16 dezembro, 2018

Contos de Natal - V ("mãe, ó mãe!")


Vivemos tempos perigosos. Desse perigo surgem diariamente notícias, cada uma mais terrível que a outra. Não será, então, estranho que me ocorram "memórias de tempos de  raivas, angústias e medos" e, assim, relembre este conto de Natal. Conto contido nas páginas do meu livro...
«54 – O capitão Só Alma. – Reparo que mal falei de oficiais e praticamente nenhuma palavra sobre o capitão. Este era miliciano, pois os de carreira não chegavam para satisfazer todas as necessidades da guerra. Chamava-se Só Alma pois não consta que o seu «eu» fosse como os demais e o «seu contrário» rara-mente o aconselhava a fazer coisas de reconhecido valor. Por dever, todos lhe obedeciam. O capitão Só Alma até podia ter uma boa alma, mas ninguém tinha essa certeza, pois as suas decisões eram quase sempre contrárias às necessidades percepcionadas. Ali, no meio do mato e cercados por capim e arame farpado, mantinha formaturas por tudo e por nada, o içar da bandeira tinha as honras desproporcionadas naquelas paragens, exigia aprumo no fardar e chegou até a dar reprimendas por não ser militarmente saudado por um distraído soldado. A alma do capitão estava ao serviço da Nação e toda ela assumia esse estar até limites ridículos de comportamento. Até se poderia justificar algum zelo para manter o estado de alerta e a defesa daquela posição desperta para eventuais impensáveis. Na verdade, está-vamos ali por causa da guerra. Mas também era verdade que o medo fazia parte desse ali estar e mostrava-se suficiente para a necessária vigilância. O medo sempre foi o maior aliado de qualquer soldado. Naquele dia, véspera do primeiro Natal em terras de Angola, o capitão Só Alma surpreendeu. Não compareceu a todas as formaturas, nem ao içar da bandeira, nem almoçou na messe de oficiais com os demais. Foi o cabo cantineiro, a mando do oficial de dia, saber o que se passava e veio com o recado:
«O nosso capitão está bem e disse que já cá vem.» E veio.
Trazia na mão uma carta, pediu para que todos se reunissem na parada e assim aconteceu. Firme, sentido, eram a voz de comando seguida de calcanhares batendo. O capitão Só Alma aproximou a carta à altura de ser lida. Esteve longos segundos com a carta nessa posição. Depois deixou lentamente o braço descair e desistiu de a ler, se é que tinha intenção de o fazer. Com uma voz que ninguém lhe ouvira antes, disse:
«Hoje, por ser a noite da consoada, temos rancho melhorado, vinho à descrição e mais uma refeição à meia-noite. Há bacalhau e couves e a luz só se desliga depois do menino nascer.» De seguida deu ordem de destroçar.
Minha Alma até poderia ter comentado mas seguiu o estar do Meu Contrário que ficou calado. Assim também ficaram todos e foi em silêncio que dispersaram, sem achar excessiva ou despropositada a cena. Talvez porque todos tínhamos recebido uma carta e sentido ganas de a ler em voz alta…

55 – «…mãe, ó mãe…» – A ceia foi como o capitão Só Alma disse que iria ser, e foi prolongada com os mimos que quase todos receberam de casa, no último correio chegado de Maquela: Broas; duros bolos-reis; passas e até alguns sonhos e rabanadas, retardadas por alguns dias de viagem. Tudo era partilhado. O vinho não chegou em quantidade e não chegaria nunca para a avidez de todos. As securas de alma não se amenizam assim, de pé para a mão. As conversas animaram-se até tarde. Já passava muito da
meia-noite e a luz se apagara, quando voz aflita veio interromper o meu uísque com bala dentro, travestida de gelo (hábito que entretanto regressou). Veio dizer-me que o soldado Alma do Oriente estava mal e sem acordo de si. O Alma do Oriente era um soldado de ascendência goesa, magro, baixo e de olhos muito negros e humildes como os seus gestos e trato. A sua religião não lhe permitia o álcool e ninguém o tratava por «monhé», tal o respeito que lhe tinham. Estava de lado, deitado, de camisa e calças desapertadas. Hirto, sem arfar, parecia em coma. Pedi que arranjassem amoníaco para lhe dar a inalar, mas apenas consegui aguarrás. Demos a beber café bem adoçado e por ali fiquei a seu lado. Passadas horas, duas talvez, ouviu-se-lhe um som de lamúria ininteligível. Segundos depois um «ó mãe» e nova pausa para depois outro «mãe» e «ó mãe». Não sei quantos «ó mães» ouvi mais, tantos foram esses ais. Todos suspirámos de alívio. Minha Alma, sorri¬dente dizia com a já conhecida ironia:
«Rogério, esse é Jesus renascido e meu nome é Maria.»

Rogério Pereira, in "Almas Que Não Foram Fardadas
Edição EMACO, Dezembro de 2011

6 comentários:

  1. Foi bom reler este texto.
    Ainda a recuperar da cirurgia ao "farol" direito. deixo um abraço e desejo boa semana

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  2. Lembro com saudade e emoção, a leitura a conta-gotas, do "Caminhos do Meu Navegar", que haveria de dar vida "Às Almas Que não foram Fardadas"...Belos tempos!

    A bala a servir de gelo dentro do copo com whisky, ainda me anda a bailar na memória.
    Apesar de ter aqui o livro à minha disposição, gosto de vir beber na fonte...:)

    Um abraço, Rogério e boa semana.

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  3. Ahhh, reencontrar, aqui, o teu "Almas Que Não Foram Fardadas", lembra-me o tempo em que, não o tendo ainda lido, me "pulava o pezinho" para lê-lo de alto a baixo.

    Tal como acontece com a Janita, ainda oiço o tilintar da bala no copo de whisky.

    Abraço, Rogério.

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  4. Foi com um prazer enternecido pela dor de imaginar esses tempos difíceis que li este conto de Natal!

    Abraço

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  5. Textos como estes não deveriam existir. Percebe porquê?
    Feliz Natal e um Excelente Ano Novo, cheio de boas surpresas.
    Bjo

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  6. Este texto suscita-me vários comentários, mas vou conter-me. Quanto ao meu Natal de 1972, já o Rogério deve saber como se passou. A partir dessa altura fiquei a admirar ainda mais a verticalidade do meu camarada Arrifana. Quanto ao Natal do ano seguinte, tenciono publicar no meu blog um episódio sem importância de que entretanto me recordei, a acrescentar às minhas memórias. Passei o Natal de 1973 num destacamento a 200 metros da fronteira. Eu tinha encomendado um bolo-rei num estabelecimento comercial de Maquela e, quando o bolo chegou, verifiquei que era tão duro, que se fosse atirado à cabeça de uma pessoa, matava-a! Ninguém conseguia meter o dente naquilo... Foi diretamente para o lixo...

    Os meus votos de Boas Festas.

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