02 março, 2012

Lembranças de um pai de filhas...

I
Nunca tivera daquelas exclamações de que ter filhas, miúdas, mulheres, era uma dor de cabeça, uma chatice. Nunca as teve porque nunca assim pensou, sendo mais insistente o pensamento de que ter filhos, independentemente do sexo, era, mais de que uma responsabilidade acrescida, uma exigência de conduta. Sempre achou que o exemplo era a maneira mais pedagógica de educar e que esse valor, bem partilhado pela sua mulher e doseado com outros, daria às filhas as armas, porque de armas se trata, para se afirmarem na vida. Lembrava-se que, no dia em que aguardava o nascimento da sua filha-do-meio, nessa mesma clínica, uma parturiente irrompeu em soluçante choro, audível na pequena sala de espera para onde davam as portas todas, a dos quartos e a sala de partos. Aí se ouviam os gritos da mulher clamando de ser desgraça, castigo de Deus o ter tido outra menina. "Aí, quem pode ouvir agora o meu homem..." Este pungente lamento foi mais claro pois coincidiu com a saída da enfermeira que, supunha ele, lá dentro lhe dava assistência. Ia tirando as luvas de borracha e com voz embargada, quase sussurrada dizia como se acabasse de ser insultada: "Alguém que venha tratar esta mulher, eu já a não quero nem ouvir."
II
O jantar estava praticamente no fim. A filha-mais-nova , numa posição que lhe era peculiar, ia garfando as ultimas porções do que tinha sido a refeição. A mãe ia trazendo, para sobremesa, restos do aniversário há pouco passado: bolo de coco, mousse de chocolate, salada de frutas, gelatinas, verdes e vermelhinhas, que a avó Mimi tinha cortado aos cubinhos. Ele ia levantando a mesa e as duas outra filhas permaneciam suspeitosamente silenciosas ocupando as mãos e os olhares por tudo o que estava na sala, com instável concentração. Ele sentou-se.   A mãe sentou-se. A Lobita, a cadela que conquistara até a afeição dele, estirou-se calma contrariando o nome que lhe fora dado. As patas avançadas e o focinho pousado com aquele ar prazenteiro de quem já tinha também alojado e saboreado o seu quinhão, lá na cozinha, apareceu ali a juntar-se à família, como se fizesse parte dela. E fazia. "Mãe, hoje vamos sair à noite." disse a filha-do-meio enquanto a filha-mais-velha, com disfarçada olhadela, tentava descortinar na cara dele uma possível e indesejada reacção, uma rejeição. A mãe, ficou silenciosa, com aquele silencio conivente de quem cala consente, sua característica de sempre. Não foi por mero acaso que o tom emprestado à fala da filha-do-meio, não foi o da interrogação, nem o da procura de consentimento, mas sim a de procura do consenso, da aceitação. A filha-mais-velha, para tranquilizar, lá foi dizendo onde iam, com quem mais iam e que não chegariam tarde. Ele não disse nada. Arranjaram-se aprimorando-se na apresentação, com o gosto de adolescentes de então. Saíram. A filha-mais-nova nem se lamentou, conformada com a sua pouca idade e talvez satisfeita pelo que ia dando na TV. As horas passaram e um pouco depois da hora aprazada chegaram. Chegaram de mansinho para não acordar. Todos dormiam, ou isso pareciam...
III
Logo que teve uma oportunidade deu por desculpa a saída naquela noite. Não precisava de o fazer mas achou que não devia dizer onde ia. Tinha procurado o nome da boite na lista das páginas amarelas e lá foi. Sentou-se. Pediu de beber. Mediu o ambiente, avaliou-o e, mentalmente, inquiriu cada um dos presentes: quem seriam, que fariam, qual seria o seu pensar e maneira de estar. Mediu a estridência das gargalhadas os decibéis das falas, a distância dos corpos e a qualidade da musica que passava...  Depois saiu. De regresso a casa ia pensando, confiante mas constrangido, pelo papel de investigador de um crime não cometido. Anos mais tarde uma das filhas, não se lembra qual, lhe contaria que tinha sido espiado nessa sua inspecção à primeira noite, por um inspeccionado, que por acaso era um adolescente, vizinho do prédio ao lado...

23 comentários:

  1. Uma expressão que usamos muito por aqui: “it sounds familiar...” : ))))

    ResponderEliminar
  2. O tempo contente da minha história foi o tempo em que tive crianças e adolescentes para cuidar - o que é de praxe da maioria das mães.
    1 filho adulto que pouco conheço
    1 filha adulta que pouco conheço pois receberam outras referências pós juventude -
    sim,são carinhosos, a filha mais do que o filho embora ela more em Brasília - mas é mandona comigo.
    O filho mora na mesma cidade com a família dele , nunca está contente mas dá carinho como sabe. Fato é que nenhum dos dois dá carinho e palavras e tolerância conforme aprenderam.
    Meu possível talento de mãe, parece que receberam em conta gotas e que ainda há desse elixir materno no frasco - já que em adultos, precisam muito mais - creiam.
    Mas é muitíssimo diferente ser mãe de menina. Não amamos as meninas com mais quantidade mas entre margens de cuidados mais sutis.
    Mas abro meu coração materno e escrevo que sim, ser mãe é a pior coisa do mundo - é um amor que não escasseia um mm - mas exaure a alma até onde a alma pode encontrar o cordão umbilical perdido em alguma dimensão.

    Barbara.

    ResponderEliminar
  3. Bom dia Rogério
    Filhos e filhas são frutos de amor e deverão ser tratados em igualdade de circunstâncias. Assim o entendo e assim fiz com os meus filhos - um casal. Aceito e conheço casos em que isso não acontece. Os frutos do amor foram só meninas ou só meninos e os pais não estavam preparados.
    A educação, entendo eu, tem de ser igual em respeito, responsabilidade e regras para se orientarem no tempo e nesta sociedade em mudança.
    As leis familiares apenas devem ter como objectivo, ajudá-los a crescer e a viver no mundo actual sabendo enfrentar todas as situações fáceis ou difíceis para não serem engolidos nas correntes da máquina do tempo - modas, drogas ou ainda outras desorientações comuns.
    Um abraço e votos de um fim de semana em paz.

    ResponderEliminar
  4. Óptimo este texto, tinha-o lido à noite e agora antes de ir trabalhar venho só dizer-te que fizeste um bom trabalho, amar, compreender, deixar os pássaros voar do seu ninho, mas manter uma cautela à distância, o que é também amor e preocupação, muitas vezes não por eles, mas pelo mundo que os rodeia. De qualquer forma há um tempo em que já nada se pode fazer, mas se as ferramentas que levaram são boas eles próprios fácilmente distinguem o trigo do joio e são quase sempre o nosso orgulho quando os sentimos diferenes neste mundo em desvario.
    Tenho dois filhos incriveis, perto ou longe sei que estão sempre lá e eles também sabem que contam sempre comigo.
    Tremendamente lúcidos, o que nestes dias que correm não é fácil, mas aguentam-se bem e gostam de ser eles mesmos, cada qual à sua maneira.
    Divertimo-nos imenso quando estamos juntos.
    Beijinhos para ti e parabéns para o casal pelas filhas que têm.

    Branca

    ResponderEliminar
  5. Impressionou-me o primeiro capítulo do texto e o comentário da Bárbara, porque acho que ser pai ou mãe é a melhor coisa do mundo, ainda que se fique só e apesar de todo o sofrimento e preocupação que isso nos traga pelo caminho.
    No dia em que fui mãe percebi que tudo se transforma dentro de nós e que passamos a ver o mundo com outro olhar, é inexplicável.

    Mas doi-me ver o abandono a que são votados os idosos, não dou esse exemplo aos meus filhos, mas não sei qual será o meu futuro e para já não estou preocupada com isso.

    Muitas vezes a atitude de esperar demasiado não é muito benéfica, o amor é uma troca natural e não se pode cobrar.

    Beijinhos
    Branca

    ResponderEliminar
  6. rrsss rrss

    Tenho um casal muito amigo com duas filhas e que já vai com uma neta, não estão nada frustados...eu, por vezes, é que brinco com ele por causa do "harém", do qual faço parte já que vivo sózinha há 30 anos.

    Jamais entendi essa estupidez de preferência por um sexo como também a prefer~encia declarada por uma das crianças.

    Para cúmulo, é o pai due determina o sexo, rrss


    Bom final de semana

    ResponderEliminar
  7. Sei o quanto gostas de conversar sobre actualidade, politica , futebol...nesse ponto não tiveste sorte com nenhuma das 3 pouco dadas a grandes debates... :P em compensação tens genros todos diferentes, cada uma c sua cultura, educação e tendencia, assim acaba até por ser melhor "dá mais pica" ! Mas deixame que te diga que tens 3 meninas bem criadas! Beijos paizinho

    ResponderEliminar
  8. Sim Rogério, isso é ser pai amoroso e dedicado. Nada a reprovar, apenas a aplaudir.
    Também tenho três meninas adolescentes, uma de 17 e outras duas de15, gêmeas. Sei como funcionam as coisas.
    Um grande bj.

    ResponderEliminar
  9. As lembranças, que seríamos de nós sem elas, sem o vivido e bem vivido. Feliz por te ler.

    ResponderEliminar
  10. Porque é que nunca me lembrei de escrever (mais ou menos) assim?...
    :)

    ResponderEliminar
  11. Três capítulos neste texto.

    E povoados de ternura.

    Beijo

    ResponderEliminar
  12. Foste "apanhado"!
    Gostei do comentário da mais-nova :-)
    Bom fim de semana!
    Beijos.

    ResponderEliminar
  13. Que pai tão galinha!!!! E ainda bem. Que sorte têm os filhos com pais e mães galinhas! Nós tivemos duas filhas. O pai nunca se manifestou acerca do sexo das crianças. E eu também não. Quando a nossa 2ª nasceu, o médico disse: - É outra menina. E eu respondi muito decidida: - Não faz mal; o mundo é das mulheres.... E é!

    Beijinhos, Pai!

    ResponderEliminar
  14. Sabes Rogério, tenho tantas saudades do meu pai que hoje, só por hoje, vou fingir que este texto foi escrito também para e sobre mim....

    ResponderEliminar
  15. Esta é a História da Mulher. Ainda bem que há Homens que assim as revelam.

    Beijinho

    ResponderEliminar
  16. Claro que apetecia responder a todos os comentários, claro... mas fica a ideia dada pela minha-mais-nova. Um novo post... isso! Já tem nome: "Sogro de genros"

    ResponderEliminar
  17. ainda nao cheguei la

    mas espero ter metade do teu talento

    Bjinhos
    Paula

    ResponderEliminar
  18. Não sei o que acontece, se o defeito é da versão do meu blog, mas não consigo entrar no teu post acabado de publicar e que visualizo só nos ícones laterais.
    Deixei uma respsota para ti no Brancamar, és realmente muito directo e apanhas-nos sempre em falta, :)

    Beijos

    ResponderEliminar
  19. Um pai de filhas cuidadoso e zeloso,
    que fez o que qualquer pai deve fazer mas que requer alguma coragem :)
    Gostei de dupla espionagem :)
    Velhos tempos, hoje já nada se passa assim infelizmente.

    beijinhos

    ResponderEliminar
  20. Ah!... Que coisa feia, Rogério. :))

    Brinco, claro.
    As minhas filhas não gostaram de discotecas, mas adoram ir, de quando em vez, com os amigos "para os copos".(danças tradicionais, tertúlias, concertos)Felizmente, são copos de água ou de sumo, na pior das hipóteses. E os amigos são conhecidos da casa. Mas a preocupação dos pais [conscientes] existe sempre e tem toda a razão de ser, não se aplicando apenas a quem tem meninas.

    Beijo meu

    ResponderEliminar
  21. Apanhado!!!

    Sou mãe de dois rapazes, mas o zelo, a preocupação penso que são semelhantes, afinal tudo tem a génese no amor!
    Beijinho

    ResponderEliminar
  22. um pai!

    as filhas são cheias de sorte, apesar do espianço descarado na boite

    ó Rogério... :))

    um abraço

    ResponderEliminar
  23. Gostei de o ler...
    Sei do que fala, sou mãe de dois rapazes :)
    A preocupação é constante, mal se assim não fosse.

    beijinho
    cvb

    ResponderEliminar