Ainda as mulheres, em Nharêa
"O «Meia-Cuca» permanecia com rosto malicioso e deixou-me sem palavras por momentos. Nesses segundos, ia reflectindo no que pensara o miúdo. Rompi o momentâneo embaraço, com a insistência:
«Sabes ou não onde mora a mulatinha surda?»
O ar do «Meia-Cuca» alterou-se. Ficou entre a dúvida e o espanto. Repeti, mudando os termos, e o garoto explodiu em gargalhadas e disse, deixando-me desorientado:
«Us mulher que tu procurar, saber ouvir meismo bem, só que tem marido perdido e fica no fingir não ter ouvido de ouvir coisa d´home.»
Pesava-me mais a malícia do que a notícia, pois pareceu-me natural o expediente da mulata bonita. Essa representação, afinal, era tão coincidente com o ditado popular «mulher séria não tem ouvidos», tendo ela, assumido o sentido literal de tal ditado, mesmo se me parecesse nunca o ter ela escutado.
«Eu sei onde ficar us cubata dera, te levo lá.»
Escusei-me, mas pedi-lhe que fosse lá ele perguntar se ela queria ser minha lavadeira. Voltou-lhe o ar malicioso e foi, a correr. Já distante, vi-o pular para com os dedos tentar tocar o ramo mais saliente de uma mangueira. Não esperei muito e de volta trouxe como recado que meu convite fora negado.
«Volta lá e diz-lhe que pago o que paguei pela fruta.»
Sempre julguei que pela satisfação que ela teve ao receber tal quantia, que fosse um preço razoável, tanto mais que pagava menos da metade desse valor à lavadeira que tinha. Ele foi e logo voltou a dizer que ela negou. Mas trazia um argumento. O preço oferecido era quanto, num só dia, ganhava o marido e ela não podia ganhar tão pouco num mês. Mandei o «Meia-Cuca» voltar, sem que este se mostrasse cansado ou enfastiado por aquele ir e regressar, levando e trazendo recado. «Meia-Cuca» pensava que o seu dia ia ser bem pago, não importava como. Julgo até que se divertia enquanto vinha e ia, ia e vinha.
«Diz-lhe que lhe pago não ao mês mas à semana, a quantia de que falei.»
O «Meia-Cuca» foi mas não regressou só, com ele vinha a mulata escurinha. Como não vinham a correr, deu para lhe voltar a admirar a maneira de andar e pensar como pode um homem ser contratado por valor tão baixo e perder a relação com mulher tão bela. Chegados, ela falou sem tirar os olhos do chão, por certo envergonhada, da mentira que me pregara.
«É verdade meismo quí tu mi paga quinze escudo por semana de rôpa?»
Abanei a cabeça afirmativamente, mas ela não viu esse gesto pois não tirava os olhos de onde os tinha posto. Ia a estender a mão para lhe pegar no queixo, e levantar-lhe o rosto, mas desisti, limitando-me a dizer a palavra «sim».
«E qui vai tu dizer a tua lavadeira de agora?», perguntou olhando-me pela primeira vez. Respondi:
«Deixa comigo, ela não fica sem ocupação.»
E não. A primeira coisa que fiz quando cheguei ao aquartela-mento foi dizer ao Alma Loura:
«Já te arranjei quem te lave a roupa…»"
Rogério Pereira, in "Almas que não foram fardadas", pág. 107/108
Foto da net
Apesar dO texto já me ser bastante familiar, é sempre um prazer relê-lo.
ResponderEliminarL.B.
Gostei de ler as páginas 107/108 ;)
ResponderEliminarBjos
Uma das minhas passagens favoritas. Consigo sentir a cena viva e pulsante envolta em uma magia tal que não consigo pensar em mais nada que não seja sorrir.
ResponderEliminarUm grande bj querido amigo.
Bom rever por aqui estas belas páginas...
ResponderEliminarBeijinho e bom fim-de-semana.
magnifico texto
ResponderEliminarBjinhos
Paula
O texto leva-nos, a nós que estivemos em África, a reviver momentos inesquecíveis.
ResponderEliminarEu fui Alf. miliciano, e tinha direito a um mainato, aliás dois, porque era casado e tinha a mulher comigo.
A tropa pagava 200 escudos por mês a cada um. Já era um bom salário tendo em conta o tempo e a situação que se vivia.
Tenho uma história que se passou comigo, na Ilha de Moçambique, que ilustra o quanto nos (a alguns de nós) afligia ver a injustiça dos paupérrimos pagamentos que se faziam pelos serviços dos indígenas negros.
Uma volta de riquexó. No fim, ao cabo de 2 horas de passeio.
- Quanto é?
- 10 escudos, patrão.
Dei-lhe 200 escudos.
Jamais esquecerei o olhar espantado do rapaz negro.
Nos restantes 8 dias que lá passei, o condutor do riquexó queria, à viva força, que eu e a Zaida, déssemos mais uma volta, que não pagávamos nada.
Que não era preciso, que íamos até à praia ou, simplesmente caminhar e olhar sentir o ambiente, o mar.
E o António (havia muitos Antónios, aiué) quando lhe deixei imensas coisas quando me vim embora? E que queria vir comigo para Portugal!...
Saudades!
Pois, Rogério e assim sem que o soubesses no momento contribuiste duplamente para o orçamento familiar, :) Esta também foi para mim uma das mais lindas passagens, para além de nos dar a dimensão de como os homens eram levados para as fazendas por tão pouco, de como as famílias eram separadas, para já não falar de tantos miúdos que menos livres que o "meia-cuca" trabalhavam para famílias que nem sempre os respeitavam, como tão bem nos é demonstrado em "Luuanda" do José Luandino Vieira.
ResponderEliminarBeijinhos
Branca
SE EU PUDESSE DEFINIR COM PALAVRAS O
ResponderEliminarSIGNIFICADO ESPECIAL QUE VC TEM NÁ MINHA VIDA.
Não CONSEGUIRIA. MAS TENHO CERTEZA QUE DIZENDO SOMENTE.
OBRIGADO POR VC EXISTIR, VC JA ENTENDERIA.
É maravilhoso ter vc comigo !
SEu carinho e sua amizade me faz muito bem.
Muitas bençãos e vitórias para você nesse final de semana.
Que Deus te ilumine hoje e sempre.
A Viagem te espera de braços abertos
embarque comigo rumo ao horizonte azul.
Beijos no coração.
Evanir...
Seu texto me encantou .
Que bom relê-lo...
ResponderEliminarbjs
cvb
muito bonito, Rogério!
ResponderEliminaré um prazer
um beijo
Bolas! Que linda preta! Linda mesmo! (Desculpem, mas não gosto de dizer "negra"; nós somos brancos - eles são pretos! Sem medo das palavras...)
ResponderEliminarE que linda prosa também. Parabéns!
Beijinhos