13 junho, 2011

O 13 de Junho de 1654 e uma dedicatória, para nossa memória

«Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.»
----------------------------------------"Sermão de Santo António aos Peixes", Padre António Vieira, pregado na cidade de São Luís do Maranhão em 1654(*)

gravura de Pieter Bruegel, 1557
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
(*)O Sermão de Santo Antônio aos Peixes foi pregado em 13 de Junho de 1654 em São Luís do Maranhão, em 1654, três dias antes de embarcar escondido para Portugal no auge da luta dos jesuítas contra a escravização dos índios pelos colonizadores, procurando o remédio da salvação dos Índios (leitura integral, aqui)
DEDICATÓRIA: Dedico este post à memória das minhas referências morais e intelectuais ligando-as a próximidade das datas de acontecimentos, uns felizes outros a lamentar: O nascimento de Fernando Pessoa; as mortes de Vasco Gonçalves, de Álvaro Cunhal, de Eugénio de Andrade. Coincidências que nos marcam. O destaque ao "Sermão" nem precisa de explicação... no dia de Santo António, dado a folguedos.

17 comentários:

  1. Olá Rogério

    Mesmo sem jeito nenhum para quadras ou poesias, acho que o esforço permitiu-me levar o manjerico :) Já agora, espero que não traga sal nas raízes - e não falo do sal do sermão aos peixes do Padre António Vieira :), mas de cloreto de sódio.

    Quanto ao outro sal, espero que o que tenho no nome me sirva para alguma coisa.

    Gostei muito do "post".

    Uma abraço e boa semana!

    ResponderEliminar
  2. Data rica, de facto...
    E a analogia, uma boa lembrança.
    Uma boa semana, Rogério.

    ResponderEliminar
  3. Rogério!

    Seja ou não feriado para ti, que tenhas um bom dia, com sorrisos e manjericos. Para mim é um dia como os outros.

    Verdade mesmo, conferida, é que morreram neste dia várias vultos, alguns já citados. Porque adoro Eugénio de Andrade, deixo-te um dos seus poemas.



    "Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
    e o que nos ficou não chega
    para afastar o frio de quatro paredes.
    Gastámos tudo menos o silêncio.
    Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
    gastámos as mãos à força de as apertarmos,
    gastámos o relógio e as pedras das esquinas
    em esperas inúteis.

    Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
    Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
    era como se todas as coisas fossem minhas:
    quanto mais te dava mais tinha para te dar.
    Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
    E eu acreditava.
    Acreditava,
    porque ao teu lado
    todas as coisas eram possíveis.

    Mas isso era no tempo dos segredos,
    era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
    era no tempo em que os meus olhos
    eram realmente peixes verdes.
    Hoje são apenas os meus olhos.
    É pouco mas é verdade,
    uns olhos como todos os outros.

    Já gastámos as palavras.
    Quando agora digo: meu amor,
    já não se passa absolutamente nada.
    E no entanto, antes das palavras gastas,
    tenho a certeza
    de que todas as coisas estremeciam
    só de murmurar o teu nome
    no silêncio do meu coração.

    Não temos já nada para dar.
    Dentro de ti
    não há nada que me peça água.
    O passado é inútil como um trapo.
    E já te disse: as palavras estão gastas.

    Adeus."

    Beijinho

    ResponderEliminar
  4. Coincidências ou não, este é o meu sermão de eleição.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  5. Muito bom este post, assim como todos os outros que tomo conhecimento sempre que aqui venho.

    O cabeçalho do post, esse, é assustador por ser tão verdadeiro.

    Muito obrigada

    ResponderEliminar
  6. muito bem. excelente associação...

    gostei da "cumplicidade"
    abraços

    ResponderEliminar
  7. Caro Rogério
    Venho tarde para desejar um bom feriado se fôr o caso. Merecida homenagem a estes grandes Homens, bem escolhida meu amigo.
    Beijo

    ResponderEliminar
  8. gostei.
    tens belissimas memórias.
    seu blog é um charme.
    conheci e gostei do que encontrei. vou voltar sempre.

    abraços fartos

    ResponderEliminar
  9. Uma belíssima escolha. Para este dia e todos os outros

    ResponderEliminar
  10. É uma excelente lembrança e as palavras dos Sermões foram muito bem escolhidas.

    ResponderEliminar
  11. 1654(?!)...
    E os "peixes" ainda não ouviram?...

    Muito bem repescado, este texto que se adapta, perfeitamente, à situação actual.
    À pergunta sobre a falta de medidas (no memorando)de combate à corrupção, é que me parece não haver nenhuma resposta ou andarei distraída?... Dava-me um "jeitão" conhecê-las.

    Beijo

    ResponderEliminar
  12. QUE MIMO PRÁ MIM FOI VIR AQUI DESTA VEZ TAMBÉM!
    Grata. Aprendi muito.

    ResponderEliminar
  13. Rogério, tenho um selo para si.

    Vá buscá-lo.

    Eu já cá voltarei para comentar.

    Beijo

    ResponderEliminar
  14. Padre António Vieira, um Homem que, antes de ser padre, era um HOMEM.

    Não me canso de o ler, de o estudar.
    A clarividência do seu discurso, as metáforas,a precisão da crítica... tudo nele é revolucionário e actual.

    Identifico-me com o peixe sem nome e sem rosto, que os grandes comem.

    E o grande problema ( e há um amigo que me diz que uso sempre esta do problema) é que agora a pesca faz-se de arrasto... e, por conseguinte,há uma ameaça no (m)ar para as espécies como a minha, digo, como a nossa.

    "Vos estis sal terrae", pregava Vieira.

    Nos sumos sal terrae", devemos gritar nós.

    Beijo

    ResponderEliminar
  15. Padre António vieira, o grande senhor da Língua Portuguesa! Poucoss a utilizaram como ele!
    Muito boa escolha.

    ResponderEliminar
  16. Não sou muito dada a festas, mas tenho a dizer que este é o dia mais feliz da minha vida!... e aquele que mais festejo. Embora Famalicão tenha o mesmo feriado que Lisboa, não sou dada a festas populares... festejo o dia em que nasceu a minha Alma Gémea! Feito de encomenda e tudo!... :) pois estava eu a nascer e ele a ser gerado... nove meses nos separam! :))

    Sempre aquela sensação horrível de impotência, quando leio esse sermão do Padre António Vieira... :(

    ResponderEliminar