23 dezembro, 2018

Um conto ao Domingo - XXII ("NATAL 1972")


Há contos que são contados
e nascem da imaginação
colocada por cima 
da realidade vivida 
Outros são uma autêntica crónica
e devem permanecer na nossa memória
Este, foi retirado de um livro não editado
"Dignidade e Ignomínia" do Fernando Ribeiro
que também escreve na "Matéria do Tempo
NATAL 1972

Estávamos em finais de novembro ou princípios de dezembro de 1972, quando fomos encarregados de realizar uma operação que tinha por finalidade a destruição de lavras que existiam na área do Catoca, na zona de ação da companhia do Mucondo, e que pertenciam à população civil (considerada) afeta à UPA/FNLA. (...) O comandante da operação iria ser o Arrifana.

A execução da destruição das lavras iria estar a cargo de dois grupos de bailundos, que se encontravam às ordens do Exército em Santa Eulália e no Mucondo. A tropa de Zemba levaria consigo os bailundos de Santa Eulália e a tropa do Mucondo levaria os do próprio Mucondo. A nossa função, como militares, iria ser enquadrar e garantir a segurança aos bailundos, enquanto estes destruiriam as culturas agrícolas, munidos de catanas.

Habitualmente, antes da partida para uma qualquer operação, os oficiais que nela participassem costumavam reunir-se para acertar os pormenores sobre a sua execução. Neste caso, os três alferes destacados, Arrifana, Osman e eu, também fizemos uma reunião no Mucondo antes de partirmos para a operação. Logo a abrir, disse o Arrifana:
— Nós não vamos destruir lavras nenhumas. É um crime e eu não quero ser criminoso. Há crianças, há doentes, há mulheres, há muitas pessoas inocentes que não têm culpa de viver numa região em guerra. Nós não temos o direito de causar sofrimento a essas pessoas, obrigando-as a passar fome. Isto é coisa que repugna à minha consciência. Já basta o que sofrem com a própria guerra.
O Osman e eu manifestamos imediatamente o nosso total acordo. Uma coisa era combater homens armados, outra coisa muito diferente era fazer mal de propósito a civis indefesos. Discutimos então o que é que iríamos fazer, em vez de destruir as lavras.

Decidimos que primeiro iríamos às próprias lavras, para que ninguém pudesse dizer que não tínhamos ido ao objetivo. Uma vez lá chegados, separar-nos-íamos e procederíamos a patrulhamentos na zona, procurando detetar sinais sobre eventuais movimentações de guerrilheiros e outros indícios, uma vez que há vários meses que nenhuma força militar tinha andado por aquelas bandas. Iríamos, portanto, atualizar a informação que a tropa tinha sobre a situação na zona do Catoca.

A nossa progressão em direção às lavras decorreu sem qualquer problema. Porém, no preciso momento em que estávamos a chegar, ocorreu um incidente extremamente lamentável, que muito nos perturbou. Numa curva do trilho por onde seguíamos apareceu de repente uma mulher. Vendo que não conseguia escapar-nos, a mulher matou-se, espetando no peito a catana que trazia na mão. Os soldados que estavam mais próximos dela balbuciaram, estupefactos:
— Mas nós não queríamos fazer-lhe mal! Porque é que ela se matou? Porquê? Nós não íamos fazer-lhe mal! Juro que não íamos! Porque é que ela se matou?!
Passados os primeiros momentos de choque, o pessoal passou a manifestar a sua admiração por aquela mulher, exclamando:
— Que grande mulher! Preferiu morrer a deixar-se capturar. É uma heroína! Que grande mulher! Que grande mulher!
Como não se podia fazer nada para remediar a situação, pois a mulher já estava morta, procedeu-se ao seu enterramento e colocou-se uma cruz improvisada à cabeceira da sua sepultura. Os nossos camaradas que eram crentes ainda rezaram uma oração pela sua alma, antes de abandonarmos o local.

Vínhamos todos silenciosos, fortemente impressionados com o sucedido, quando um soldado falou muito alto, dizendo:
— Se a gaja não se matasse, quem a matava era eu!
Uma onda de indignação varreu toda a coluna. Uma chuva de insultos caiu sobre o soldado que tinha falado:
— Ó seu grande flho da puta! Tu eras capaz de matar uma mulher, seu cobardolas de merda?! Grandessíssimo cabrão! Cobarde!
Estes e outros "mimos" foram dirigidos ao soldado, que não voltou a falar. O resto da operação decorreu sem mais incidentes.

Quando, depois de terminada a operação, os dois grupos de combate da 3535 regressaram a Zemba numa coluna de viaturas, tiveram que parar em Santa Eulália para largar os bailundos que tinham ido com eles. Como sempre se fazia quando se parava em Santa Eulália, o comandante da coluna, que neste caso era o Arrifana, foi apresentar-se ao brigadeiro. Este perguntou-lhe quantos hectares de lavras é que tínhamos destruído na operação. O Arrifana respondeu que nenhum. O brigadeiro ficou raivoso, gritando:
— Vocês não destruíram as lavras?! Eu mandei-os lá de propósito para destruir as lavras e vocês não as destruíram? Isto é imperdoável! É uma desobediência! Se há coisa que eu não admito é que não cumpram as minhas ordens! De castigo, vocês vão passar a noite de Natal lá mesmo, naquelas lavras, a comer ração de combate e a dormir ao relento, para aprenderem a cumprir as ordens que lhes dão!

Na madrugada do dia 24 de dezembro, quando subi para uma viatura da coluna que nos levaria ao Mucondo, a fim de nessa noite cumprirmos o castigo ordenado pelo brigadeiro, senti um nó na garganta ao ver os meus homens tristes mas de cabeça levantada, sem um queixume nem uma recriminação. Tive pena e orgulho deles ao mesmo tempo.
Quando chegamos a Santa Eulália, o Arrifana mandou parar a coluna, a fim de ir falar com o brigadeiro e tentar convencê-lo a anular o castigo. Enquanto ele se dirigiu para o gabinete do brigadeiro, eu encaminhei-me para a messe de oficiais da companhia operacional de lá, a Companhia de Artilharia 3415, que era uma companhia sacrificadíssima e pela qual eu tinha muito respeito.
Na messe de oficiais da companhia encontrei o capitão e os alferes muito atarefados a fazer as decorações de Natal. Assim que me viram, perguntaram:
— Que é que estás aqui a fazer?! Hoje é véspera de Natal, não era suposto vocês virem cá. Deviam ficar lá em Zemba a preparar os festejos para logo à noite. Que é que se passa?
Expliquei-lhes que íamos passar o Natal na mata, de castigo por não termos destruído as lavras, por ordem do brigadeiro. Exclamaram:
— Ó pá! Façam como nós! Nós também não destruímos as lavras, mas o brigadeiro pensa que sim...
E passaram a explicar-me como deveríamos fazer:
— Como sabes, a base da alimentação da população desta região é a mandioca. O que se come da mandioca está debaixo da terra, são as raízes. Vocês podem fazer um desbaste na rama das mandioqueiras sem prejudicarem as raízes. Se calhar até lhes faz bem, pois será uma espécie de poda. Não tenham problemas de consciência.
Desbastem a rama e espalhem-na toda, para que o brigadeiro possa ver bem, se passar lá por cima de avião. Pode parecer que a destruição é muito grande, mas a verdade é que as raízes continuam intactas debaixo da terra, que é o que interessa.

Continuaram a explicar-me, acrescentando:
— Isto é o que vocês devem fazer à mandioca e a outros tubérculos, como a batata-doce. Agora quanto ao milho... Não toquem no milho! Se vocês cortarem o milho, ele morre, como é evidente. Vocês só podem cortar o milho quando virem que ele já está maduro. Então sim, cortem à vontade, sem problemas de consciência, pois ele acabará mesmo por ser cortado, mais dia menos dia.
Concluíram:
— É assim que nós temos feito e temo-nos dado muito bem com isso. O brigadeiro fica muito contente, porque pensa que as lavras foram destruídas, e nós não temos problemas de consciência, pois não provocamos fome em ninguém. O brigadeiro é militar de carreira, não percebe nada de agricultura...

Enquanto isto acontecia, no gabinete do brigadeiro o Arrifana tentava convencê-lo a anular o castigo, dizendo-lhe que o castigo era injusto para os soldados. Argumentou:
— O comandante da operação fui eu. Os soldados limitaram-se a cumprir as minhas ordens. Eles não têm culpa nenhuma e será uma injustiça se forem castigados. Se o meu brigadeiro quiser castigar alguém, castigue-me a mim, porque eu é que sou o responsável.
Ao fim de muita insistência, o brigadeiro acabou por anular o castigo, mas exigiu ao Arrifana que lhe prometesse que, numa operação posterior, aquelas lavras iriam mesmo ser destruídas. O Arrifana prometeu e nós pudemos regressar a Zemba, para passar o Natal com o resto da malta, como de facto aconteceu.

As lavras nunca foram destruídas. Pouco tempo depois, o brigadeiro foi substituído por outro e o novo brigadeiro não estava preocupado com lavras. Mas se tivéssemos que voltar à zona do Catoca para destruir as lavras, já sabíamos como haveríamos de fazer…

15 comentários:

  1. Impressionante relato!
    Boas festas, meu amigo.

    Abraço fraterno

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  2. Há ordens muito injustas mesmo em tempo de guerra.
    Abraço

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  3. Elvira, em tempo de guerra
    todas as ordens são injustas

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  4. Votos de um Natal hirto e firme!

    Volto para ler o conto de Natal.

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  5. Ematejoca, se voltares antes da consoada, terás poema...

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  6. Ainda passei por cá ontem à noite, mas os meus olhos já não funcionavam àquela hora. Via as letras mas o seu significado apresentava-se-me como a mandioca e a batata doce, para o brigadeiro... via-lhes a rama, não vislumbrava o essencial.

    Volto antes da consoada e deixo um abraço para ti e outro para o Fernando Ribeiro.

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  7. Maria João, mesmo com os olhos em mau estado deu para entender que o brigadeiro não percebia nada d´horta

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  8. :) Claro que deu. Eu também não conseguia "decifrar" este conto, ontem à noitinha. Estava tão ceguinha quanto ele... hoje, como os olhos um pouco menos cansados, li-o todo.

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  9. Em tempo de guerra há que aprender a sabotar ordens criminosas!

    Abraço natalício

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  10. Rosa dos Ventos, a PAZ também se alcança dessa forma...

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  11. Sou a Desejar-lhe Um Santo e Feliz Natal e Um 2019 com tudo de Bom.

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  12. Reafirmo que o que está aqui relatado é rigorosamente verdadeiro, independentemente de algum lapso de memória que a distância no tempo me possa ter causado.

    A população civil que iria ser alvo da operação descrita neste texto não era só "considerada" afeta à UPA/FNLA; era mesmo afeta a este movimento, no sentido em que estava com ele na mata e o apoiava, fosse por convicção, por medo ou por qualquer outra razão. Eram pessoas que vivam escondidas na floresta e escapavam totalmente ao controle das autoridades coloniais portuguesas, civis ou militares. Viviam em acampamentos extremamente rudimentares, escondidos debaixo das árvores para não serem vistos do ar, e que mudavam de localização de vez em quando, para que as tropas portuguesas não as encontrassem e não as atacassem. Porém, estas pessoas não podiam afastar-se muito das suas lavras, onde cultivavam mandioca, milho, feijão, batata doce, etc.. As lavras, essas, eram visíveis do ar, dadas as suas dimensões, por um lado, e porque precisavam de apanhar sol, por outro. Vendo-as de um avião, ficava-se logo a saber que algures, a pouca distância delas, vivia gente. Não era, por isso, muito difícil encontrar os acampamentos, mas a minha companhia fez questão em não os molestar, e disso me permito orgulhar.

    A zona onde se encontravam as lavras chamava-se Catoca. Ora existe no leste de Angola uma grande mina de diamantes tabém chamada Catoca. É claro que o Catoca de que aqui falo não tem nada a ver com diamantes. Era outro Catoca, situado a várias centenas de quilómetros da mina homónima. Este Catoca era um pedaço de selva (a sumptuosa e assombrosa catedral vegetal que era a selva africana), limitado a sul por uma profunda ravina e situado entre o Mucondo, no município de Nambuangongo, e Vista Alegre, no município de Quitexe.

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  13. Felizmente que havia resistentes à guerra - o meu irmão que comandava um pelotão, se ouvisse o barulho dos tambores das tropas, escondia-se e aos homens, para não combaterem - e a ordens cruéis como essa.
    Que tenha tido um ótimo Natal e que o Novo Ano lhe traga as melhores e maiores realizações.

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