08 março, 2021

O Dia Internacional da Mulher, celebrado com um texto de Sophia (como há muito não lia nem ouvia)


«Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.

Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta. Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.

De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.

A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.(...)»

(leia tudo ou então oiça o conto tal como aqui é contado)
 

Sophia de Mello Breyner Andresen 
"Retrato de Mónica" in Contos Exemplares

16 comentários:

  1. Ouvi cerca de três minutos da vida de Mónica, tão perfeita, tão bem sucedida, que até os desgostos lhe correm bem. Amanhã virei ouvir até ao fim, pois preciso saber se a narrativa nos elucida de como isso fazer...Eu, que nada me corre bem, tenho de aprender com ela esses truques.
    Até amanhã, Rogério.
    Hoje já não tenho energia para mais nada.

    Abraço.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "tenho de aprender com ela esses truques."
      Com a verdade me engana

      (fui a essa mesma hora para a cama)

      Abracinho

      Eliminar
  2. Soberbo conto da Sophia! Nada me alegraria mais nesta manhã em que a Musa fez greve do que descobrir-me tão absolutamente diferente de Mónica.

    Abraço, Rogério!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não precisas de o afirmar! Mónica seria incapaz de te apreciar um poema, e ainda menos de produzir uma rima!

      Abraço, Maria João!

      Eliminar
  3. Grata pela partilha deste conto da Sophia que não conhecia. Um retrato de tudo aquilo que devemos combater. Dou graças por não me reconhecer em nenhum dos seus traços.
    Abraço e saúde

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. «Um retrato de tudo aquilo que devemos combater.»
      e já somos dois a dizê-lo
      e, eu, de alguma forma o faço!

      Abraço

      Eliminar
  4. Eu renunciei à santidade, mas não ao AMOR, à POESIA, à PINTURA ABSTRACTA 💙

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Renuncias ao figurativo?
      Renuncias ao período azul de Picasso?

      (Oh, santo Deus cada vez percebo menos esta mulher...)

      Eliminar
  5. Felizmente não tenho nada em comum com a Mónica.
    Não renunciei à poesia, muito menos ao amor, e a santidade todos os dias me visita, e eu todos os dias a aceito.
    Obrigada Rogério por esta admirável escolha .

    Um beijinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. «...a santidade todos os dias me visita, e eu todos os dias a aceito.»
      Eu sei, eu sei!

      Ocorreu-me esta escolha, pois hoje, a propósito da preparação do Dia Internacional da Poesia que estou organizando, voltei aos textos de Sophia...

      Beijinho

      Eliminar
  6. Esta Mónica não é só uma. Isso é que é preocupante.

    Lídia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bingo, acertou em cheio na minha intenção!
      É que Sophia conhecia bem a classe a que Mónica pertence... e foi intenção dela, enquanto mulher distanciar-se dela!

      Bjs

      Eliminar
  7. Desconhecia este conto da Sophia.
    Mas e como tudo o que ela escreve é uma pérola.
    Eu não sou nada como a Mõnica, mas, tambem não quereria ser.
    Gostei muito de ler.
    Um beijinho e continuação de boa semana.
    :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. «tudo o que ela escreve é uma pérola»
      Tudo o que ela escreve e (quase) tudo o que ela fez!

      Eliminar
  8. Muito bem! Desgostos é o que não lhe deve faltar. E a felicidade com toda a certeza mora ao lado.
    Gostei desta descoberta :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não me parece que essa espécie de mulher seja infeliz.

      Tendo os seus valores como referência até acho que não lhe acode qualquer desgosto!

      Bem vinda e apareça! Gostei de conhece-la!

      Eliminar