19 dezembro, 2011

DISCURSO TARDIO À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO



Éramos jovens: falávamos do âmbar
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o vero; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.

Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
de ventre, espaço denso, redondo maduro,

dizias; espaço diurno onde o rumor
do sangue é um rumor de ave –
repara como voa, e poisa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela a não tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.

Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.

Catarina, ou José – o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer, 
quando se beija a terra devagar 
ou uma criança trazida pela brisa?

.............................................................Eugénio de Andrade
Lembrando um assassinato

11 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Saibamos honrar os nossos mortos, caro Rogério.

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  3. meu caro Rogério,

    exelente o teu post...
    não deixar que nos apaguem a memória.

    o fascismo existiu. mesmo!

    abraço

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  4. Preservar as memórias e honrar os nomes de quem em nós as mantém vivas.

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  5. Um dos meus poemas favoritos do Eugénio de Andrade. Lindíssimo! Que bem os soube ele honrar nestas palavras!

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  6. Caro Rogério

    Perdão pelo “copy & paste”, mas não dá para individualizar…
    Trago votos de BOAS FESTAS, fazendo minhas as palavras de Gandhi…
    “Se eu pudesse deixar algum presente a você, deixaria aceso o sentimento de amar a vida dos seres humanos;
    A consciência de aprender tudo o que for ensinado pelo tempo afora;
    Lembraria os erros que foram cometidos para que não mais se repetissem;
    A capacidade de escolher novos rumos;
    Deixaria para você, se pudesse, o respeito àquilo que é indispensável:
    Além do pão, o trabalho; Além do trabalho, a acção.
    E, quando tudo mais faltasse, um segredo:
    O de buscar no interior de si mesmo a resposta e a força para encontrar a saída."
    (Gandhi)

    BOM E SANTO NATAL E FELIZ ANO NOVO

    Beijinhos

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  7. Havia de sul a norte
    Prisão política, tortura e morte.
    Saía o desnorte à rua
    do sol nascer ao pôr da lua.
    ...

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  8. Excelente

    Para ti tudo de melhor
    neste inverno prolongado

    e descontente

    Abraço amigo

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  9. Muito bom.
    Do poeta para o pintor, poesia que é pintura.

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  10. Muito bonito! Então o poema de Andrade... um espanto!

    Bela homenagem!

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  11. Embora não tenha tido oportunidade de passar por aqui quando publicou este poema, não podia deixar de vir atràs beber desta excelente leitura e reviver memórias que não podem ficar esquecidas no tempo, que apesar de tristes são também belas porque feitas de vidas com coerência, de homens e mulheres inteiros que não se vergam, nem se ajoelham...

    A eles devemos tanto, neles devemos beber todo o exemplo de uma vida digna e livre, para vencermos e merecermos o futuro.

    Bem haja
    Beijos

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