receita de exames ao sangue, sem explicar o motivo, nem ser questionada por isso e despediu-se entregando as receitas, papeis e a cópia da ecografia. “Daqui a um mês, quero voltar a vê-la.” O casal olhava com o olhar com que olham os casais que tomam a consciência de irem ser pais. As mãos entrelaçaram-se e saíram conversando, felizes e se questionando sobre o nome a dar ao menino. Fechada a porta, a médica mandou avisar que não estava em condições de ver as duas grávidas que aguardavam a consulta, alegando razões da sua própria saúde. Passados curtos minutos entrou no gabinete a diretora clínica, que entretanto chamara. “Então, que se passa?”, “Veja isto, é de uma parturiente com 11 semanas e meia e que acaba de sair…” Passaram as duas a ver, repetida e demoradamente a sequência de imagens sem chegar a qualquer conclusão. “Parece normal e nesta primeira “eco” nem sempre, para todos os casos, é possível ter a mesma nitidez”. A doutora apenas questionava: “Mas os olhos? Os olhos?” A resposta obtida manteve-se inconclusiva.
Quatro meses depois – As notícias sucediam-se vertiginosamente. A cada novo alarme ou simples referência a mais um fenómeno inexplicável, correspondiam quase sempre notícias credíveis e tranquilizadoras asseguradas por instituições competentes e oficiais que sustentavam não estar em risco a saúde pública, nem os equilíbrios ecológicos e outros. Nem sequer havia a registar que a extinção de elementos considerados fundamentais não tivessem sido substituídos por outros, alternativos, para a sustentabilidade dos sistemas necessários à vida. Foi assim com a mudança radical ocorrida nos mares, em que se contavam apenas alguns raros locais onde subsistia a água salgada. A maior parte de todos os oceanos passara a ser constituída por água doce sem que as espécies marinhas, peixes, crustáceos, bivalves, algas e corais não se tivessem adaptado com a mesma rapidez com que a mutação evoluía.
Em todo o mundo a comunidade científica mantinha-se em atividade, 24 horas por dia, e em ligação permanente, com milhares de fóruns ocorrendo em simultâneo, na sua maior parte com recurso à vídeo-conferência. Se dias antes o mundo científico tinha sido abalado pela confirmação de estarem a aparecer diariamente mais elementos químicos antes não conhecidos e em risco de conflituar com a lógica da tabela de Mendeleev, vinha agora a União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC) dar conta de se estar a encontrar uma nova harmonia para todos os elementos da natureza. Sobre o que se passava com a cadeia alimentar tinha a Organização Mundial de Saúde dado extensa lista de alimentos que podiam ser consumidos apesar de se verificar a existência, em todos eles, de mudanças em consequência da deteção de novos ingredientes na sua composição organológica. Em anexo, informava estarem em curso investigações aturadas sobre a composição da estranha erva rasteira, semelhante a beldroegas, e que começara há cerca de dois meses a aparecer em certas zonas de diferentes desertos, dos existentes em todos os continentes. Os primeiros testes, uns conduzidos por cientistas, outros resultantes da observação posterior às consequências de comportamentos incontrolados de animais e populações locais que ingeriam aquela estranha erva, apontavam para a quase certa possibilidade de, sem qualquer risco, poder ser comestível sem qualquer efeito de toxicidade ou outro, adverso. Parecia, e cada nova descoberta confirmava o que parecia, que um ser sobrenatural corrigia a natureza. Dando-lhe um odor, um dispor e novos equilíbrios no mundo. Em poucos meses a água deixou de ser um bem escasso, o ar passou a revitalizar os organismos e a alimentar sem reservas todos os seres vivos, passou a haver sustento onde a mingua há muito se instalara.
Tudo isto, ele ia pensando, passando ao lado da notícia do dia: “As reservas de petróleo na Arábia Saudita foram consideradas ineptas para todo e qualquer uso. O rei saudita, contudo, resiste em autorizar a paragem dos trabalhos de extração, esperando que um milagre altere esta nova realidade. Entretanto os países da OPEP reuniram de emergência, para analisar a situação. ”
Sete meses depois – Ela ainda não tinha chegado. Solicitada a todo o momento e porque a gravidez evoluía sem quase se dar conta que portava no ventre um novo ser, ela aceitava todas as pequenas e grandes tarefas, desde as de laboratório às de discussão ou divulgação dos processos de investigação dos projetos que liderava. Ele, para encurtar a espera, ligou a televisão num canal de cabo, para as últimas notícias. Parte das que iam dando não lhes ligava e o pensamento ia-se dispersando por outras coisas. Não lhe saía do sentido a consulta de semanas atrás nem a imagem a três dimensões da última ecografia do filho, dos comentários e recomendações da equipa clinica e dos relatórios que lhe tinham apresentado… Para desviar a atenção desses pensamentos esforçou-se por recordar os impactos dos últimos acontecimentos e a desordem que ia pelo mundo: o colapso do sistema financeiro, a suspensão de toda a atividade bolsista em todas as praças e as primeiras reações dos governos dos países ricos, céleres a imputar a responsabilidade de alterações tão profundas a nível planetário associando-as a atos terroristas e ao pretenso uso de armas químicas. Lembrou como tais explicações se voltaram contra os países que as deram, pois o mundo assim se encaminhava para ser perfeito. Suspendeu os pensamentos para fixar a atenção numa reportagem: grandes nomes de reputados políticos, grandes empresários, banqueiros e titulares de grandes fortunas, mais de cem personalidades conhecidas por pertencerem ao Clube Bilderberg, permaneciam reunidos pelo quinto dia consecutivo. Os donos do mundo não sabiam que fazer dele.
Nove meses depois - Entraram no hospital sob escolta e elevado número de agentes afastavam a multidão de repórteres de agências internacionais, jornais e cadeias de televisão de todo o mundo. Lisboa tinha atraído mais de dois milhões de pessoas não sabendo elas próprias ao que iam. Estava acordado com todas as autoridades, que nada passaria para o exterior. Até a conferência de imprensa da equipa médica não estava confirmada. Dentro do hospital universitário, na ala que tinha sido a escolhida para o esperado parto, tudo parecia seguir um guião pré-estabelecido dada a certeza e calma com que os preparativos decorriam. Não fossem as quatro câmaras de filmar e os múltiplos cabos espalhados e tudo estaria como costumava estar uma sala de partos. Nos dois anfiteatros, situados no piso inferior, repletos de médicos e outros especialistas, conversava-se em várias línguas, como se sussurrassem orações a um deus que todos consideravam ter reconhecido que se enganara ao ter produzido o primitivo universo. Outros, poucos, davam-lhe o protagonismo dos milagres ocorridos, depois de terem inicialmente apontado que o que estava a acontecer ao mundo era obra do diabo. Sustentaram essa ideia até se perceber que as profundas e radicais mutações vinham em auxílio da humanidade e de novos equilíbrios no mundo.
Ela, que sempre fora bela, tinha, na serenidade do rosto, confirmada essa beleza que a gravidez acentuara. Ele segurava-lhe a mão com o carinho de sempre. O chefe da equipa clínica veio avisá-los que tinham mais uns minutos e depois teria início o parto, a que ele não podia assistir. Quase em simultâneo, os altifalantes dos dois anfiteatros faziam o mesmo aviso. Assim, poucos minutos decorridos, era-lhe aplicada a epidural e uma ténue sedação. O protocolo dos procedimentos cirúrgicos da cesariana foi seguido meticulosamente pela equipa experiente. O que ia acontecer era, de todos, conhecido. Naquele momento, para aquela equipa não se tratava de enfrentar surpresas mas de usufruírem o privilégio de serem os primeiros a contactar com um novo ser. Um ser diferente de toda a gente. O primeiro de uma geração que deixaria para trás a forma conhecida até então como normal.
O bebé chorou, mas os olhitos pequenos pestanudos e bem desenhados permaneciam fechados. Pela primeira vez aconteceria que quando eles se abrissem para o mundo, o mundo se espantaria por estar a ver assim: Dois olhos iguais aos demais e, dentro de cada um, duas pupilas brilhantes e pequeninas, para alcançarem mais do que se lhe quisesse mostrar.
Um ano depois - Dos mais de 17 milhões de nascimentos registados, nem um só registava os olhos como os tinham os pais dos novos nascidos. Estudo realizado dava a evidência científica, podendo-se ler no relatório distribuído à imprensa: «Das duas pupilas dos novos seres, a mais pequenina, apresenta uma espécie de nervo óptico que liga o olho ao coração. Assim, é provável que estejamos em presença de uma nova humanidade, e esta possa estar mais apetrechada para lidar com adversidade ou até a anular. Só nos resta esperar».
Ele e ela sorriram orgulhosos, tinham sido os primeiros pais de um Novo Mundo
______________________
Nota final - Na versão original publicada o conto não termina exactamente assim, alterei depois de ter lido isto
Que lindo, Rogerito!! E que suspense conseguiu criar! Muito bem! Gostei.
ResponderEliminarPena que isto seja mesmo um conto impossível
Eliminarse queremos mesmo um Mundo Novo
teremos que ser nós a a criá-lo
e... crianças diferentes não é fácil
é que somos nós a criá-las
e as ensinar a olhar... com o coração
Muito bonito o conto. Pena que seja apenas ficção. Porque o que o mundo está a precisar é de uma nova humanidade. Poderíamos ser nós a formar uma humanidade mais justa. Mas como pode o homem inculcar nos seus filhos, sentimentos que ele próprio não tem?
ResponderEliminarGostei muito. Penso que deveria brindar-nos mais vezes com os seus escritos.
Um abraço, e um feliz dia
Elvira,
EliminarSobre o escrever mais vezes, a questão
passa pela opção
ou mudar o mundo
ou escrever sobre isso
E é difícil o equilíbrio
O impossível também ao alcance das tuas mãos
ResponderEliminarVenham mais cinco
...ao alcance das nossas mãos
Eliminarque venham!
Impossível!
ResponderEliminarDo caos ao cosmos é muito, muito mais longe.
Perto, só o sonho, e nele os sentimentos mais belos.
Um beijo
Sentimentos?
EliminarSentimentos, nós temos...
O que falta é construir o sonho
Bjs
Dos pequenos olhos pestanudos
ResponderEliminarSurgiram faíscas que iluminavam o entorno.
Os pais, entre orgulhosos e assustados,
Admiravam e acreditavam que o futuro já chegara.
Agora, só restava esperar...
Um grande bj querido amigo
Gisa,
EliminarNão tiremos por conclusão que só restaria esperar...
Mesmo se o impossível acontecesse, a espera é sempre um risco.
Lembro que para uma população do mundo que ronda os 18 mil milhões, num ano nasceram 17 milhões de seres que passaram a ver com o coração... são uma minoria. Uma pequenina e vulnerável minoria...
A tua história é impossivelmente cativante...
ResponderEliminarQuis "brincar", dizer qualquer coisa sobre a sinestesia, mas... confesso que me ocorreu talvez nem sequer brincasse se falasse nela...
Abraço grande!
Maria João
A sua grande vontade de mudar o mundo está aqui nesta bela história.
ResponderEliminarDava um excelente guião para um filme de ficção.
Um beijinho
Fê
Olhar com o coração!
ResponderEliminarQue bom seria se fossemos assim!
Beijinhos, Rogério, e parabéns pela história cheia de humanidade e esperança. :)
Esta segunda parte é de sonho. A estrutura temporal dá uma grande dinâmica ao conteúdo e linha a linha, parágrafo a parágrafo, dá para sentir a intensidade da acção...
ResponderEliminarUm conto cheio de esperança num mundo melhor... Vamos lá tentar mudar o Mundo...
Abraço e parabéns pelo conto. Gostei particularmente da segunda parte, normal até porque a primeira teve de arcar com os "custos" da introdução e dar início ao desenvolvimento do conto.