(reedição)
imagem "Morte e Vida" de Gustav Klimt |
"A morte voltou para a cama,
abraçou-se ao homem e, sem
compreender o que lhe estava a suceder,
ela que nunca dormia, sentiu que o sono
lhe fazia descair suavemente as pálpebras.
No dia seguinte ninguém morreu."
Saramago - As intermitência da morte" - pág. 214
Se a Morte tivesse qualquer sentimento, como em tempos terá sentido, esse sentimento seria o da surpresa aliada à sua confessada impotência de, por si mesma, acabar com a vida. A surpresa tida foi pela manifesta ignorância dos ministros. Mas foi da sua impotência em satisfazer o governo que falou demoradamente, naquele conselho onde o primeiro ministro a quis presente. "É a vida que determina quando intervenho", disse a Morte. Disse-o mais que uma vez e ilustrou que é coisa humana o acontecer encurtar-lhe a chamada. Mesmo que o último sopro de vida seja coisa natural, ela tem de esperar que tal aconteça para cumprir a sua tarefa. Explicou que não se desespera pela espera, nem se apoquenta se a vida se prolonga. Todos os ministros a escutaram, contrafeitos por não terem, como esperavam, uma colaboração a contento. A um dado momento, a Morte deixou insinuar que apenas tinha alguma capacidade de persuasão aos vivos deprimidos para se deixarem levar por ela. Gostaram dessa parte e logo o ministro da coisa social lhe estendeu uma pen, dizendo-lhe. "Tem nesta base de dados milhares de coitados a quem cortámos a pensão, a quem lhes vai faltando a sopa e o pão, a todos cortaram a electricidade por falta de pagamento e a água ser-lhes-á cortada a qualquer momento, faça o seu melhor".
A Morte saiu à rua pronta para cumprir a tarefa prometida de ir, na medida dos seus saberes, acabando com a vida. E assim fez, seguindo a lista que o ministro lhe dera. O tempo foi-se passando e com a sua forte persuasão aumentaram os suicídios, os parricídios e muitos outros crimes de sangue. Alguns nomes da lista eram apenas convencidos a deixarem-se morrer, e morriam. Quando restava um único nome na lista, para toda a sua missão se considerar cumprida. dispôs-se a ir convencê-lo a acabar com a vida.
O homem estava sentado no escuro, pouco se incomodando com ele. Conhecia todos os cantos à casa, a disposição de todos os móveis e a colocação de tudo o que precisava mas que deixou de usar. Não era a escuridão que o incomodava. A fome ia-a enganando como podia e a sede era saciada com a chuva que ia apanhando numa bacia, numa jarra e numa panela, colocadas, uma em cada janela. Ia sobrevivendo ocupando o pensamento com coisas de não pensar. O homem levantou-se e numa decisão, não pensada, tomou um destino impensável: ser um sem-abrigo. Na rua, andou, andou, andou e os pés e pernas lhe incharam de tanto andar. Perdeu a noção dos dias. Perdeu a noção de tudo. Fugia de todos, até dos outros sem-abrigo. A Morte, que o seguia, sentindo a falta do luar, resolveu ser a altura certa para o abordar. "Que vida esta, aquela que tu levas?" e o homem não lhe respondeu. "Porque não lhe pões fim?" e o homem não lhe respondeu. "Ninguém suporta uma vida assim..." e o homem parou, olhou a morte de frente e, sorrindo sem lhe responder, seguiu-lhe a sugestão. Seguiu em frente, virou à direita, meteu-se pela rua estreita e depois por outra, larga, que dava para a marginal. Atravessou-a, lentamente, direito ao penhasco que havia ali, sobre o mar. Nem ouviu o que se teria ouvido se mais gente por ali andasse. E o carro com travões a fundo e guinando para um dos lados, não evitou o embate...
Uma luz clara inundava todo o branco ambiente que se ia alegrando com os tons coloridos das luzes que iam piscando, de um canto. Abriu os olhos e deu com uma cara de anjo que o não era pois os anjos, que se saiba, não usam estetoscópios pendurados em pescoços bem torneados. A médica sorriu-lhe, "Livrou-se de boa, dorme há três dias. Amanhã, se tudo correr bem, já pode ter alta" e quando ia a sair regressou "Há uma senhora, que tem vindo todos estes dias, deixou-lhe este recado." e estendeu-lhe um papel perfumado. Dizia:
"O governo foi demitido depois da sublevação impetuosa dos sem-abrigo... tu eras o último da lista... Não te incomodo mais. Incomoda-me tu a mim." e tinha um número de telefone de uma rede fixa, no fim.
Rogério Pereira
Lembro-me deste conto, Rogério...
ResponderEliminarAbraço grande!
O melhor de tudo será (ou seria...) a parte que diz que «o governo foi demitido»... Mas isto é só um conto, uma ficção...
ResponderEliminarGiro. Beijinho.
Coisas belas, gosto delas! E também das semi-belas.
ResponderEliminarEu acredito que foi o Rogério que o conto escreveu, porque fui uma das pessoas que já o leu...:)
Beijinhos e votos de Feliz Natal!
Um conto sábio e inteligente.
ResponderEliminarSe é reeditado, está mais atual do que nunca. Ainda não passámos pelo pior. Os problemas sociais irão agudizar-se.
Não podemos consentir que exterminem as classes mais débeis da nossa sociedade, por carência, por incúria dos governantes ou por nossa negligência.
É bom lembrarmos isto nesta época, em que as Festas são eventos muito díspares na nossa sociedade.
É urgente refletir, denunciar e ser solidário.
Com simpatia...
Este seria um desejo tornado realidade!
ResponderEliminarSaber escrever não é para qualquer um. Para ti é! :)
Beijinhos Marianos, Rogério! :)
A vida que nós vivemos neste tempo que é de morte, até ao dia em que é a morte que morre.
ResponderEliminarGostei muito
Abraço fraterno
ResponderEliminarBelíssima adaptação, com um final
esperado, verosímil a qualquer tempo.
Um beijo
Feliz Natal e Próspero Ano Novo.
ResponderEliminarAs palavras podem ser as mesmas, mas os sentimentos e a sinceridade são sempre renovados e crescentes.
Beijo, e até 2014
Ângela
Rogério,
ResponderEliminarGostei muito.
Parabéns, precisamos do vinagre para corroer as más energias. :))
Feliz Natal e um esplendoroso Ano Novo, em escrita.
A crise tem que adormecer para podermos viver em paz estes dias.
Abraço e obrigada pela sua presença.:))