(reeditado)
"Não vás para o calor, filho." Minha avó era a mãe de todos os filhos deste mundo. Tratava-me assim a mim e a todas as crianças da vizinhança e as que por lá apareciam. Eu obedecia-lhe enquanto me lembrava, depois disso, não, e metia-me quinta fora descobrindo coisas de descobrir e encantar. Naquele dia, o sol estava tão abrasador que até meu avô decidira suspender a sua faina e sentar-se junto ao palheiro, debaixo de uma velha oliveira, há muitos anos plantada junto a um pequeno canavial. Sentara-se a fumar o que eu entendia ser sinal de valer a pena me aproximar e tomar-lhe um pouco da sua atenção. Foi o que aconteceu. Olhou-me e percebeu que eu esperava dele qualquer coisa daquelas que costumavam acontecer quando lhe aparecia e tinha tempo para me dar. Decidiu-se nesse dia por coisa que não tinha feito antes. Levantou-se, andou uns metros, poucos, curvou-se sobre uma das canas, a mais verde e a que lhe parecia mais adequada, e cortou-a com a navalha. Aquela navalha, sempre afiada e que sempre lhe vira usar em tão variados usos, desde cortar o queijo e os côdeas de pão, cortar erva para os coelhos ou podar as videiras, até o que agora ia fazer, com aquela pequena cana. Não sabia o que seria, mas não perguntei para não quebrar o encanto do que ia acontecer. Seus gestos eram certeiros, como se não fizesse outra coisa na vida senão executar, com precisão, pequenos recortes numa verde cana, que ia cortando. Cortou primeiro um segmento, para aí com um palmo, dos dele ou o dobro o triplo dos meus. Depois um pequeno orifício, entalhado. Tinham-se passado alguns minutos sem palavras. Não eram necessárias pois lhe bebia atenciosamente os gestos. "É uma flauta" - disse, percebendo que me interrogava sobre o que seria. "É uma flauta igual à daquele menino, de uma cidade distante, tão distante daqui, que se tu quisesses lá ir e partisses agora, só lá chegarias velho. Velho como eu" - abanei a cabeça para dar a entender que percebia a distância. "...e foi há muito tempo atrás, há tanto, que para assistir ao acontecido apenas o avô do avô do meu avô o poderia ter visto" - abanei a cabeça, à mesma, dando a entender que percebia o há tanto tempo que tinha sido, e ele continuou a contar, enquanto eu ia dividindo a minha atenção entre o que habilmente fazia e o que ia contando: "...pois essa cidade foi invadida por ratos pequenos mas que se transformaram, com o tempo, em ratos cada vez maiores. Ratos enormes e gordos. Enormes e maus, que tudo roíam e destruíam, espalhando o terror e pondo os habitantes da pacata cidade fechados em casa, sem saírem dela. Os ratos tomaram conta da cidade e só faziam e espalhavam maldade. O governo e os senhores que faziam leis e tomavam conta da ordem na cidade, deixaram de o poder fazer." - eu ia ouvindo e me impressionando com o conto, com o rosto dele - tão sereno - o com os movimentos das mãos, que tinham abandonado a navalha e iam agora colocando uma folha de papel da sua carteira de mortalha e que lhe servia, normalmente para fazer os cigarros. - "Então os mais velhos da cidade, reunidos, resolveram fazer saber que dariam grande riqueza a quem salvasse a cidade. Logo alguém, pequeno como tu, apareceu oferecendo-se para o fazer a troco de nada." - Nesta altura a mortalha estava colocada e o trabalho pronto. Faltava só experimentar. mas continuou a contar - "O menino que se tinha oferecido, foi para a rua e todos os vizinhos se inquietaram com tal acto que lhes parecia muito arrojado e cheio de perigo, pois os ratos nunca perdoaram a quem antes o tinha tentado. Foi então que o menino, tirou da pequena algibeira uma flauta igual a esta. E tocou. Tocou alto, uma melodia tão bela e que a cidade nunca ouvira. Ficou tocando e os ratos foram aparecendo, mas sem atacar o menino. Quando a praça estava pejada de ratos o menino foi andando, andando e tocando. Tocando e andando. E os ratos atrás dele como que encantados pela melodia que o menino ia tirando daquele pequeno instrumento." - Meu avô parou de contar e experimentou a flauta que tinha acabado de fazer. Soprou-a devagarinho e o som saiu baixinho. Meu avô sorriu, orgulhoso do feito e retomou o conto. "O menino com todos os ratos da cidade atrás dele saiu, pelo grande portão, que as cidades tinham então. Quando percebeu que todos tinham saído e já nenhum rato ficara dentro parou de tocar e correu, correu, correu. Correu, entrou na cidade pelo portão de onde saíra e fechou-o dando sete voltas à chave. Toda a cidade aclamou o salvador, cantou e dançou enquanto os ratos, lá fora, sem ter que comer, acabaram por morrer" - Eu fiquei tão contente como se fizesse parte daquela cidade de antigamente e recebi das mãos do meu avô a flauta pronta e experimentada. Metia-a cuidadosamente no meu pequeno bolso. Dias a fio, daqueles que se seguiram, frequentemente tirava a flauta do bolso e tocava-a. Garanto-vos que mil ratos enormes, disformes, centenas de dragões e toupeiras daquelas que arrasam batatais e outras sementeiras, me seguiam até passarem para lá do portão da quinta, que eu imaginava ser o portão, como as cidades do conto tinham então...
Rogério Pereira
NOTA DO AUTOR - Os contos do meu avô eram, como já referi em anterior post, reconstruções ou adaptações de outros que mais tarde fui descobrindo na sua versão original. Este, reconto como a memória me permite, é um muito livre plágio de um conto, célebre, dos irmãos Grimm: "O Flautista de Hamelin". Esta versão é mais interessante que a original em tudo e até na moral.
ResponderEliminarGostei francamente desta versão! :)
Um beijo
Uma flauta dessa vinha mesmo a calhar. Primeiro espantava as toupeiras cá do quintal, depois...
ResponderEliminarÉ sempre bom ter uma flauta à mão
ResponderEliminarNunca te arrependas
Abraço
Lindo!
ResponderEliminar"Nu-nu" era assim que eu chamava a essas flautas.
Infelizmente não tive um Avô que as fizesse para mim, mas tive uma Avó que me protegia do sol.
Gostei muito desta leitura!
ResponderEliminarAbraço
Sónia
Hoje vou acordar e tocar minha flauta, tirar os ratos do meu caminho, as baratas também, os sanguessugas, e deixar apenas a beleza no jardim.
ResponderEliminarEncantada com seus avós.
ResponderEliminarTambém encantava-me com os meus.
E a flauta, seja lá seja cá, talvez seja um indício de que, de modo mais lúdico, possamos espantar os ratos que nos atrasam a vida e o tempo.
Nas quintas, vilas, bairros, cidades, países.
Só a arte em nós é libertadora e você, Rogério, a comete com beleza.
Uma flauta que agora dava tanto jeito para remover tantos ratos deste páis.
ResponderEliminarFoi esta flauta mágica que decerto o encantou para toda a vida.
beijinho
Fê