Ela recordou aquele outro dia em que os olhares pararam e as mãos se deram...
Ela acordou com o acordar trocado: ela levantou-se, ele ficou deitado. Ele dormia que parecia um justo. E ele o era aos olhos dela. Nada do que se passara ela o culpava, por isso lhe lançou o olhar terno, o número 3 da tabela dos afectos - a única tabela das rotinas que permanecia incólume à devassa dos tempos -. Sem se lembrar da antiga tabela do trajar, vestiu-se depois da higiene da manhã. Bebeu um sumo apressado e deixou um recado. "Não há leite, bebe um sumo, o pão é duro mas podes fazer uma torrada. Há um pouco de manteiga no sítio do costume". No canto superior direito daquele pequeno papel, deixou um coração a circundar a palavra "beijo", ao lado, outro coração desenhado. Saiu, sem bater a porta, para não o acordar...
O autocarro ia cheio, pois fora suprimido o existente no horário antigo. Ia pensando o que foi mudando desde o último dia dos namorados. Depois de tantos meses passados o emprego dele não fora mudado por outro e as diligências, todas, foram sendo, uma a uma, frustradas... reviu como isso lhes alterou a vida sem alterar-lhes o carinho, a relação, os afagos, os momentos de paixão e a forma em como seus corpos se davam. A esse pensamento, sorriu. O autocarro parou e ela saiu. Dirigiu-se ao emprego dando a volta à larga praça, passando ao lado da loja que tinha todas as ofertas da tabela das datas festivas. Passou junto ao canteiro, bem tratado, e com o olhar, marcou a flor que no regresso iria colher para lhe oferecer. E entrou no emprego, pontual, conforme lhe assegurou o relógio de ponto, que lhe marcara, a negro, a hora de entrada.
O dia fora cansativo, mas não se esqueceu de colher a flor, que estava marcada. Chegada à porta de casa, procurou as chaves no fundo da mala, pois a surpresa da chegada requeria uma entrada em silêncio. Meteu a chave, mas quando esperava que estivesse no trinco teve de dar três voltas. Ao seu silêncio só respondeu o silêncio da casa. Só silêncio, mais nada. Sem perceber o que se estava a passar, a casa foi revistada com um só olhar. No sofá de carcomida pele, onde ele costumava estar, estava um bilhete nesse lugar. Tinha no canto inferior esquerdo dois corações e, num deles, um beijo dentro. Leu, em voz alta e embargada:
O autocarro ia cheio, pois fora suprimido o existente no horário antigo. Ia pensando o que foi mudando desde o último dia dos namorados. Depois de tantos meses passados o emprego dele não fora mudado por outro e as diligências, todas, foram sendo, uma a uma, frustradas... reviu como isso lhes alterou a vida sem alterar-lhes o carinho, a relação, os afagos, os momentos de paixão e a forma em como seus corpos se davam. A esse pensamento, sorriu. O autocarro parou e ela saiu. Dirigiu-se ao emprego dando a volta à larga praça, passando ao lado da loja que tinha todas as ofertas da tabela das datas festivas. Passou junto ao canteiro, bem tratado, e com o olhar, marcou a flor que no regresso iria colher para lhe oferecer. E entrou no emprego, pontual, conforme lhe assegurou o relógio de ponto, que lhe marcara, a negro, a hora de entrada.
O dia fora cansativo, mas não se esqueceu de colher a flor, que estava marcada. Chegada à porta de casa, procurou as chaves no fundo da mala, pois a surpresa da chegada requeria uma entrada em silêncio. Meteu a chave, mas quando esperava que estivesse no trinco teve de dar três voltas. Ao seu silêncio só respondeu o silêncio da casa. Só silêncio, mais nada. Sem perceber o que se estava a passar, a casa foi revistada com um só olhar. No sofá de carcomida pele, onde ele costumava estar, estava um bilhete nesse lugar. Tinha no canto inferior esquerdo dois corações e, num deles, um beijo dentro. Leu, em voz alta e embargada:
"Não posso, não posso continuar. Um dia volto. Levo a nossa tabela de afectos e teus desenhos. Não te deixo mais nada que não seja a promessa do meu regresso. Amo-te muito mais que a mim próprio pois o amor que tenho a mim próprio deixou de pesar. Um dia hei-de regressar."Duas lágrimas correram-lhe pela face, mas a rosa vermelha que tinha na mão chegou primeiro, ao chão... destroçada, inútil na sua missão de lembrar um dia que devia ser lembrado.
Sempre teu(assinatura irreconhecivel)
Triste, muito triste e não vai regressar...
ResponderEliminar... um dia ela perceberá que foi então que a sua vida começou...
ResponderEliminarai, que politicamente incorrecto, neste dia, este meu comentário... mas escapou-se-me com uma velocidade e uma determinação tal que nem coragem tenho para o apagar...
Fico à espera de ser "trucidada" pelo colectivo. Que remédio...
Abraço grande!
ResponderEliminarConseguiu pôr-me novamente a chorar.
Beijinho
Laura
Meu amigo, no meu blogue a minha imaginação oculta o que me vai na alma.
ResponderEliminarNa realidade não comemorei este dia e temo todos os dias chegar a casa e ler um bilhete assim...desculpe estou comovida.
beijinho
Fê
ResponderEliminarNão deve ser nada fácil lidar, dia a dia com uma situação como a que aqui traz.
Mas "abandonar o barco" não me parece uma solução razoável. Só por isso e por uns pozinhos de machismo na atitude do moço é que não vou trucidar a Maria João, aí em cima ;)
Um beijo
eu não queria chorar!
ResponderEliminarmas...
Sei que irá regressar...
ResponderEliminarUm bj querido amigo
de tabelas não percebo nada
ResponderEliminarmas doi-me a rosa, a paragem do autocarro, o canteiro, os desenhos dela
que não teve direito a falar
e o homem, voltará, ou não
é assim como o nosso país, sempre teu, mas dá-nos uma fome de o largar
gostei, Rogério
um abraço
Há dias assim
ResponderEliminarAbraço
Comecei a ler e fui comendo as palavras como se na mesa sem pão nem leite elas fossem tudo quanto um coração pode desejar.
ResponderEliminarUm texto emocionante.
Politicamente piegas porque emigrou.
Politicamente incorrecto porque "custe o que custar" apenas se aplica aos deserdados da fortuna e da sorte...
Hoje servem-se muitos jantares sem luz, sem casa sem pão...
Sabes Rogério, a diferença que encontrei entre o texto do ano anterior e este foi precisamente o compasaso de espera de um ano sem emprego, de um esgotar de dias e dias numa falta de realização total e embora os afectos sejam o mais importante e não ache que se deva "abandonar o barco" como diz a Lídio e que o dia não foi o mais propício para tal decisão, compreendo o que aqui quiseste transmitir da situação deste país, que devora pessoas e famílias.
ResponderEliminarBeijos
Branca
Um texto interessante sobre o desencontro e o silêncio. Por vezes, o silêncio é menos duro.
ResponderEliminarA rosa sentiu.
Boa noite!
Mais um belo texto, mas, confesso, o meu comentário feito há um ano caiu por terra como a rosa.
ResponderEliminarBelíssimo e sentido conto, Rogério!
ResponderEliminarMas acho que ele não abandonou o barco, pois nele estava ancorado.
Apesar do ano que passou a tabela dos afectos aumentou, assim como aumentaram as dificuldades de se manterem juntos.
ResponderEliminarPartir foi a solução encontrada e já esperada...só lamento profundamente, que a rosa, decerto vermelha, não tenha chegado às mãos de quem sempre lhe dera a mão!
Melhores dias virão! O afastamento temporário, muitas vezes é o sacrifício menor do que a solução daqueles que optam pelo afastamento definitivo.
Quem sabe de hoje a um ano eles estejam juntos, felizes e de mãos dadas, contemplando as mesmas águas?
Assim o espero!
Um beijo de esperança.
Infelizmente será assim, ou mais ou menos, o Dia dos Namorados de muitas famílias neste nosso país triste e desgastado.
ResponderEliminarBom Dia (ou noite...) dos Namorados, anyway.
os olhares pararam e as mãos se deram...
ResponderEliminarMas desta vez nem as mãos se deram nem os olhares pararam. E ficou o silêncio dela a fazer companhia ao silêncio da casa.
Belo como sempre.
Abraço
tomou a diligencia de partir...mas, deixou a esperança de um regresso. A ilusão alimenta a realidade.
ResponderEliminarDifícil avaliar esse fato , o dos amores que não se sabe se temos ou se não temos.
ResponderEliminarO retorno a casa foi no clima de romance, o bilhete deixado também , portanto não sei se o romance em si tem o peso de lágrimas ou de rosas e a beleza destes, o suficiente para sustentar isso do amor.
Barbara.
A esperança e o acreditar movem montanhas. Acreditemos... a rosa tem destino, aguarda o silencio das almas e o reflorescer do amor.
ResponderEliminarabraço Rogério
cecilia
Por isso é que eu não gosto do Dia dos Namorados...
ResponderEliminarBelíssimo conto. Triste, comovente, muito bem escrito e com dói. Sobre o desemprego, fica a dica de um recente filme argentino. Medianeiras. Espero que encontres por aí. Abs da alma gêmea, ainda fugidia.
ResponderEliminarEste conto pode muito bem estar a refletir hoje uma realidade. Começa a ser difícil não encontrar uma casa em que as pessoas não tenham um cutelo sobre a estabilidade das suas vidas, isso leva a que estejam a acontecer desencontros sem que as vítimas se deem conta de que não são elas as culpadas dos desalinhos que estão a acontecer nas suas vidas, criando situações de instabilidade emocional.
ResponderEliminarComo sempre e se possível, sabes e sentes mais do que elas.
ResponderEliminarBeijinho, amigo.
Ná
Amigo Rogério, pois eu acho que no próximo dia dos namorados ela vai ter notícias dele e vão ser boas. Têm de ser!!
ResponderEliminarUm abraço.