10 outubro, 2010

Homilias dominicais (citando Saramago) - 10

Tenho vindo nestas homilias dominicais a dar destaque ao cidadão José Saramago deixando para segundo plano a obra. Contudo, acho que, contrariamente ao que se pensa e ao que por aí se diz, não pode ser separável uma coisa da outra pois a obra só existe por o homem lhe deu vida. Quando vejo a obra é a alma do homem que lá está. Por outro lado, penso que quando Saramago se olhava a si mesmo, se veria na sua duplicidade e com um sorriso que só ele soube descrever (ver aqui)...
Hoje, e porque formalmente é possível, opto por falar da obra. Transcrevo parte de "O Conto da Ilha Desconhecida". Começa por descrever um acto de petição... -
... e a propósito de petição, lembro a minha decisão de passar à acção assinando duas petições. Estão aí ao lado e já contam com adesões tais que, se fosse o rei do conto de Saramago a ter de as receber, te-las-ia que atender:
- a primeira, 32290 pessoas já subscreveram
- a segunda, com 938 assinaturas espera um reforço empenhado...

HOMILIA DE HOJE

"Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era a das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinha a pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho ao contrário, até chegar ao rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado se ria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse de maré."

Continuar a ler aqui
"O Conto da Ilha Desconhecida", Companhia das Letras - São Paulo, 1998

12 comentários:

  1. Rogério,
    Que bom ter quem nos permite aceder à sabedoria de um conto...
    Obrigado a Saramago e obrigado, Rogério :)
    Bem-haja!
    Abraço.

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  2. Adoro esta parábola do Saramago, meu caro Rogério.

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  3. Caro Rogério
    Excelente forma de começar o dia.
    A parábola do Saramago faz-me lembrar qualquer coisa real, mas deve ser imaginação minha, poque afinal não "passa" de ficção.
    Quantos às petições, a primeira subscrevi na hora a segunda é já a seguir...
    Abraço

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  4. Amigo Rogério:
    Estou de acordo com o folha seca, Saramago era um visionário já todos sabemos.
    Uma terrível enxaqueca anda a atormentar os meus dias, espero que o seu vinagre balsâmico me alivie ;-)

    beijinhos e boa semana

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  5. Não conhecia este conto. Fui lê-lo e espero que a maré tenha levado a "Ilha Desconhecida" a encontrar-se consigo mesma e, mais difícil, connosco e com o nosso destino. Por enquanto, não há motivos para pensar que sim.

    Num blogue colectivo brasileiro em que escrevo, Prozac Café (http://prozacafe.blogspot.com), em 24/6/2010, escrevi uma crónica, "A Visão de Saramago", a propósito do livro e o filme "Ensaio sobre a Cegueira".
    Talvez gostes de a ler...

    Abraço,
    António

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  6. Hoje 2ªfeira ainda vim a tempo, de ler a homilia de ontem e valeu a pena

    Bjos

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  7. Eu também não separo o homem da sua obra...

    José Luis

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  8. TELEGRAMA
    Olá li assinei hoje cansada. Beijos.

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  9. Ámen!

    [Estou tão cansadita, Rogério]

    :))

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  10. A maior parte dos meus livros em português continuam no Porto, contudo, tinha quase a certeza de ter cá em casa a edição bilingue de "O Conto da Ilha Desconhecida", que logo encontrei.
    Nos próximos dias vou publicar no "ematejoca" algumas passagens deste conto do nosso Nobel para incitar os meus amigos alemães também a lê-lo.

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  11. Rogério,,
    Excelente escolha. Não tinha lido este conto. De certa forma fez-me lembrar Blimunda e Sete Sois..

    Abraço.

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