24 maio, 2022

"ZERO EM COMPORTAMENTO"


Em vésperas de entrar no mundo escolar, para apresentar uns "Contos para serem contados", faço uma incursão prévia por esse mundo, para melhor entendê-lo. Tropecei neste texto e dou-vos conta que me dá muito que pensar:
«A meio de um dos dias da semana passada, um amigo de doze anos chegou a casa e afirmou convicto que não queria voltar à escola. Eu engoli em seco e quando espreitei, lá estava um nó-cego para me entreter.

Num dia como outros soa o alarme de fim de recreio e um bando de miúdos regressa à sala de aula. Distribuem-se pelas mesas e preparam os cadernos, as mãos e canetas para um sumário ditado, primeiro dito do que feito.

O professor entra pouco depois e o sumário é ele que o traz – vieram essas linhas já de casa, entrelaçadas com os objectivos, as metas, as médias, as benditas tabelas feitas a regra e esquadro, iguais para todas as crianças de determinada idade - bem sabemos que nos movemos todos a um tempo, partilhamos uma sorte.

E traz o professor aqueles planos, arrancados à sua própria sobrecarga, dividem casa com o seu fardo burocrático, papéis e cartas, avaliações e notas, currículos e pautas – é um milagre que consiga ter tino e tempo para pensar nos sumários e seria um milagre maior se tivesse tempo para traçar um dessumário, já lá iremos.

Estes miúdos distribuídos pelas mesas têm entre onze e doze anos. Ainda trazem as brincadeiras interrompidas, a novidade por contar, a vontade de um tempo-sem-rédea que não se perde por decreto no caminho do recreio à sala. Mas o professor apressado, de sumário na ponta da língua, amarrou os olhos ao alvoroço do momento e tomou por desrespeito que uma das crianças não lhe cumprisse uma ordem curta e imediata – conclusão, o meu amigo pequeno viu-se a braços com uma falta disciplinar. Uma falta disciplinar equivale desde logo a uma falta injustificada à aula em causa, fora outras possíveis consequências – mas o facto de ter regressado a casa certo de que não queria voltar à escola é de longe a mais importante.

Este episódio, assim contado, pode pecar por falta de detalhes e aprofundamento, mas deixa a descoberto um lugar ferido para onde vale a pena olhar.

Se numa primeira investida instintiva tornarmos a atenção para o professor, facilmente tropeçamos na sua sobrecarga. Ao professor que trabalha, tantas vezes, além das 46 horas semanais no cumprimento do imenso trabalho imposto à volta dos papéis, não lhe sobra tempo para estar com as crianças. Estar com as crianças, entenda-se, com tempo para isso, e para daí colher os frutos de partilha e de confiança que assim se constroem. Estar com as crianças de corpo presente e inteiro, disponível para ouvi-las e vê-las, disponível também para aprender a desaparecer-lhes da vista e aconchegar de longe o lugar onde se põem a teste.

Um professor que trabalhe tantas e tão duras horas, exposto ao desafio de olhar a cada um dos seus tantos alunos e de raramente o conseguir, exposto às consequências da falta de vagar para se nutrir, exposto ao barulho, ao espaço da escola onde convivem tantas vidas, tantos desejos e anseios, tanta descoberta e tanto cansaço ao mesmo tempo – não pode ser um professor disponível.

Tornemos então a atenção para as crianças. Elas, que se juntam em bando e lhe ganham a força, elas que também embatem na sua violência potencial. Elas que passam tantas horas do seu dia na escola, elas a quem sentimos não dever explicação alguma sobre isso. Vão para onde as mandamos e mandamo-las para a escola – um lugar de promessa, do sonho feito paredes-meias com os outros, edificando hojes e amanhãs. Mas é mesmo? É isso que lá fazemos? E como é que fazemos?

Se prestarmos atenção, também nelas há o empecilho da falta de tempo. Movem-se, do acordar ao deitar, ao ritmo de acompanhar os adultos nas suas próprias tarefas de existir, o que não é coisa pouca. Quantas vezes se vestem com pressa, se lavam num ápice, correm rua acima e abaixo para não perder o alarme de entrada na sala? Quanto tempo têm para brincar? Porque será que lhes separamos o tempo de brincar do tempo de aprender?

Claro que a escola não se faz apenas de crianças e professores. Sobre os restantes adultos que a compõem, as inquietações e as perguntas não são muito diferentes.

Eu, que trabalho a brincar durante todo o dia, quantas vezes me confronto com os colegas que «a bem da civilidade futura» decidem que as crianças não podem procurar com o corpo inteiro os brinquedos dentro do baú? «Dentro do baú não se entra, não são selvagens», «ali não se brinca», «acolá não se descobre». Tudo nos parece a cada passo uma falta de respeito, pior, uma falta de respeito que nos é dirigida em particular, como se fosse suposto que uma criança com quem não tivemos tempo de construir uma relação de confiança, confiasse em nós, nas nossas decisões e julgamentos, nos limites que desenhamos com os lápis que trazemos.

Quanto nos esquecemos uns dos outros. Usamos o espaço da escola como mais um onde construímos sobrevivência. Num mundo tão assim o tempo inteiro, não digo que não possa ser útil. Mas pergunto-me porque andamos tão preocupados com calendários e formalidades, e tão pouco em perguntar uns aos outros: como correu o teu dia?

E se ousássemos, todos nós, os que compomos as escolas com o nosso tecido humano, fazer perguntas sobre o tempo? E se de cada resposta fizéssemos nova pergunta? E assim sucessivamente? E se assim desfizéssemos sumários, desarrumássemos espaços, sossegássemos alarmes?

De pequenino é que se torce o pepino. Mas, e se não o torcêssemos? O que acontecia à nossa turma, à nossa escola, ao nosso bairro, ao nosso mundo?»


12 comentários:

  1. Virei mais tarde - espero... - debruçar-me sobre este assunto. De momento, estou mesmo de saída para mais uma consulta hospitalar.

    Abraço!

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    1. Sabendo que não deixas promessas que não cumpras... já vi que voltaste.

      Abraço

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  2. Um texto bem pensado, Rogério
    Com a ressalva que infelizmente somo obrigados a conviver [
    com a justificativa do professor cansado, mal remunerado e
    sem tempo de viver todas as necessidades que uma sala de
    aula,impõe.
    E os pepinos continuam ... rs
    abraços, amigo e obrigado pelo texto a refletir.











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    1. Preocupante a situação da escola pública
      Preocupante a impotência da família...

      Não agradeça o que sinto ser meu dever
      Abraço

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  3. O quadro não é animador, não senhor: dos professores que já foram torcidos como pepinos na sua infância e que, nas actuais circunstâncias, continuam a sê-lo, aos meninos que agora enfrentam as primeiras grandes/dolorosas torcidelas, nem sei que te diga para além do que já todos sabemos que seria uma lufada de ar fresco neste cenário de desencontros - a diminuição do número de crianças por cada professor, um aumento de salários, uma menor sobrecarga horária para os elementos do corpo docente, etc., etc.

    Os meninos, esses continuarão a ser meninos a menos que o excesso de torcidelas os transforme em qualquer coisa que nada tem a ver com o que realmente são.

    Abraço, Rogério!

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    1. Sim, referes algumas medidas das mais sentidas... mas em meu juízo é mais que isso... a começar nos conteúdos e a acabar na falta de assistentes educativos, psicólogos e assistentes operacionais...
      Não sei por quanto tempo os meninos continuarão a ser meninos...

      Abraço triste

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  4. «[…]
    Quando vejo uma criança a ter um ataque de ansiedade ou a ir para casa com uma depressão (provavelmente para um lar onde a deixam o dia inteiro sozinha), penso: é óbvio que estas crianças estão estoiradas, é óbvio que estas crianças não acreditam no mundo que temos para lhes oferecer, é óbvio que estas crianças não se podem revoltar porque não se podem juntar, não se podem unir, não podem sequer confraternizar. A grande revolta é desligar. Ser um Bartleby e dizer: prefiro não o fazer! Estas crianças têm uma carga horária escolar desmedida, porque os pais têm uma carga horária laboral desmedida, porque têm despesas quotidianas desmedidas, porque os valores de tudo o que há de mais fundamental é desmedido.
    […]»

    Patrícia Portela, no Jornal Letras, n.º 1347.

    As escolas não são imunes aos problemas do mundo, como muitos pensam. As escolas são o espelho das sociedades onde se inserem. Quando a prioridade primeira que as rege não é o bem-estar da Criança, a sua formação global, de acordo com as características particulares que a definem, mas os interesses do Poder, a escola só pode ser aquilo em que, tem vindo a transformar-se: uma mentira. Se não o é ainda, claramente, devemo-lo ao esforço contínuo e diário de muitas e muitas pessoas que, todos os dias, lutam nas nossas escolas para colmatar falhas, ultrapassar dificuldades e problemas, darem de si o que têm e o que não têm, esquecidos quantas vezes de que ganham pouco. Uma criança doente, triste, assustada, ansiosa, não pode esperar...


    Lídia

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    1. Obrigado querida amiga pela introdução da sua visão... ela remete-me para o texto que de seguida vou publicar. Continue por aqui.

      Beijo

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  5. Olá, Rogério, já havia estado aqui e li tudo com atenção pela segunda vez, o texto merece. E me reportei às minhas lembranças.
    Quando somos crianças, é verdade que nos queixamos das coisas, parece que é só o que fazemos. São as terríveis aulas de matemática, as lições que não são feitas em casa e depois pretendemos enrolar o professor, ih, e o colega que incomoda, a outra que senta atrás e só cutuca para darmos 'cola' nas provas. Tantas coisas que nos queixávamos, algumas lágrimas, outras vezes sorrisos. E os reparos e mágoas dos professores na nossa falta de atenção, de educação. Mas e agora, como lidamos com nossa criança que tanto reclamava? O que pensamos daqueles e de todos os professores que aguentam muitas coisas e que são mal remunerados? O que pensamos, o que penso eu já tão distante de tudo aquilo que era nossa vida? O que pensar dos pais que enviam seus filhos para os professores educarem? Aquela vida maçante, de brigas e caras feias? Mas e aquela vida cheias de histórias que gostávamos de escutar? Naturalmente que as crianças também sofrem nas escolas com colegas e professores, mas onde as crianças são totalmente felizes? Onde existe um ambiente totalmente saudável? Não existe esse mundo encantado em lugar nenhum, mas são as recordações que carregamos.
    E aquilo tudo que vivemos, continua em nossos filhos e netos. Aquilo não morre, são as lembranças mais vivas que carregamos.
    Beijo

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