19 dezembro, 2021

HOMILIAS DOMINICAIS (Citando Saramago) - 112 [homilia onde cabe celebrar o Natal]


Não será difícil explicar a escolha do tema desta homilia. A imagem já explica metade. A metade em falta reúne lembranças minhas, idênticas rotinas, sabores, odores e histórias nunca interrompidas. E se não for suficiente a justificação dada, recordo que não tarda a data da celebração do centenário do nascimento de Saramago.
Um natal há cem anos

Quem diz cem, diz mil. Ou quarenta. Enfim, uma eternidade. A terra está esmagada de negrume. Não chove, as tempestades andam longe: o ar parado é denso de frio e parece estalar como uma rede ténue de cristais suspensos. Há uma casa e luz dentro dela.  E gente: a Família. 

Na chaminé ardem toros de lenha em fogo brando que de repente se encrespa quando se lhe juntam gravetos secos. Então a labareda cresce, divide-se, sobe pela chaminé encarvoada, ilumina os rostos da Família e logo volta a quebrar -se. Ouve-se melhor o ferver das panelas, o frigir do azeite onde bóiam as formas antigas das filhós, entre o fumo espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves do telhado e nas roupas húmidas. São talvez onze horas, a mesa está posta, o momento é de paz e de conciliação — e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos, como um formigueiro. 

Não tarda que todos saiam para o quintal. Agora vai ser lançado o foguete que anuncia aos vizinhos que naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no alguidar profundo, onde este produto da doçaria caseira aguarda o requinte final da canela e do açúcar. Entre portas, a Criança vê a Família a sorrir, fazendo e desfazendo grupos em volta do Avô que sopra um tição e o aproxima do pedaço de cana recheado de pólvora. Tinha pedido que o deixassem ajudar, mas não consentiram: é preciso cuidado com as crianças. 

A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de faúlhas, assobia — e o foguete dispara para o ar gelado, corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto estraleja, sonoro, entre os ecos doutro foguete distante. O caniço desce com uma luz que desmaia, mortiça, e vai cair longe, nos olivais, sobre a relva coberta de geada. Não há perigo de incêndio. De súbito, a Família sente o frio e torna a casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a Criança que não pudera ajudar a lançar o foguete. O interior da cozinha arrefeceu. A Avó atira uma mão-cheia de aparas, e o lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha e, mansamente, recomeça o seu trabalho de destruição. 

A Família gira em redor da mesa, com muitos rostos corados e sorridentes, que têm nomes mas são, antes de tudo, para a Criança, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos — um corpo de animal complicado que lhe lembra a história da Bicha-de-Sete-Cabeças Deste Mundo e do Outro 17 ou o Dragão-Que-Não -Dorme. Sobre a mesa há, neste momento, uma batalha de mãos, de dentes, de mastigação que deforma os rostos. Contam-se casos, anedotas, todos riem. O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano talvez a deixem lançar o foguete sozinha. Tem também uma história para contar, e vai contá-la. Só está à espera de uma pausa, de uma ocasião em que todos se calem, para ajustar a sua pequena e trémula voz, porque a história é importante, muito mais do que a Família julgaria. Então, o momento aproxima-se, a Criança prepara-se, é agora — começa a falar. A Família olha, espantada, dá a atenção que pode, mas não dura muito, não pode durar, e alguém corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase que vai fazer chorar a Criança. 

Porque a Criança levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, assim como uma varanda que desse para terras desconhecidas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e sente desfazer-se dentro de si o terrível nó das lágrimas. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Está muito frio. O céu é alto e profundo. Visto dali parece feito de veludo negro, se fosse possível chegar-lhe com a mão. E há as estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Vistas através das lágrimas são diferentes. Que mundo estranho, este. Sob os passos da Criança, o chão estala. E, em frente, as árvores negras, vagamente assustadoras, tomam o ar confidencial de quem conhece os segredos todos.

Saramago, in crónicas "Deste Mundo e do Outro"

10 comentários:

  1. Escolha cinco estrelas ⭐️ ⭐️ ⭐️ ⭐️ ⭐️

    As crónicas do José Saramago são pérolas da Literatura Portuguesa.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Dele, todas as páginas
      são mágicas
      até mesmo
      se triste, como esta

      Eliminar
  2. Hoje parece que combinámos, Rogério!

    Acho que Saramago repetia muitos os temas ou foi o Rogério que fez a nistura.
    Esse último parágrafo é praticamente o início do conto do Nobel, cujo título é:"História de um Muro Branco e de uma Neve Preta".

    Abraço.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, assim parece
      só que ao pedaço lá citado
      no seu espaço
      falta-lhe a explicação

      Sobre a repetição referida, Janita, o que se passa é que, depois de escritas as crónicas, Saramago juntou duas delas e voltou a publicar sob outro título, esse por si referido...

      Eliminar
  3. :) Foi exactamente aqui, nas páginas deste livro que, há mais de três décadas, me apaixonei pela escrita de Saramago.

    Vou tentar guardar este PDF - embora não saiba como - porque o livro já não está comigo e gostaria muito de o reler quando tiver olhos para tanto :)

    Forte abraço!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querida amiga, se não apaixonasses nessas, seria noutras. A escrita é toda ela, em toda a obra, apaixonante.
      Num dos próximos dias que vá a tua casa te ajudo a guardar tal livro.

      Abraço amigo

      Eliminar
  4. Gostaria de ter lido mais contos do grande Saramago.
    Na minha estante apenas um ,que já reli e é sempre prazeroso.
    Obrigada, Rogério por esse presente de Natal. E que venha mais lembranças
    boas da infância _dessas 'nunca interrompidas'
    meu abraço nesses ultimos respiros de mais um ano que lá vai indo.
    Aguardemos um outro Novinho para viver outras histórias.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Terei sempre contos que contar... uns, inspirados no momento, outros, de vivências que a memória guarda e outros ainda de mera invenção (assim não me falte a inspiração)

      Quanto ao Ano Novinho... temo que nasça já velho e caquéctico.

      Beijo

      Eliminar
  5. Agradeço a partilha, não conhecia este conto tão belo e tão trsie!

    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, bem triste e fazer que pensar...
      ao fim de cem anos mantém toda a actualidade

      Abraço entristecido

      Eliminar