25 dezembro, 2013

CONTOS DE NATAL - III ("...este ano não há perú")


A história é breve, embora entre um e outro acontecimento medeie a esperança de vida de um galo. Eu conto, pois apesar de bem miúdo ainda me lembro de (quase) tudo.

A minha avó Mariana chamou-me depois de ter espreitado - "Estão a nascer, anda cá. Vem ver", e levou-me com ela por aquele grande terreiro baptizado de galinheiro, mas onde, além de galinhas, haviam coelhos, patos e pombos, todos partilhando o espaço mas com retiro adequado a sossego de cada um. Fui ver os pintainhos a nascer. Dois já tinham picado e destes, um deles, tinha a cabecita quase toda de fora do ovo. Adiantou-se o ver, ao conhecimento do facto, pois nunca tinha ouvido falar que era assim. Levaram dois dias para saltarem todos para a vida, mas o primeiro saltou cedo, pouco mais de uma boa hora depois de ter espreitado. Minha avó, experiente, disse "Esse é frango e é aleijado". E era as duas coisa. Quanto ao diagnóstico da deficiência, o pintainho não se detinha de pé. Dava duas passaditas e mergulhava de bico, na poeira. O resto das férias passei-as na brincadeira e a assistir à persistência paciente de minha avó Mariana, mergulhando as patas do pequenito galináceo em vinho tinto, depois de levemente aquecido.

Meses depois o pinto já era um frango emproado. Reconhecia minha avó Mariana como sua mãe e atrás dela corria para onde quer que ela ia. Se ela parava, o frango empoleira-se num qualquer beiral ou saliência e ficava ali, estupidificado, esperando que ela acabasse e fosse para qualquer outro lado. Vivia fora do galinheiro, em cuidados continuados.

Passaram anos. Uns poucos, pois os galos possuem larga longevidade e este usava-a com maldade. Desde que habitou o galinheiro, nunca mais houve a paz que antes por lá havia: os pombos deixaram de poder partilhar o milho das galinhas, os coelhos perderam a liberdade e não mais saíram da coelheira e a Reca, uma pata engraçada, que reagia a todo e qualquer chamamento, perdeu o seu lugar lá dentro. O galo, além de mau, não galava. Mas o safado imperava como se todas as galinhas fossem seu harém. Perseguia as coitadas e algumas que, esperavam ser montadas, recebiam brutais agressões. Muitas perderam a crista, outras a vista algumas, sortudas, apenas algumas penas. De madrugada, o galo enganava com o orgulho posto no seu cantar. Cantava alto, trinado e repetido. Cantava, cantava, cantava e só parava quando pensava que tinha acordado toda a gente, parava quando toda a gente tinha acordado. Entretanto, o malvado galo era gabado por todas as quintas à volta, e toda a gente comentava "Dona Mariana, o seu galo canta que é um regalo", e a minha avó escondia-lhe o comportamento agressivo como se protegesse actos desavindos de um mau filho.

Num Natal, um dos muitos passados na quintinha dos meus avós, já eu tinha condições de retirar a moral de qualquer história, a minha avó anunciou a sua resolução: esse ano não haveria peru. E assim foi. Na noite da Natal o galo saiu à mesa. O aspecto do assado era com a mesma imponência do bicho enquanto vivo, apesar do tostado. Mas o pior aconteceu, de tão rijo, ninguém o comeu. Souberam bem os miúdos de cabidela, a merecerem  lágrimas de minha avó, a correrem pelos olhos dela...


14 comentários:

  1. Tantas vezes ajudei a minha mãe a pôr umas gotinhas de vinho tinto nas frestas que se abriam nos ovos que tardavam a eclodir... :) "Para dar força ao pintainho e ele quebrar a casca!" dizia a minha mãe! :)

    Mimo a mais, foi o problema do galo! Mimo e tolerância em excesso. Poderia ser uma metáfora!

    Beijinhos Marianos, Rogério! :)

    ResponderEliminar
  2. Também vivi muitas cenas parecidas, não em casa da avó mas aqui em casa.
    Era sempre um espectáculo ver nascer os pintos ou os recos (porcos), ver nascer os gatos, os cães e até os vitelos.
    Tantas noites que o pai passava lá à espera e tambem a ajudar no parto dos vitelinhos.
    Depois ficávamos embriagados com aquelas cenas de se levantarem e cairem logo a seguir.

    ResponderEliminar
  3. Pois, quem nasce torto...
    Uma bonita história, que eu também vivi na minha meninice, pois os meus pais também criavam galinhas, coelhos, patos e alguns anos, também alguns perus. Estes últimos eram agressivos e muitas vezes tinha de fugir deles.

    ResponderEliminar
  4. É isso, Maria Eu, uma metáfora:
    filhos com excesso de protecção e mimo dão lugar a pessoas intragáveis.

    E cantam de poleiro...
    cá por este galinheiro!

    ResponderEliminar
  5. Ainda falam em embebedar os perus para os sacrificar mais depressa.
    Esse galo não precisou do ritual, já vinha habituado desde miúdo.

    ResponderEliminar
  6. ... seja como for...

    não comam porcos nem coelhos

    Abraço amigo

    ResponderEliminar


  7. Teve o fim que merecia.

    Redimiu-se ainda, salvando a vida a um peru. Valha-nos isso!

    Um beijo

    ResponderEliminar
  8. Em minha casa nunca havia perú. O capão era o Rei do dia de Natal.

    ResponderEliminar
  9. Rogerio,

    Como foi saboroso este texto, tambem eu vi nascer pintainhos,ajudei-os muitas vezes com muito cuidado na fase final de deixarem a casca, tinha eu uns 7 anos. Tive galos, galinhas, patos e perus quando era miuda, a minha mae tinha aquele habito de embebedar o peru antes de ele morrer, porque dizem que a carne ficava mais tenra e saborosa e eu adorava ver o peru a cambalear de bebado, faziam-se ate´ operaçoes a galinhas quando estavam mal e depois de lhes cozer a moela e a pele mais superficial, logo elas se punham de pe´e tudo isto nao numa quinta, mas num quintal bem grande, :). depois de tudo o que li acabei a rir fortemente com o nosso amigo Eufrazio e com a Lidia, :). Um belo momento este!

    Beijos.

    ResponderEliminar
  10. Outros nem precisam de poleiro para cantarem...cantam mesmo no chão e aos pulinhos!

    Abraço

    ResponderEliminar
  11. Mas que conto bem contado, Rogério.
    Não sabia que o vinho tinto, morno, tinha poderes terapêuticos tão fortes. Neste caso, até demais!
    Uma dúvida me fica: as lágrimas da senhora sua Avó seriam pela rijeza intragável da carne do galo ou por pena de ter decidido matá-lo? :-)

    Beijo.

    ResponderEliminar
  12. Rogerio,

    Como foi saboroso este texto, tambem eu vi nascer pintainhos,ajudei-os muitas vezes com muito cuidado na fase final de deixarem a casca, tinha eu uns 7 anos. Tive galos, galinhas, patos e perus quando era miuda, a minha mae tinha aquele habito de embebedar o peru antes de ele morrer, porque dizem que a carne ficava mais tenra e saborosa e eu adorava ver o peru a cambalear de bebado, faziam-se ate´ operaçoes a galinhas quando estavam mal e depois de lhes cozer a moela e a pele mais superficial, logo elas se punham de pe´e tudo isto nao numa quinta, mas num quintal bem grande, :). depois de tudo o que li acabei a rir fortemente com o nosso amigo Eufrazio e com a Lidia, :). Um belo momento este!

    Beijos.

    ResponderEliminar
  13. Uma história muito bonita, tenho as mesmas recordações com a minha mãe...

    ResponderEliminar
  14. Não deixa de ser curioso que a tarefa de matar os bichos é deixada para as avós... Também, ainda tive essa experiência.

    Uma história com moral, a natureza humana, também ela, normalmente no lugar de gratidão e reconhecimento, parece levar à altivez e ao crescimento de pessoas difíceis que com os anos acabam muito certamente sozinhas porque ninguém tem paciência para aturá-las...

    Quanto ao galo, esse não deixou saudade, até nisso... um bom e competente galo, com todo esse historial, tornar-se-ia facilmente o "gato" ou "cão" lá de casa.

    Boas festas e aquele abraço

    ResponderEliminar