O gato chamava-se Gato, não por falta de imaginação ou falta de madrinhas (o Gato foi, além do "dono da casa", o primeiro macho da família). O gato chamava-se Gato porque alguém, ninguém se lembra quem, o chamara "anda cá, gato" e o Gato, de pronto, respondeu com um "miau" ternurento ao chamamento.
Lembram-se do Gato não pelas cortinas caídas, reposteiros arranhados, ou jarras partidas em resultado daquele seu exercício de se passear, lento e dengoso, sobre as prateleiras do móvel da sala onde se expunha (e até hoje continua exposto) um autêntico acervo da memória que o "dono da casa" fazia (e faz) questão em olhar diariamente. Lembram-se do Gato porque ele era a referência da sua própria humanidade: "Se a inteligência tivesse escala, bem podíamos ser mais humanos..." Lembram-se do Gato, pela sua habilidade em lidar com aquilo que julgava (sim ele tinha esse juízo) ser o temperamento daquela família e de cada um, isoladamente. Com a diplomacia, doçura e afectividade à medida.
Entre o "dono da casa" e o Gato havia um pacto: ele sancionava a liberdade ao Gato de ocupar todos os espaços, o Gato retribuía-lhe não ocupando o espaço que entendia ser cativo do "dono da casa". A liberdade usava-a repartindo todos os regaços e colos, mas na hora do sono ia ter com a dona para aos seus pés dormir, na hora do comer era à dona que ia pedir. Ás vezes miava, mas a comunicação preferida era a de uma agitação contida.
O Gato era um exibicionista, um verdadeiro artista. Bastava que a família estivesse reunida e sem lhe prestar atenção, ele não perdoava a distração e lá vinha aquela correria doida e o salto felino, trepando a parede ao fundo. Ele não se inibia de públicos gestos obscenos com a inesperada namorada, um peluche já com bastante uso, animal indistinto que todos jurariam ser um urso e que o "dono da casa" trouxera de Hannover, como prenda em retribuição de uma ausência...
Um dia, na janela soalheira seu pouso de todas as manhãs, aconteceu. Um pombo atrevido sobrevoou-lhe o sono e o Gato, num gesto mal reflectido de resposta à provocação, quis ripostar e lá foi... pelo ar. A queda todos a supunham mortal. O "dono da casa" desceu a escada, três lances em corrida, degraus saltados a quatro e quatro na ânsia de acudir ao Gato. Já na rua, agarrou-o a custo pois o Gato declarava o susto com as garras e com o desespero. O "dono", mesmo arranhado, ia conferindo se estavam todas as sete vidas. Estavam.
Nessa noite, o Gato dormitou um pouco no colo do seu salvador, até adormecer, como costumava fazer, ao colo da Maria João. Da segunda vez que caiu daquele terceiro andar, nada há que contar: a experiência fez com que tudo parecesse normal.
Epílogo
Perto de um ano depois da João ter saído de casa para ocupar o pequeno apartamento da Cruz Quebrada, ligou chorosa. O Gato desaparecera. O Gato desaparecera sem deixar rasto em todos os lugares onde o procurara, em todas as portas em que batera. O "dono da casa" esboçou um sorriso triste e pensou "A densa mata do Vale do Jamor é um apelo a qualquer felino, que se danem os ratos e que se satisfaça o Gato com verdadeiras fêmeas, mais atraentes que um usado peluche..."
Mesmo na incerteza desse destino, dava-lhe descanso pensar que fôra esse o que tinha tido...
tenho dois, dois seres maravilhosos e gratos...
ResponderEliminarTambém tenho dois, a caminho dos 20 anos, ambos...
ResponderEliminarBelo texto. Belos textos...
Abraço!
ResponderEliminarAcho que os gatos não gostam de mudar de casa...
Gosto das estratégias discursivas que usa. Prendem a atenção desde a primeira à última palavra.
Um beijo
Um gato é um gato, não é um coelho...
ResponderEliminarBelo texto!
ResponderEliminarO Gato, meu amigo...eu não vivo sem um (desde que me conheço). Há mesmo uma amiga que diz que eu sou «felina»...rsrrs
Beijo grande
Gato inteligente e "vadio"...mas não gosto muito de gatos, para dizer a verdade.
ResponderEliminarAbraço
Como sabe, adoro gatos e, por acaso, tinha uma gata que se chamava apenas Gata...
ResponderEliminarUm cão, eu sempre disse, é prosa; um gato é um poema.” (Jean Burden)
ResponderEliminargostei muito desta prosa.
esta semana o meu poema é também sobre um gato (meu) que deu um salto fora de tempo, e morreu.
um beijo
:)
ResponderEliminarO seu famoso "Gato"! Gostei de o conhecer. :)
Beijo
Laura