08 novembro, 2020

«NOVO IMPERADOR, VELHO IMPÉRIO»

Disse, a tempo para ser dito, que viesse o Diabo e escolhesse. Veio o Diabo, e escolheu. Escolheu, do mal, o mal menor mas o mal menor é mau mesmo. Parece, isto que agora digo, uma heresia. Seria. Seria, não fosse a História. Seria, não fosse este passar a pente fino de uma trajectória e, assim...

"...os Estados Unidos continuarão a portar-se internacionalmente como um país fora de lei enquanto, internamente, lidarão com uma degradação social cada vez mais difícil de disfarçar. Os partidos financiados pelo Big Business fizeram o seu jogo quadrienal, mas em relação a isso há um aspecto que salta aos olhos de todos: a consulta eleitoral sofreu de todos os males que Washington costuma denunciar noutros países e que servem para justificar mudanças de regime, golpes de Estado ou mesmo invasões militares. É a lei do império, mas um império em decadência: atentem nos dois candidatos a imperadores.

Editorial de Strategic Culture/Adaptação O Lado Oculto

Uma contradição em torno das eleições presidenciais norte-americanas é esta: a atenção absorvente que os principais meios de comunicação internacionais e nacionais lhe dedicam poderá induzir a opinião pública a ter a noção de que os resultados terão enormes consequências sobre a realidade mundial. A realidade, porém, diz que haverá poucas repercussões relevantes nas relações dos Estados Unidos com o resto do mundo.

Os Estados Unidos continuarão a comportar-se como se estivessem acima do direito internacional, interferindo nos assuntos das outras nações, abusando do facto de o dólar continuar a ser ainda a moeda internacional e usando unilateralmente a violência e a guerra para alcançar objectivos que considerem necessários.

Todos os presidentes norte-americanos do século passado e do período já percorrido deste século se envolveram em práticas criminosas. Como poderemos esperar quaisquer diferenças com uma mudança de rosto ditada pelo mesmo poder corporativo? Só poderia esperar-se uma mudança significativa para melhor se houvesse uma alteração profunda do sistema de poder.

Ao que tudo indica, o candidato democrata Joe Biden reuniu votos suficientes para ganhar a presidência ao republicano Donald Trump. Devido ao carácter caótico do processo eleitoral, as suspeitas de grandes fraudes são legítimas; há pelo menos situações litigiosas em curso em Estados decisivos como Wisconsin, Michigan e Pensilvânia – onde a abrupta chegada de dezenas de milhares de votos em Biden na fase final inverteu as tendências eleitorais registadas até então. Pelo menos na Pensilvânia, o Supremo Tribunal determinou uma separação dos votos chegados a partir do momento em que se registou uma viragem na tendência. Entretanto, um tribunal de Washington DC determinou um processo de investigação ao desaparecimento de pelo menos 300 mil votos enviados por correio. As idiossincrasias do sistema eleitoral norte-americano fazem com que a contagem de votos se arraste durante vários dias além do definido para realização do acto eleitoral. Além disso, em virtude de a contagem oficial ter sido renhida até ao fim e das legítimas desconfianças em torno dos resultados, haverá contestação legal das decisões, especialmente por parte da da campanha de Trump, que ainda antes das eleições já fazia alegações de fraude eleitoral.

Polarização interna

No entanto, como se percebe, pouco importa quem finalmente vença a corrida para a Casa Branca e venha a ser empossado como o 46º presidente dos Estados Unidos no próximo dia 20 de Janeiro. Os últimos quatro anos de Trump demonstraram amplamente que qualquer melhoria nas relações dos Estados Unidos com o mundo saíram frustradas. Trump não foi apenas mais um refém do agravamento dos preconceitos anti-Rússia do período da guerra fria e que continuam a ser alimentados por quem na realidade governa o país: o establishment. Trump inseriu até o seu toque pessoal na deterioração das relações bilaterais, através de políticas como o enfraquecimento das negociações sobre o controlo de armamentos e o ataque ao comércio energético da Rússia com a Europa proporcionado pelo gasoduto Nord Stream 2.

Biden, pelo seu lado, manifestou um antagonismo ainda mais veemente em relação à Rússia do que Trump. Há razões para temer que com uma qualquer nova Casa Branca a política externa dos Estados Unidos se possa tornar ainda mais agressiva.

O que está absolutamente claro é a polarização e a divisão interna dos Estados Unidos em duas camadas antagónicas de expressão idêntica. Isto deve-se ao fracasso histórico do sistema bipartidário que, ao longo de décadas, deixou faixas inteiras da população, principalmente a maioritária classe trabalhadora, alienadas da elite política. Há uma desconfiança e uma desilusão irreparáveis da grande maioria da população em relação aos governantes. No entanto, a degradação social suscitada por este afastamento tem aumentado e vem assumindo espaço nas ruas, tornando agora legítima a ideia de que qualquer vencedor nominal das eleições possa não ser capaz de completar um mandato.

Um mecanismo testado pela elite dominante e com efeitos fiáveis tem sido o de “unir” o povo em torno da bandeira contra algum determinado inimigo estrangeiro. Em virtude da natureza cada vez mais instável e turbulenta da sociedade norte-americana, o poder governante tende a reforçar cada vez mais a autoridade. Devido a isso, pode esperar-se que a política externa norte-americana se torne ainda mais agressiva e militarista durante os próximos quatro anos.

Pelo que qualquer ideia de que os resultados oficiais das eleições presidenciais possam permitir algum tipo de retomada benigna das relações globais dos Estados Unidos é lamentavelmente ilusória.

O mundo tem de despertar

O barco do Estado norte-americano está, há muitas décadas, em rota acelerada para colisões e conflitos. Mudar a figura do seu comandante não irá alterar esse caminho dramático, determinado pelos interesses de poder do Big Business, de Wall Street e do complexo militar-industrial do Pentágono, todos em busca de lucros cada vez mais avultados.

Seria importante que o resto do mundo não ficasse inactivo perante a destemperada conduta de Washington, paralisado perante as ambições globais dos Estados Unidos. O mundo mudou bastante em relação aos tempos dos Estados Unidos como única superpotência." Existem novos centros de poder com possibilidades multipolares, designadamente a mudança de paradigma na economia global com o reforço do papel da China e da Eurásia. A Rússia e a China continuam a solidificar a sua parceria económica estratégica. Estes dois países irão certamente continuar por este caminho de desenvolvimento comum e com outras nações, tendendo a deixar os Estados Unidos às voltas com os seus próprios fracassos.

Seria bem mais realista que o resto do mundo deixasse de prestar tanta atenção ao triste espectáculo norte-americano. É como assistir a um reality show com poucas consequências, excepto a de exaurir as energias do espectador. É melhor sair do conforto do sofá e começar a construir um mundo realmente alternativo.

 


1 comentário:

  1. Em tudo concordo, mas... o mundo tem um sono pesado, Rogério. Sobretudo a velha Europa que tem cada vez mais dificuldade em ouvir os despertadores.

    Abraço!

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