"(...) António Gedeão não vê que a tal bola colorida possa pular e avançar nas mãos de uma outra criança que não seja um neto dos meus netos. Ele não espera grandes coisas destas próximas gerações. Os poetas vêem muito para além do seu poema... Lamento é que os culpados disso sejamos nós."
Escrevi isto sempre a pensar que a isto iria voltar. Voltei. Voltei com uma série de textos de reflexão sobre esse dito do meu poeta. Escolho a esplanada e cada conversa que lá vai ser escutada. Esta é a primeira, à laia de apresentação...
Imagem da net
Leio sempre o jornal no meu canto... mesmo não querendo,
as conversas delas vêm ter comigo, enquanto vou lendo.
Sentei-me. Ao lado estava o senhor engenheiro e o seu cão rafeiro. Tomava o pequeno almoço que partilhava com o animal, sempre atento ao dono e cada um seu movimento. Esperava pedaços do bolo-de-arroz. Ao lado, o pombo do costume vinha debicar as pequenas migalhas que sobravam e que o cão e o dono desprezavam.
A primeira a chegar foi a Teresa. Penso que esse chegar cedo lhe provinha do hábito de se levantar para ir trabalhar, coisa que lhe deixou de acontecer às uns tempos. Olhou-me sem me ver. Nada colocou em cima da mesa pois nada tinha para lá colocar e pendurou a sua pequena bolsa no braço da cadeira. Ficou-se por ali a olhar, sem ver, o cão, o dono e o pombo. Ora um ora outro e depois o melro negro, ao fundo, sobre a relva. Com esta minha mania de rotular, rotulei-a de "geração à rasca" e não me enganara, pois o tinha confirmado num dia em que o seu telemóvel não tinha parado, com mensagens solidárias...
Chegou depois a que chamavam Gaby. Essa nem olhou para mim, nem para o cão, nem para o pombo, nem para o senhor engenheiro. Pousou em cima da mesa tudo o que trazia e cumprimentou a Teresa, "Olá princesa" (não sei a que reino pertencia, pois a todas cumprimentava com igual delicadeza). A Teresa respondeu ao cumprimento, com qualquer coisa sumida. Os "fones" manteve-os Gaby nos ouvidos, estava a dar a sua música predilecta e, enquanto a cantarolava, a mesa ia ficando repleta com o portátil, a pen, os três telemóveis. Essa tinha-a rotulado, no sábado, passado por "geração mobilidade".
Passaram-se pouco mais de dez minutos e quase em simultâneo apareceram as outra duas, embora de lados desencontrados. Beijaram-se a dois passos da mesa onde as outras duas tinham até ali esperado. Uma delas pisou o cão e o pombo voou para esperar que aquela pequena confusão passasse e depois voltar para continuar a debicar. A que pisara o cão gargalhou. O cão não ladrou e a outra disse "coitado". A que pisou o cão era a Zita, era das quatro a mais bonita. Bonita, azougada e com ditos com uma certa piada. Vestia vestido muito curto, às ramagens e tinha, numa cara bem pintada um pircing bem colocado que não lhe deixara o rosto desfigurado. Rotulara-a de "geração dos morangos", dado que todas as outras lhe iam descobrindo nos ditos e tiques, todas as personagens de tal novela. Todas tinham crescido a vê-la, mas a Zita não perdia um episódio.
A outra, a quarta, a que não pisara o cão, vinha com o jornal na mão. É alta, esbelta e com um olhar muito vivo. Disse quase gritando, agitando o "Correio da Manhã" - "esta vossa amiga, vem aqui em grande plano" - E vinha. Abriu o jornal e procurou a página onde ela aparecia, junto ao palco principal. Fazia parte da enchente, daquele mar de gente que esteve no Rock in Rio. Chama-se Ana e se não fossem todas as quatro loucas entusiastas por (todos) festivais, rotulá-la-ia por "geração Rock in Rio". Assim, fica-se pelo label "geração Wikipedia", o que tem a ver com uma longa descrição de como organizava o seu trabalho de casa, estudava e resolvia, num instante, tudo que, nas aulas, lhe era permitido ir consultar no portátil...
As quatro falavam e parecia que tinham trazido cada qual sua agenda planeada para a conversa de esplanada. Excepção para a Teresa, que bem tentou trazer Marcelo Rebelo de Sousa para a tertúlia, mas lhe atalharam a conversa "Teresa, politica não". A Zita passou a dissertar sobre as habilidades vocais de um dos personagens que actuaram na noite passada, e entreabria as pernas, bem torneadas, que entretanto tinham sido cruzadas. O senhor engenheiro deitou para lá o olhar e deixo-o lá ficar. O rafeiro, do senhor engenheiro, olhava o dono e eu olhava distraidamente... o pombo. A Gaby, ia teclando no computador e alimentava aquele diálogo de esplanada ao mesmo tempo que o fazia, com uma dezenas de outros "amigos", no facebook, sem largar os "fones". Até que veio à baila falarem da surpresa e da proeza - "uhau, mais de duas mil toneladas doadas, ao Banco Alimentar, ainda dizem que a nossa gente não é generosa..."
Parei de olhar o pombo e desliguei da conversa, para sobrevoar os títulos de "O Público". Fixei a atenção no do canto inferior direito daquela publicação: "Falências do sector da construção disparam 50,8%". Fui ler a noticia, lá dentro.
Rogério
ResponderEliminarGostei da sua capacidade de observação e das ligações que fez a escritos anteriores.
Abraço
Rodrigo
Com que então a ir para a esplanada para estar a ouvir as conversas das "miúdas", hein?... Numa coisa elas tiveram razão: em não querer falar do M. Rebelo de Sousa! Blheque! Que nojo! Um dissimulado, um impostor, um aldrabão!
ResponderEliminarMeu amigo:
ResponderEliminarTem uma incrível capacidade de observação e de apreciação :)
Estas gerações que aqui refere, não sabem nem sonham...
Os poetas têm sempre razão e os observadores de esplanada também.
beijinhos
Muito bem observado e descrito. És um 007 do cotidiano querido amigo. Gosto da investigação que dás início. Por onde irão ainda os desta geração tão ausente e distraída? Ou não será assim que são e eu estou totalmente equivocada no rótulo que acho apropriado? Veremos. Um grande bj no teu coração.
ResponderEliminarPoderemos julgar o todo pela parte? Penso que não.
ResponderEliminarHá jovens surpreendentes, capazes de fazer pular uma bola colorida sempre que quiserem. Costumo ficar a ouvir esses, o que dizem, o que pensam, e sinto-me confiante, embora saiba das lutas que terão de travar. Sei que serão capazes, mas temo serem estes os primeiros a partir exatamente pela consciência política que já têm.
Um beijo
Excelente!
ResponderEliminarÉs um observador notável.
Sabes que mais, com avós destas, nem os netos dos netos...
Poderemos julgar o todo pela parte?
ResponderEliminarCá está a pergunta que me obriga a uma resposta, querida Lídia:
Primeiro: Estou de facto impressionado por António Gedeão ter deixado suas memórias aos netos dos seus netos... sei que deixou sua família surpreendida com isso. Acho que não quis atingir a família mas deixar testemunho de que pouco há a esperar destas gerações e a esperança nos que virão depois... admito estar errado, mas quero ter uma interpretação.
Segundo: Moro no concelho mais rico e escolarizado do país, com grande população neste escalão etário (dos vinte e tal ao trinta e muitos) e que elegeu Isaltino Morais. É surpreendente a argumentação que explica esta votação.
Terceiro: As conversas na esplanada só agora começaram. Há que estar atento à evolução dos personagens e outros clientes que terei a oportunidade de escutar...
uma geração que bem pode ser adeus ó vai-te embora para a estranja...
ResponderEliminarRogério, boa noite!
ResponderEliminarLindamente escrito, se bem que em nada me surpreende, mas para além disso, fiquei a saber que é bom observador. Gostei das gerações que escolheu para cada uma das personagens desta crónica de café que me parece muito interessante.
Beijinho,
Ana Martins
Tal como a Lídia e como já tenho referido em vários comentários conheço jovens surpreendentes, mas também alguns dos outros, que de outra forma me surpreendem bastante, pela negativa. Fico à espera das restantes conversas de esplanada.
ResponderEliminarSerá que temos mesmo que esperar pelos netos dos netos de António Gedeão?
Tenho esperança que não.
Beijos
Branca
Escecional essa moldura humana com que envolves o teu estar na splanada...vi pelos tes olhos como se estivesse lá! Claro uma leitura "dessescalibre" só lá dentro...bem longe "dessas" conversas!
ResponderEliminarEXCELENTE!
beijo meu com ternura, Rogério.
Tal como a Lídia e como já tenho referido em vários comentários conheço jovens surpreendentes, mas também alguns dos outros, que de outra forma me surpreendem bastante, pela negativa. Fico à espera das restantes conversas de esplanada.
ResponderEliminarSerá que temos mesmo que esperar pelos netos dos netos de António Gedeão?
Tenho esperança que não.
Beijos
Branca
Se a nossa geração não foi capaz de dotar os jovens dos instrumentos necessários para que saibam escolher os caminhos, para que se empenhem na construção de um mundo melhor, se não os preparámos para enfrentarem as dificuldades crescentes que se lhes impõem, como pode António Gedeão esperar que eles o façam com a geração seguinte?
ResponderEliminarSomos culpados? Talvez, e muito por isso, não podemos desistir deles...
L.B.
Rogério,
ResponderEliminarTeus futuros textos afiguram-se oportunos. Para já gostei da apresentação e do teu cuidado em fazer passar a ideia de que uma geração não é homogénea. Corres um risco que é ir falar de mulheres. Vê se te safas da tua "missão impossível"
Beijinho
Maiuka
É assim, meu caro...mundo de dissimulados e de sentados...
ResponderEliminarEu cá ando exausta, sem tempo para esplanadas...nem nada.
bj
Sentei-me ao seu lado, ouvi o que nos contou. Excelente, volto 2ª feira, para mais um cafezinho e noticias da esplanada!
ResponderEliminarbjs
cvb