11 setembro, 2019

Receita a pedido, para escrever um livro


Foi-me feita uma pergunta extensa (considerando a minha experiência) a qual foi colocada exactamente assim: «como é que estrutura um "conto maior", como é que o desenha, como é que constrói o Mundo, os personagens, os temas, o fio condutor?»
O que não faltam por aí são receitas, mas esta é a minha*:
- Primeiro, siga a imagem, vire-nos as costas quando sentir que a "coisa" já está madura para passar da mente à escrita. Nessa altura, uma primeira versão do livro deverá ser escrita de fio a pavio, sem interrupções. Deixe decantar. Depois, passe todo o tempo a colocar a escrita a seu contento. Por tanto, o primeiro conselho é que pense em tudo antes, ou correrá o risco de não passar da primeira página...
- O chamado desenho do livro, prende-se com o seu contexto e com o seu objectivo. O contexto pode ser qualquer, pode ser do passado, do presente ou do futuro e referido a um qualquer lugar. Há uma exigência primária, o conhecê-los bem. Nada dá mais descrédito ao escrito que a percepção da ausência do sentir do espaço e do tempo. Se escolheu ambas com a limitação do desconhecimento, investigue, leia, pergunte. Quanto ao objectivo do livro, este é inteiramente da sua conta, mas por favor escreva algo que me ajude a mudar o mundo, caso contrário porei o seu livro logo de lado.
- Os personagens. A sua escolha nem sempre está associada ao contexto em que a trama se desenvolve. Se for passado, tem de ter gente que interesse ao presente. Se for futuro, igualmente. Não pense numa tonelada de gente. Basta um pequeno núcleo. Se for o seu primeiro livro, meta-se nele dentro e que seja um desafio ao estilo "conheça-se a si mesmo". Os outros personagens eleja-os de entre aqueles que julga conhecer bem e a quem admira (ou antes pelo contrário), como por exemplo, a sua médica de família, um seu professor do tempo da escola primária, um vizinho, o seu administrador de condomínio, frequentadores da mesma esplanada ou do local onde compra o jornal. Troque as profissões e use outros nomes, use deles o conhecimento que tem da sua relação e do seu temperamento.
- Quanto ao tema este importa menos que a trama. O tema terá a ver com a forma em como olha o mundo e o que nele o preocupa, a trama é a forma em como desenvolve o enredo da história. É o tal fio condutor. E aí, meu caro amigo, seja criativo. E porque mais não sei, mais não digo.
Segue outra receita:
«Contamos histórias, pois claro. Contamos a nossa própria história, não a da vida, não a história biográfica, mas essa outra que, em nosso próprio nome, dificilmente teríamos a coragem de contar, não por dela nos envergonharmos, mas porque o que há de grande no ser humano é grande de mais para caber em palavras, e aquilo em que somos geralmente pequenos e mesquinhos é a tal ponto quotidiano e comum que não levaria qualquer novidade a esse outro grande e pequeno que é o leitor. Talvez por tudo isto alguns autores, entre os quais me incluo, favoreçam, nas histórias que contam, não a história dos que vivem e vêem viver, mas a história da sua pró-pria memória. Somos a memória que temos, e essa é a história que contamos.»
José Saramago
*A receita é fraca, pois a minha experiência é curta. Além do tal livro publicado, destaco este conto (com uma sinopse e contado em três partes),  este outro e ainda um terceiro (em duas partes), de entre uns tantos publicados ao domingo, neste espaço.

5 comentários:

  1. Nem quero acreditar que na Net já há receitas para escrever contos.

    Já li vários escritos do Rogério e não me parece que tenha precisado de receita.
    O seu livro já editado não conta para Conto, foi obra de coisa vivida e mui sentida.

    Os outros sim, e são muitos e bons!



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  2. Engraçado não sabia que havia receitas para escrever um livro, mas pensando bem, já há receitas para tudo e mais alguma coisa.
    Não sei se tem ou não receita para o que escreve, sei que gosto muito daquilo que já li seu.
    Abraço

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  3. A vida é feita de experiências, vividas e trocadas. Aquele que pensar tudo saber ou tudo fazer sem a ajuda de ninguém, arrisca-se a nunca passar de um pobre coitado "com a mania".

    Esta sua publicação, é uma oferta para todos aqueles que gostam de escrever, a oferta de uma experiência pessoal. aceita-a quem quer...

    Por mim, agradeço, é sempre agradável ver e aprender com quem tem mais anos de escrita. Conheço muito boa gente com a arte da escrita mas poucos apresentam obra feita.

    Acima dessa receita, que prometo experimentar, está uma faceta do Rogério que desconhecia e acabo como que, a estar a ler os seus textos (contos) pela primeira vez. Ficou-me a faltar o livro, vai acompanhar-me nas férias, mas de tudo o que li hoje, fica o desejo de ler mais textos criativos seus.

    Aquele abraço

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  4. Não escrevo contos em prosa e muito raramente conto histórias através dos meus poemas.

    hummm, talvez aquela trilogia "Amor e Dor" - três sonetos que estão publicados no "Até a Neve Chorará Num dia Quente..." - possam ser considerados um conto. Um pequeno conto em torno de duas personagens invariavelmente inseparáveis. Talvez sim. Talvez não.

    Conforme dizia, não escrevo contos, mas gosto muitíssimo de ler os que tu escreves.

    Abraço

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