02 maio, 2022

ONTEM... NÃO FOI O DIA DO COLABORADOR!


 «Ontem foi o dia do trabalhador. Um pouco por todo o mundo celebram-se as conquistas dos trabalhadores, reflete-se sobre o que ainda falta fazer e renovam-se as vontades de continuar a luta.

Em Portugal a data começou a ser comemorada publicamente só após o 25 de Abril, mas já antes trabalhadores e ativistas a assinalavam sob a atenção repressiva da polícia. Quem esteve nas comemorações do 1 de maio de 1974 fala dele com emoção.

Muita coisa tem mudado para os trabalhadores portugueses e a maioria das mudanças tem sido positiva. Devem essas mudanças à sua própria luta e a quem a apoia e incentiva. A importância dos sindicatos e das representações parlamentares de esquerda não deve ser esquecida. Não se trata de reconhecimento e de gratidão. É que são precisos. Os trabalhadores correm riscos, se estas estruturas enfraquecerem.

A luta dos trabalhadores não está concluída. Nunca estará. Direitos laborais consolidados são muitas vezes postos em causa; é recordar a regressão dos tempos da troika e da governação de Passos Coelho e como algumas dessas alterações ainda se mantêm em vigor. Até 2011 os trabalhadores que fossem despedidos sem justa causa — no âmbito de um procedimento de despedimento coletivo ou de extinção de posto de trabalho — tinham direito a uma compensação equivalente a 30 dias por cada ano de trabalho prestado. Nunca mais lá se voltou. Ea troika já saiu há muito tempo.

A palavra “trabalhador” tem um peso que a muitos desagrada. Preferem dizer “colaborador”. Um colaborador é aquele que não está em luta com a sua entidade empregadora e que esquece o mantra do Código do Trabalho e das convenções coletivas de trabalho. Não pretende ser um grão de areia na engrenagem para a qual presta trabalho, digo: colabora.

Um colaborador é eficiente, é disponível e ambicioso. Não está sindicalizado. Gosta de desafios e de surpreender as hierarquias com as suas ideias inovadoras e fora da caixa. Um colaborador é aquele que dá tudo. Concilia a sua vida pessoal com a profissional de forma a não prejudicar a última. Abdica da primeira, se preciso for. É bom de ver que as empresas apreciam colaboradores.

Este fim-de-semana soube das conclusões de um estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, do Instituto de Saúde Ambiental da Universidade de Lisboa e da Sociedade

Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. Concluíram que cerca de um quarto dos trabalhadores portugueses apresentava sintomas de burnout. A pandemia não ajudou. Soube também que Portugal, num universo de 24 países analisados pela OCDE, é o terceiro pior no que diz respeito à conciliação entre vida pessoal e vida profissional.

Más notícias.

Estar sempre disponível é muito bom para as empresas, mas não tanto para os trabalhadores. Já agora: em Portugal a compensação por tanto esforço é assinalável, mas não pela positiva. Na avaliação da OCDE é o quarto país com o salário médio anual mais baixo.

Escravos por conta de outrem, escravos por conta própria, dizia o Luiz Pacheco. Agora talvez se acumulem as duas escravaturas. Somos explorados sobretudo por nós mesmos. O sonho liberal do sucesso, de uma carreira, exige a autoexploração; o esforço mental até ao limite, até arder. Luiz Pacheco não aprovaria. Exaustos ficamos reduzidos a nós mesmos, mas ao mínimo que temos e somos.

Ontem assinalou-se o dia de todos os trabalhadores, mesmo daqueles que não se reveem na luta. Há quem reivindique a semana das 35 horas de trabalho semanais e quem sonhe com a semana dos 4 dias. Ainda bem que estão na estrada, que sobem a Avenida Almirante Reis e que vão para a Alameda. O que eles conseguirem beneficiará todos.

O desejo de sucesso, a ambição de triunfar no mercado de trabalho ou no mercado em geral não são de demonizar. Faz parte da natureza humana querer vencer e esta sociedade não é meiga para os que não triunfam. Mas essa luta, que é individual e individualista, não dispensa a outra.

O dia do trabalhador não é sobre profissionais de sucesso, é sobre luta coletiva; sobre trabalhadores que se unem e que exigem melhores condições para si e para os restantes. Todos procuram ter uma vida satisfatória. Mas a satisfação é mais difícil de obter em circuito fechado. Sobretudo, alguém deveria avisar estes colaboradores que sozinhos, e por muitos que sejam estão sempre sozinhos, não têm força.

Mas deixem-nos descansar primeiro. Estudos dizem que estão exaustos.

O dia do trabalhador não é sobre profissionais de sucesso, é sobre luta coletiva; sobre trabalhadores que se unem e que exigem melhores condições para si e para os restantes»

Carmo Afonso, hoje, no "PÚBLICO"

11 comentários:

  1. Excelente texto que subscrevo integralmente.

    Abraço e tudo de bom :)

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  2. Que esplêndido artigo, caramba! Uma vénia para a lucidez da Carmo Afonso e um abraço para ti, Rogério!

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    1. Carmo Afonso é uma, muito recente, surpresa. Merece a tua vénia.
      Abraço

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  3. Só que a sociedade está cada vez mais individualista!

    Abraço

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    1. «O dia do trabalhador não é sobre profissionais de sucesso, é sobre luta coletiva; sobre trabalhadores que se unem e que exigem melhores condições para si e para os restantes. Todos procuram ter uma vida satisfatória. Mas a satisfação é mais difícil de obter em circuito fechado. Sobretudo, alguém deveria avisar estes colaboradores que sozinhos, e por muitos que sejam estão sempre sozinhos, não têm força.»

      Abraço

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  4. Embora eu seja uma individualista da cabeça até aos pés, li com atenção o artigo da Carmo Afonso, o qual aprovo absolutamente 👍

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    1. Mudar já, sendo madura? Por que não? Muda-se em qualquer altura...
      olha,
      começa em casa, com a família, junta-te a esse colectivo
      ou começa no teu bairro, junta-te ao condomínio

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  5. Como em todos os actos que pratica, o ser humano tem uma tendência diria, quase patológica de auto destruição, é assim no dia a dia, é assim na guerra, é assim no mundo laboral.
    Ao contrário dos seus antepassados primatas que criaram os grupos de caça para melhor sobreviver, depois as aldeias, hoje tornou-se um ser individualista, onde só conhece o eu e nunca os outros.
    Eu lá estive a reforçar aquela onda solidária e ainda hoje com os meus 65 sou acima de tudo trabalhador e não colaborador.
    Que belo texto de Carmo Afonso
    Abraço

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    1. A auto destruição é um processo muito diligente desenvolvido pelo poder estabelecido, pela classe dominante!
      Também estive, com os meus 77 anos...
      Excelente texto de Carmo Afonso
      Abraço

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  6. Boa tarde!
    Um artigo excelente sem dúvida!
    Concordo na íntegra.
    Dia e semana feliz!
    :)

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