11 janeiro, 2012

O tempo, que o tempo tem...

Minha filha, parece procurar no tempo coisas que eu dela bem lembro... Com ela partilho a minha memória, no dia do seu aniversário:

80 – O telefonema para casa. – A operadora da Marconi quebrou a curta espera: «O número pedido vai atender, não desligue por favor», seguiram-se três, quatro toques de chamada e, depois, a voz querida e esperada. Precipitados, dois olás simultâneos, dela e meu, um por cima do outro, tornaram mais evidente o nervosismo e a distância dos corpos. Vozes, a custo claras, porque embargadas, venciam a custo a emoção de um reencontro de palavras em tons tão familiares e íntimos, para dizerem coisas de circunstância, repetindo o que já tínhamos dito e repetido em centenas de cartas durante a tão longa ausência de oito pesados meses. De quando em quando era o silêncio, a pausa, cada um esperando a iniciativa do outro para se repetir o falar conjunto, em atropelo. Rimos de uma das vezes em que tal aconteceu e isso soltou mais a conversa. Ela falou sobre as nossas filhas, as suas últimas graças e traquinices. Falava e eu escutava. Falou da sociabilidade da João («ela mete conversa com toda a gente, com tudo dito e explicadinho») e a sua relação com a irmã, a Sandra, contando como imitava, ora com esta ora com a boneca, gestos maternais. Como ela queria também dar o biberão, mudar a fralda, dar banho, coisas que testemunhavam uma relação normal e a resposta também normal da Sandra (que acabara de fazer um anito) e de como esta era muito alegre, calma e meiga. Ouvia tudo, num esforço vão da minha memória ali reconstituir as feições e de mentalmente ir reconstruindo as situações que iam sendo descritas. Depois foi a fase mais dolorosa, com a rejeição, da minha pequena João, em falar. A recusa era muda, perante a insistência da Teresa: «Fala, fala, é o papá. Diz-lhe olá, vá… ele vai gostar.» Os segundos pareciam eternidades e o apelo não a demoveu. «Deixa lá», atalhei eu, percebendo que a emoção a inibia mais que o aparelho, que bem lembrava eu de ela usar com destreza e prazer e onde falava imitando os gestos adultos de quem conversa com coisas importantes de serem ditas. Íamos reatar a conversa, quando pancadas repetidas e zangadas se fizeram ouvir nas minhas costas. A fila era grande, outros, muitos, esperavam para falar para casa, para também exorcizar a saudade. A despedida foi assim precipitada e é-me difícil lembrar um beijo de despedida, de um beijo falado. Recordá-lo-ia se fosse dado…
Rogério Pereira In "Almas que não foram fardadas", pág. 97 
Parabéns Maria João

19 comentários:

  1. Tempos duros. Forte a tua escrita. A transpirar ternura em cada letra.
    Parabéns à Maria João. E a ti!

    ResponderEliminar
  2. Ando numa fase "lamechas" e ao ler isto fiquei embargado e com "elas" a bailarem-me nos olhos.

    Beijinho à "cachopa", que mesmo não conhecendo me merece o desejo de feliz Aniversário.

    ResponderEliminar
  3. Querido Rogério,

    Parabéns à sua mai-velha! Que tenha uma Vida longa e Feliz!

    Este "retalho da vida de um soldado", apesar de já o ter lido, emocionou-me de novo e sempre me emocionará...assim como outros idênticos.

    Porque será que há saudades que nunca conseguimos exorcizar?

    Um beijo.

    F.M.

    ResponderEliminar
  4. Caro Rogério
    Esta página já me fez enxugar os olhos 2 vezes. Não foram 3 porque acho que não a publicou no blogue (ou então escapou-me)Lia-a no livro e agora aqui.
    Num cenário completamente diferente mas com um afastamento de 6 meses, tambem fiz um telefonema para casa tinha a minha filha 2/3 anos.Inesquecível...
    Ora aqui vão os meus parabéns para a filha e claro para o pai da filha.
    Abraços

    ResponderEliminar
  5. Comovida, sem muitas palavras que possam transmitir quanto a sua escrita forte me tocou, lhe deixo um afectuoso abraço de parabéns e votos de saúde e felicidade para si e para a Maria João, Rogério.

    ResponderEliminar
  6. Memórias cheias de ternura e emoção!
    Parabéns à João e a todos os que a amam!

    Abraço ao pai

    ResponderEliminar
  7. Reli.
    De novo me deixei envolver pelo deleite da leitura. Quem assim escreve fá-lo com o coração, dando voz aos sentimentos.
    Parabéns à Maria João

    ResponderEliminar
  8. Tenho a certeza de que a Maria João se vaia emocionar com este presente. Se até eu me emocionei!

    Parabéns aos dois.


    Um beijo

    ResponderEliminar
  9. Parabéns Maria João!

    pelo aniversário e pelo pai que tem

    um abraço

    ResponderEliminar
  10. Pai, obrigado pela forma como nos tens brindado nos nossos aniversários. Como sempre disse tens um dom para isto. Beijinhos
    Obrigado também a todos pelos parabéns.

    ResponderEliminar
  11. Tu, tua alma e teu contrário fazem uma boa parceria quando o assunto é escrever. O difícil de morar do outro lado do oceano é aguardar o esperado texto singrar os ares. Já faz mais de uma semana, ou duas e nada até agora. Um dia chega. Tenho planos para ele e para ti, mas no momento próprio revelo. Um grande bj querido amigo.

    ResponderEliminar
  12. :) parabens

    deixou-me emocionada

    Bjinhos
    paula

    ResponderEliminar
  13. Parabéns à Maria João, com lágrimas de emoção...

    Parabéns também para o pai e para a mãe, para as vivências de um tempo que os temperou a todos e uniu.

    Beijinho para a aniversariante e para toda a família neste dia de Festa.

    Branca

    ResponderEliminar
  14. Meu amigo ontem não pude vir aqui, portanto embora atrasada deixo um beijinho de parabéns à sua filha Maria João.E a si por me ter emocionado com este seu texto que faz parte do seu livro que estou a ler com muito prazer e atenção.


    beijinhos

    ResponderEliminar
  15. Rogério

    Ando se tempo para o tempo. Resultado não tenho vindo lê-lo e assim passou uma data tão importante.

    Mesmo atrasados, PARABÉNS para ambos.

    Beijo

    ResponderEliminar