23 maio, 2019

Chico, da Guerra Colonial ao Fado Tropical


«123 – Novas amizades. – Era já noite e ninguém nas ruas. Caminhava batendo os passos para sentir-me em companhia de mim próprio. Ia de não sei onde para lado nenhum, fardado com a farda do Exército português, com a boina de cavalaria a ocupar-me as mãos. Passeava apenas, adiando o sono. Atravessei um denso jardim e, ao longe, oiço o dedilhar de uma guitarra em acordes indecisos. Fui andando nesse sentido. À medida que avançava a melodia se ia construindo e o som ganhava nitidez. Mesmo antes de a voz aparecer, reconheci a composição de Chico Buarque. Depois a voz deu-me a canção que quase sempre trazia no coração e que frequentemente me vinha à mente em dias em que acordava com canções dentro de mim.
Aproximei-me sem qualquer cuidado em reservar sinais da minha presença e fiquei surpreso à paragem brusca do cantar. Reagi retomando o verso interrompido:
«Esperando, esperando, esperando, esperando o sol, esperando o trem, esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem…»
Sorri para o grupo. O que cantava, mulato muito claro estendeu-me a mão sorridente e julgo que aliviado. Os outros dois, um negro, o outro branco, acolheram-me assim também dessa maneira. Não falámos e o mulato claro retomou a canção até todas as vozes que ali estavam se juntarem num coro com o sotaque devido:

Esperando, esperando,
esperando, esperando o sol
Esperando o trem,
esperando aumento para o mês que vem
Esperando um filho p´ra esperar também
Esperando a festa, esperando a sorte,
esperando a morte, esperando o Norte
Esperando o dia de esperar ninguém,
esperando enfim, nada mais além
Da esperança aflita,
bendita,
infinita do apito de um trem
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando o trem
Que já vem...
Que já vem
Que já vem
Que já vem.
 (…)

O resto foram mais canções e prolongada cavaqueira sobre a cultura brasileira, a negritude, a miscigenação, a guerra colonial, a escravidão, a alma deles e a minha. Falámos da minha alma lusa, do meu coração celta e do meu sangue mouro.
Foi nessa noite, onde as canções romperam as couraças que protegem o pensamento perseguido e a filosofia proscrita, que se geraram laços de amizade e cumplicidade que me iriam abrir a porta a outras relações, entrando na intimidade da cidade.»

CAPÍTULO VII

EM NOVA LISBOA (HUAMBO)

3 comentários:

  1. Grande Chico! Já tardava, o Prémio Camões!

    O 25 de Abril não chegou logo a Angola. Demorou tempo a implantar-se, num território onde muitos queriam manter o domínio colonial. As autoridades civis e militares do antigamente agarravam-se ao poder, a censura continuou ativa por bastantes dias ainda, as repartições públicas mantinham os retratos de Américo Tomaz e Marcelo Caetano nas paredes e a libertação dos presos políticos do campo de concentração de São Nicolau, em Moçâmedes, só aconteceu em 13 de maio de 1974! O general Silvino Silvério Marques, da "brigada do reumático", foi convidado por Spínola para ser governador-geral de Angola e a PIDE, não só não foi extinta, como foi convertida em "Polícia de Informação Militar", por força do decreto 171/74 da Junta de Salvação Nacional!!! Custa a acreditar, mas é verdade!

    Mas o 25 de Abril acabou mesmo por chegar a Angola. Foi então que as rádios angolanas, enfim libertas da censura, passaram a tocar o "Fado Tropical", do Chico Buarque e Ruy Guerra. É claro que o "Fado Tropical" se refere ao Brasil, mas ouvir cantar em tom irónico, na Angola colonial, «Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai tornar-se um imenso Portugal» assentava como uma luva na situação que então se vivia. De resto, Ruy Guerra, que foi o autor da letra, era um moçambicano branco feroz opositor ao colonialismo e radicado no Brasil.

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  2. Ontem, regozijei-me com a atribuição do Prémio Camões ao Chico. Regozijei-me ao ponto de, por instantes, me esquecer do péssimo estado em que me encontro.

    Hoje estou ainda pior, mas soube-me bem revisitar esse capítulo do teu Almas Que Não Foram Fardadas.

    Abraço,


    Maria João

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