I
Nunca tivera daquelas exclamações de que ter filhas, miúdas, mulheres, era uma dor de cabeça, uma chatice. Nunca as teve porque nunca assim pensou, sendo mais insistente o pensamento de que ter filhos, independentemente do sexo, era, mais de que uma responsabilidade acrescida, uma exigência de conduta. Sempre achou que o exemplo era a maneira mais pedagógica de educar e que esse valor, bem partilhado pela sua mulher e doseado com outros, daria às filhas as armas, porque de armas se trata, para se afirmarem na vida. Lembrava-se que, no dia em que aguardava o nascimento da sua filha-do-meio, nessa mesma clínica, uma parturiente irrompeu em soluçante choro, audível na pequena sala de espera para onde davam as portas todas, a dos quartos e a sala de partos. Aí se ouviam os gritos da mulher clamando de ser desgraça, castigo de Deus o ter tido outra menina. "Aí, quem pode ouvir agora o meu homem..." Este pungente lamento foi mais claro pois coincidiu com a saída da enfermeira que, supunha ele, lá dentro lhe dava assistência. Ia tirando as luvas de borracha e com voz embargada, quase sussurrada dizia como se acabasse de ser insultada: "Alguém que venha tratar esta mulher, eu já a não quero nem ouvir."
II
O jantar estava praticamente no fim. A filha-mais-nova , numa posição que lhe era peculiar, ia garfando as ultimas porções do que tinha sido a refeição. A mãe ia trazendo, para sobremesa, restos do aniversário há pouco passado: bolo de coco, mousse de chocolate, salada de frutas, gelatinas, verdes e vermelhinhas, que a avó Mimi tinha cortado aos cubinhos. Ele ia levantando a mesa e as duas outra filhas permaneciam suspeitosamente silenciosas ocupando as mãos e os olhares por tudo o que estava na sala, com instável concentração. Ele sentou-se. A mãe sentou-se. A Lobita, a cadela que conquistara até a afeição dele, estirou-se calma contrariando o nome que lhe fora dado. As patas avançadas e o focinho pousado com aquele ar prazenteiro de quem já tinha também alojado e saboreado o seu quinhão, lá na cozinha, apareceu ali a juntar-se à família, como se fizesse parte dela. E fazia. "Mãe, hoje vamos sair à noite." disse a filha-do-meio enquanto a filha-mais-velha, com disfarçada olhadela, tentava descortinar na cara dele uma possível e indesejada reacção, uma rejeição. A mãe, ficou silenciosa, com aquele silencio conivente de quem cala consente, sua característica de sempre. Não foi por mero acaso que o tom emprestado à fala da filha-do-meio, não foi o da interrogação, nem o da procura de consentimento, mas sim a de procura do consenso, da aceitação. A filha-mais-velha, para tranquilizar, lá foi dizendo onde iam, com quem mais iam e que não chegariam tarde. Ele não disse nada. Arranjaram-se aprimorando-se na apresentação, com o gosto de adolescentes de então. Saíram. A filha-mais-nova nem se lamentou, conformada com a sua pouca idade e talvez satisfeita pelo que ia dando na TV. As horas passaram e um pouco depois da hora aprazada chegaram. Chegaram de mansinho para não acordar. Todos dormiam, ou isso pareciam...
III
Logo que teve uma oportunidade deu por desculpa a saída naquela noite. Não precisava de o fazer mas achou que não devia dizer onde ia. Tinha procurado o nome da boite na lista das páginas amarelas e lá foi. Sentou-se. Pediu de beber. Mediu o ambiente, avaliou-o e, mentalmente, inquiriu cada um dos presentes: quem seriam, que fariam, qual seria o seu pensar e maneira de estar. Mediu a estridência das gargalhadas os decibéis das falas, a distância dos corpos e a qualidade da musica que passava... Depois saiu. De regresso a casa ia pensando, confiante mas constrangido, pelo papel de investigador de um crime não cometido. Anos mais tarde uma das filhas, não se lembra qual, lhe contaria que tinha sido espiado nessa sua inspecção à primeira noite, por um inspeccionado, que por acaso era um adolescente, vizinho do prédio ao lado...