31 março, 2012

Causas do buraco, o tal que estamos pagando e que se vai alargando - 2


Tenho por certa a ideia que o grande buraco (que, ameaçadoramente, mantenho aí ao lado) resulta, além do que foi dito, de se ter metido na tal gaveta a regionalização e, a par com outras medidas conhecidas, se ter assegurado a  desertificação do país...
Em 23 de Junho de 2010, era este meu espaço uma ainda uma imberbe criança, mas já atrevida e a entrar na dança interveniente nos temas que, mais tarde, tanto iriam doer à gente, quando publiquei esse mapa aí ao lado. Chamei a esse post "Regionalização, a evolução registada". Desde essa data muito se passou sem que se passasse mais nada além da confirmação, com pequenos acertos, do mapa então desenhado... Como sempre, o pessoal, o povo, reage tarde. Enquanto a coisa ia acontecendo, em tempo lento, paulatinamente, passo a passo, a caminho da desertificação, fechando isto e mais aquilo e depois outra coisa, para depois se acabar com outra ainda, as populações iam refilando, mobilizando-se pontualmente, num caso ou outro, mais organizadamente. O grande buraco foi sendo mais e mais cavado.
Foi preciso pôr preto no branco (no tal livro que por acaso é verde) que se iam acabar com mais que muitas freguesias e que os municípios vinham a seguir, para se reagir. Pois é, vai ter que ser e eu quero ir ver. Hoje, depois de almoço, espera-se alvoroço. Não, ainda não será contra tudo isso que tem vindo a acontecer. Ou será? Vá-se lá saber...

Se quiser saber mais sobre o que aqui digo. Força, vá lá saber!
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Foi assim:






(Reedição deste post às 22 e 15 h)

29 março, 2012

Causas do buraco, o tal que estamos pagando e que se vai alargando - 1

Há muito que tinha pensado reflectir sobre o que me parecem ser as causas profundas da situação a que chegámos. E porque não se chega sem se ser empurrado para tal, quem é que nos empurra... Não sei se tal reflexão vos interessa. A mim sim,  e muito. Quero ter a cabeça arrumada. Quero continuar neste meu espaço com o espírito de missão com que o iniciei. 
Tinha algumas hesitações sobre por onde começar...


... a  noticia de hoje do Público tirou-me do impasse.
Falemos então de corrupção e de como ela concorre, de facto, para o buraco



Tiago Guerreiro: "Segundo estudos da OCDE, se o país não tivesse este nível de corrupção
 teria o nível de desenvolvimento da Dinamarca"

28 março, 2012

A flauta (aquela que agora me faz tanta falta)

"Não vás para o calor, filho." Minha avó era a mãe de todos os filhos deste mundo. Tratava-me assim a mim e a todas as crianças da vizinhaça e as que por lá apareciam. Eu obedecia-lhe enquanto me lembrava, depois disso, não, e metia-me quinta fora descobrindo coisas de descobrir e encantar. Naquele dia, o sol estava tão abrasador que até meu avô decidira suspender a sua faina e sentar-se junto ao palheiro, debaixo de uma velha oliveira, há muitos anos plantada junto a um pequeno canavial. Sentara-se a fumar o que eu entendia ser sinal de valer a pena me aproximar e tomar-lhe um pouco da sua atenção. Foi o que aconteceu. Olhou-me e percebeu que eu esperava dele qualquer coisa daquelas que costumavam acontecer quando lhe aparecia e ele tinha tempo para me dar. Decidiu-se nesse dia por coisa que não tinha feito antes. Levantou-se, andou uns metros, poucos, curvou-se sobre uma das canas, a mais verde e a que lhe parecia mais adequada, e cortou-a com a navalha. Aquela navalha, sempre afiada e que sempre lhe vira usar em tão variados usos, desde cortar o queijo e os côdeas de  pão, cortar erva para os coelhos ou podar as videiras, até o que agora ia fazer, com aquela pequena cana. Não sabia o que seria, mas não perguntei para não quebrar o encanto do que ia acontecer. Seus gestos eram certeiros, como se não fizesse outra coisa na vida senão executar, com precisão, pequenos recortes numa verde cana, que ia cortando. Cortou primeiro um segmento, para aí com um palmo, dos dele ou o dobro o triplo dos meus. Depois um pequeno orifício, entalhado. Tinham-se passado alguns minutos sem palavras. Não eram necessárias pois lhe bebia atenciosamente os gestos. "É uma flauta" - disse, percebendo que me interrogava sobre o que seria. "É uma flauta igual à daquele menino, de uma cidade distante, tão distante daqui, que se tu quisesses lá ir e partisses agora, só lá chegarias velho. Velho como eu" - abanei a cabeça  para dar a entender que percebia a distância. "...e foi há muito tempo atrás, há tanto, que para assistir ao acontecido apenas o avô do avô do meu avô o poderia ter visto" - abanei a cabeça, à mesma, dando a entender que percebia o há tanto tempo que tinha sido, e ele continuou a contar, enquanto eu ia dividindo a minha atenção entre o que habilmente fazia e o que ia contando: "...pois essa cidade foi invadida por ratos pequenos mas que se transformaram, com o tempo, em ratos cada vez maiores. Ratos enormes e gordos. Enormes e maus, que tudo roíam e destruíam, espalhando o terror e pondo os habitantes da pacata cidade fechados em casa, sem saírem dela. Os ratos tomaram conta da cidade e só faziam e espalhavam maldade.  O governo e os senhores que faziam leis e tomavam conta da ordem na cidade, deixaram de o poder fazer." - eu ia ouvindo e me impressionando com o conto, com o rosto dele - tão sereno - o com os movimentos das mãos, que tinham abandonado a navalha e iam agora colocando uma folha de papel da sua carteira de mortalha e que lhe servia, normalmente para fazer os cigarros. -  "Então os mais velhos da cidade, reunidos, resolveram  fazer saber que dariam grande riqueza a quem salvasse a cidade. Logo alguém, pequeno como tu, apareceu oferecendo-se para o fazer a troco de nada." - Nesta  altura a mortalha estava colocada e o trabalho pronto. Faltava só experimentar. mas continuou a contar - "O menino que se tinha oferecido, foi para a rua e todos os vizinhos se inquietaram com tal acto que lhes parecia muito arrojado e cheio de perigo, pois os ratos nunca perdoaram a quem antes o tinha tentado. Foi então que o menino, tirou da pequena algibeira uma flauta igual a esta. E tocou. Tocou alto, uma melodia tão bela e que a cidade nunca ouvira. Ficou tocando e os ratos foram aparecendo, mas sem atacar o menino. Quando a praça estava pejada de ratos o menino foi andando, andando e tocando. Tocando e andando. E os ratos atrás dele como que encantados pela melodia que o menino ia tirando daquele pequeno instrumento." - Meu avô parou de contar e experimentou a flauta que tinha acabado de fazer. Soprou-a devagarinho e o som saiu baixinho. Meu avô sorriu, orgulhoso do feito e retomou o conto. "O menino com todos os ratos da cidade atrás dele saiu, pelo grande portão, que as cidades tinham então. Quando percebeu que todos tinham saído e já nenhum rato ficara dentro parou de tocar e correu, correu, correu. Correu, entrou na cidade pelo portão de onde saíra e fechou-o dando sete voltas à chave. Toda a cidade aclamou o salvador, cantou e dançou enquanto os ratos, lá fora, sem ter que comer, acabaram por morrer" - Eu fiquei tão contente como se fizesse parte daquela cidade de antigamente e recebi das mãos do meu avô a flauta pronta e experimentada. Metia-a cuidadosamente no meu pequeno bolso. Dias a fio, daqueles que se seguiram, frequentemente tirava a flauta do bolso e tocava-a. Garanto-vos que mil ratos enormes, disformes, centenas de dragões e toupeiras daquelas que arrasam batatais e outras sementeiras, me seguiam até passarem para lá do portão da quinta, que eu imaginava ser o portão, como as cidades do conto tinham então...
Rogério Pereira
NOTA DO AUTOR - Os contos do meu avô eram, como já referi em anterior post, reconstruções ou adaptações de outros que mais tarde fui descobrindo na sua versão original. Este, reconto como a memória me permite, é um muito livre plágio de um conto, célebre, dos irmãos Grimm: "O Flautista de Hamelin". Esta versão é mais interessante que a original.

27 março, 2012

PSD/CDS - Uma caricatura é sempre uma imagem deformada da realidade...

.Imagem da net
Uma caricatura é sempre uma imagem deformada da realidade. O caminho que está a ser seguido nem nos conduz a um buraco tão pequeno, nem a pressa de lá chegar será essa. Nem parece que a boa aceitação ao discurso de Pedro Passos Coelho, no encerramento do congresso, tenha da parte dos portugueses a percepção desse apressado caminhar para o abismo. Tenho, de tudo isto que digo, razoável certeza. A minha dúvida é se, à força de tanto se mentir, essa gente passou a acreditar nas próprias mentiras ditas.

(Este post foi-me sugerido ao ler isto, que me foi enviado pela Brancamar, via e-mail) 

Estarei, com mais quarenta operários de escrita... nesta iniciativa bonita.




Um video onde meu nome consta. A honra de constar...

26 março, 2012

Não são meros sinais de circunstância...


A linguagem nem é dúbia nem omissa

O cravo vermelho e José Afonso, são apropriações desenvergonhadas 


O slogan mistifica o discurso e o rumo...

Para além de alguns sinais (muito) preocupantes, outros, igualmente recentes, indiciam que a direita sabe da poda: assume, sem peias, os seus objectivos e fá-los passar pelo canal mais adequado; apropria-se do imaginário, das bandeiras e de valores de Abril; afirma-se  habilidosamente, em congresso, como um partido de causas. Perante a letargia conivente do PS, enredado nas suas próprias contradições, a direita tem delineada uma estratégia que lhe poderá assegurar a sobrevivência no poder, mesmo se o país se afundar numa situação de dramáticas consequências para o que sobra da economia e para o povo. Não basta a indignação. E a denúncia desta estratégia será sempre neutralizada pela boa imprensa de que a direita goza.  

Que fazer?

25 março, 2012

Homilia dominical (citando Saramago) - 76



HOMILIA DE HOJE
"O rapaz vinha do rio. Descalço, com as calças arregaçadas acima do joelho, as pernas sujas de lama. Vestia uma camisa vermelha, aberta no peito, onde os primeiros pêlos da puberdade começavam a enegrecer. Tinha o cabelo escuro, molhado de suor que lhe escorria pelo pescoço delgado. Dobrava-se um pouco para a frente, sob o peso dos longos remos, donde pendiam fios verdes de limos ainda gotejantes. O barco ficou balouçando na água turava, e ali perto, como quem espreita, afloraram de repente os olhos globulosos de uma rã. O rapaz olhou-a, e ela olhou-o a ele. Depois a rã fez um movimento brusco, e desapareceu. Um minuto mais e a superfície do rio ficou lisa e calma, e brilhante como os olhos do rapaz. A respiração do lodo desprendia lentas bolhas de gás que a corrente arrastava. No calor da tarde, os choupos altos vibraram silenciosamente, e de rajada, como uma flor rápida que do ar nascesse, uma ave azul passou rasando a água. O rapaz levantou a cabeça. No outro lado do rio, uma rapariga olhava-o, imóvel. O rapaz ergueu a mão livre e todo o seu corpo desenhou o gesto de uma palavra que não se ouviu. O rio fluía, lento. O rapaz subiu a ladeira, sem olhar para trás. A erva acabava logo ali. Para cima, para além, o solcalcinhava os torrões dos alqueives e os olivais cinzentos. Metálica, dura, uma cigarra roía o silêncio. À distância, a atmosfera tremia. A casa era térrea, acachapada, brunida de cal, com uma barra de ocre violento. Um pano de parede cega, sem janelas, uma porta onde se abria um postigo. No interior, o chão de barro refrescava os pés. O rapaz encostou os remos, limpou o suor ao antebraço. Ficou quieto, escutando as pancadas do coração, o vagaroso surdir do suor que se renovava na pele. Esteve assim uns minutos, sem consciência dos rumores que vinham da parte de trás da casa e que se transformaram, de súbito, em guinchos lancinantes e gratuitos: o protesto de um porco preso. Quando, por fim, começou a mover-se, o grito do animal, desta vez ferido e insultado, bateu-lhe nos ouvidos. E logo outros gritos, agudos, raivosos, uma súplica desesperada, um apelo que não espera socorro. Correu para o quintal, mas não passou da soleira da porta. Dois homens e uma mulher seguravam o porco. Outro home, com uma faca ensaguentada, abria-lhe um rasgo vertical no escroto. Na palha brilhava já um ovóide achatado, vermelho. O porco tremia todo, atirava gritos entre as queixadas que uma corda apertava. A ferida alargou-se, o testículo apareceu leitoso e raiado de sangue, os dedos do homem introduziram-se na abertura, puxaram, torceram, arrancaram. A mulher tinha o rosto pálido e crispado. Desamarraram o porco, libertaram-lhe o focinho, e um dos homens baixou-se e apanhou os bagos, grossos e macios. O animal deu uma volta, perplexo, e ficou de cabeça baixa, arfando. Então o homem atirou-lhos. O porco abocou, mastigou sôfrego, engoliu. A mulher disse algumas palavras e os homens encolheram os ombros. Um deles riu. Foi nessa altura que viram o rapaz. Ficaram todos calados e, como se fosse a única coisa que pudessem fazer naquele momento, puseram-se a olhar o animal que se deitara na palha, suspirando, com os beiços sujos do próprio sangue. O rapaz voltou para dentro. Encheu um púcaro e bebeu, deixando que água lhe corresse pelos cantos da boca, pelo pescoço, até os pêlos do peito que se tornaram mais escuros. Enquanto bebia, olhava lá fora as duas manchas vermelhas sobre a palha. Depois, num movimento que parecia de cansaço, tornou a sair de casa, atravessou o olival, outra vez sob a torreira do sol. A poeira queimava-lhe os pés. e ele, sem dar por isso, encolhia-os, para fugir ao contacto escaldante. A mesma cigarra rangia, em tom mais surdo. Depois a ladeira, a erva com o seu cheiro de seiva aquecida, a frescura entontecedora debaixo dos ramos, o lodo que se insinua entre os dedos dos pés e irrompe para cima. O rapaz ficou parado, a olhar o rio. Sobre um afloramento de limos, uma rã, parda como a primeira, de olhos redondos sob as arcadas salientes, parecia estar à espera. A pele branca da goela palpitava. E a boca fechada fazia talvez uma prega de escárnio. Passou tempo, e nem a rã nem o rapaz se moviam. Então o rapaz, desviando a custo os olhos, como para fugir a um malefício, viu no outro lado do rio, entre os ramos baixos dos salgueiros, aparecer a rapariga. Outra vez, silencioso e inesperado, passou sobre a água o relâmpago azul. Devagar, o rapaz tirou a camisa. Devagar se acabou de despir, e foi só quando já não tinha roupa nenhuma no corpo que sua nudez, lentamente, se revelou. Assim como se estivesse curando uma cegueira de si mesma. A rapariga recuou para a sombra dos salgueiros e com os mesmos gestos lentos se libertou do vestido e tudo quanto a cobria. Nua sobre o fundo verde das árvores. O rapaz olhou uma vez mais o rio. Círculos que alargavam e perdiam na superfície calma, mostravam o lugar onde a rã mergulhara. Então, porque o Verão queimava e era urgente negar o escárnio, o rapaz meteu-se à água e nadou para a outra margem, enquanto o vulto branco da rapariga se escondia entre os ramos." 
José Saramago, conto "Calor"

24 março, 2012

No dia da Greve Geral , no Chiado à tardinha...

ver, para perceber como a coisa se cozinha...


Reedição  (trazendo para este espaço as fotos editadas onde elas foram postadas)


Combinando a receita...


... preparando o cozinhado...

Sobre o resto, já foi muito dito e mostrado!


Em cima das palavras ponha-se qualquer sentido que as esconda

Em cima da batida, tensa de quem pulsa e pensa / Em cima do grito, da ideia e do apelo ao navegar / Em cima do que se pensa ser o que nos amarra / Em cima de qualquer palavra que nos faça pensar/ Em cima de tudo isso coloque-se um desígnio do sistema / Uma imagem forte que venda...  
A arte ao serviço do consumismo
Aceitam-se cartões de crédito e pagamento em 12 mensalidades, sem juros...

23 março, 2012

Greve. Dizeres improváveis (ou talvez não)

-------------------------------------------------------------------------------------------- foto cedida por Brancamar (vá lá espreitar)
Das janelas da Reitoria da Universidade do Porto, os professores universitário mediam o povo. Diziam entre si coisas que só os catedráticos -  e outros sábios - sabem dizer entre si: 
Manifestações?, umas boas bastonadas e davam em nada; a greve geral seria grave se fosse geral e não está sendo por razões umas conhecidas, outras não; a greve é um contratempo fora de tempo, se lhes retirarem mais salário ninguém falta ao trabalho; a greve é importante pois faz parte da democracia desde que não seja em demasia; a greve assim é que está bem, não chateia ninguém; ...quando se acabar com a economia, não haverá quem a fará; vejam só a chatice se houvesse muito operariado,..
E prosseguiram, comentando o programa que ouviram na rádio:

22 março, 2012

Como se tudo dependesse da Primavera - II


CLASSE MÉDIA
Temendo a greve, o marido
já tinha saído
Deixou a agua a correr, na temperatura requerida
Preparou o que vestir, a roupa interior, a blusa garrida
e aquela saia rodada
A banheira transbordava
Escoou-a um pouco para que lhe coubesse o corpo
Estendeu-se, languidamente,
deixando que o quente, lhe amainasse a pressa
Não esqueceu os sais com odores de flores
E assim ficou, longos minutos
até despertar para o tempo
em gestos resolutos
Massajou o cabelo, com desvelo
depois de lhe deitar o champô com odor a maçã
Passou pela pele o creme de amêndoas
e no rosto o costumado anti rugas, levemente aromatizado
Vestiu-se., fez o penteado
e treinou a silhueta, olhando-se de perfil, detrás e de frente
Esboçou um riso, contente
Na cozinha, preparou um chá de jasmim
Hesitou, entre este, e a prateleira de cima do frigorífico
onde, alinhados, estavam os iogurtes, ricos em bifidus
muito coloridos
e não açucarados
Optou por o de  morango aos pedaços
Trincou uma tosta com doce de frutos silvestres
e meteu na mala a caixa de chicletes
Antes de sair, fechou a janela
não fossem os pólens entrarem por ela
Apressou-se, ia chegar atrasada
à esplanada
Chegou, gabaram-lhe  o ar e o trajar
os cheiros, o penteado e o sorriso
E entrou na conversa sobre os horrores da moda, o preço das extensões, dissertando pelos inconvenientes de se ter um filho, no ponto preciso
surge-lhe uma chamada
Era o marido anunciando que fora despedido
Num gesto impensado desligou
Perguntaram-lhe quem era
Respondeu - alguém que se enganou...
Tranquila,
pediu um gelado com sabor a baunilha
----------------------------------------------------------------------------------------- Rogério Pereira 

20 março, 2012

A Dª Esmeralda e a vizinha do 4º andar, a conversar (9)

Esclarecida quanto à questão, se o tal investimento vale ou não, a conversa progrediu:

Vizinha do 4º andar - Olhe D. Esmeralda, aquilo que me disse no outro dia , lembra-se? de isto ser um país que já está lá no fundo, de que se vai passar a poder trabalhar às horas que o patrão quiser, e deixar de poder ver os filhos e a mulher e do  magro salário mínimo nacional, do trabalho sem direitos, do país que passou a despedir sem justa causa e a pouco pagar para despedir, do país dos que perderam subsídios de férias e o 13ª mês, do país que vê degradar o ensino e encarecer a saúde, do país que está à venda e vê sair a renda... Lembra-se de me ter dito tudo isto?
D. Esmeralda - Lembro, lembro. E então
Vizinha do 4º andar - Acho que tem razão... é mesmo de se fazer greve. Falei de tudo isso lá em casa... 
D. Esmeralda - Sim? e então?...
Vizinha do 4º andar - Ninguém me passou cartão. Sou uma escrava e ninguém me dá importância ...
D. Esmeralda - Sim ? e então?
Vizinha do 4º andar - Pesa-me o coração que minha filha não me ligue, meu filho é quase e igual e minha nora... essa... até me trata mal...  
Rogérito (da janela do 3º) - D. Esmeralda, diga à vizinha do 4º andar que a escravatura tem de acabar, que entre em greve e não lhes prepare o jantar! ...

19 março, 2012

Dia do sogro... sogro de genros

Ainda me lembro de como recebia, cartõezinhos com desenhinhos: uns a lápis de cor, outros com colagens misturadas com pinturas a guache, outros ainda a aguarelas. Todos com dizeres. Recebia-os de todas elas, acompanhados de beijinhos e abraços. Gostei até de um troféu que quase me convenceu que era o melhor pai do mundo. Acho que, sem lhes dar grande importância, fui gostando e até guardando. Mas agora, mudei de opinião. Acho que, para manter a família coesa, para quem é pai de filhas, que se deve proclamar dia 15, exéquo, dia do pai e do sogro. É o que proponho. Se assim não for, que assim não seja. Mas cá em casa fica decretado. É assim. Fica o assunto encerrado. 

Na envolvente, a câmara capta sons de pequena gente... são os netos 
(esse video está tecnicamente uma desgraça, mas passa. O assunto é sério... )

18 março, 2012

Homilias dominicais (segundo Saramago) - 75

Há dois anos, quase, sabia pela imprensa que Pilar del Rio anunciava ir a Fundação Saramago propor o juiz Garzón para prémio Nobel da Paz. Ontem um amigo me convidava a reforçar proposta idêntica. Segui sem hesitar essa sugestão e, no mesmo acto, repliquei a sugestão a dezenas de amigos meus, pensando engrossar a essa cadeia de reconhecimento. É cedo para ter a percepção do sucesso, não só da minha participação, mas do resultado global. Verdade se diga, nem estou muito preocupado em saber se irá ou não por diante a candidatura e, a ir, se Baltasar Garzón virá a ser nobelizado. Por vezes basta-me  saber que alguns caminhos estão a ser percorridos e que eu fiz o que acho que é digno de ser feito.
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HOMILIA DE HOJE

"As lágrimas do Juiz Garzón hoje são as minhas lágrimas. Há anos, a um meio-dia, tomei conhecimento de uma notícia que foi uma das maiores alegrias da minha vida: a acusação a Pinochet. Este meio-dia recebi outra notícia, esta das mais tristes e desesperançadas: que quem se atreveu com os ditadores foi afastado da magistratura pelos seus pares. Ou melhor dito, por juízes que nunca processaram Pinochet nem ouviram as vítimas do franquismo.Garzón é o exemplo de que o agricultor de Florença não tinha razão quando, em plena Idade Média, fez dobrar os sinos a finados porque, dizia, a justiça havia morrido. Com Garzón sabíamos que as leis e o seu espírito estavam vivos porque as víamos actuar. Com o afastamento de Garzón os sinos, depois do repique a glória que farão os falangistas, os implicados no caso Gürtell, os narcotraficantes, os terroristas e os nostálgicos das ditaduras, voltarão a dobrar a finados, porque a justiça e o estado de direito não avançaram, nem terão ganho em transparência e quem não avança, retrocede. Dobrarão a finados, sim, mas milhões de pessoas sabem reconhecer o cadáver, que não é o de Garzón, esclarecido, respeitado e querido em todo o mundo, mas o daqueles que, com todo o tipo de argúcias, não querem uma sociedade com memória, sã, livre e valente." - In O Caderno de Saramago, publicado a 14 de Maio de 2010 

Saramago a Garzón: os sinos voltam a dobrar 
"O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. “O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino”, foi a resposta do camponês. “Mas então não morreu ninguém?”, tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: “Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça, porque a Justiça está morta.”  - Carta de José Saramago, ao FÓRUM SOCIAL MUNDIAL - 2003

17 março, 2012

Redacções do Rogérito (8)

Tema da redacção: Mafalda e os Calimeros
Não gosto de meninos que dizem que não gostam de sopa e depois de um olho arregalado dum dedo bem espetado comem-na toda e até rapam o tacho que cá para mim a questão da sopa nunca foi posta pois minha mãe ma dava explicando tim tim por tim tim que a sopa verdadeira sempre foi necessária ao crescimento e quando fosse mais velho e fosse crescido se tivesse que deixar de gostar de sopa o poderia fazer pois já não iria mais crescer coisa que aconteceu com a Mafalda que dizia que sopa seria sempre o que pior lhe acontecia mas nada a fazia comer com os riscos que a Mafalda corria por não crescer coisa que veio de facto a acontecer pois ainda no outro dia a vi e ela já fez cinquenta anos e está na mesma sem tirar nem pôr sem ter crescido certamente por não ter a sopa comido mas ao menos não é como os tais outros meninos que dizem que não gostam de sopa e a comem todos os dias e agora andam aí a fazer de calimeros que nunca mais param de chorar e comem tudo aquilo que não gostam e não param de se lamentar o que continua a acontecer mesmo depois de terem crescido comem do que não gostam mas votam nos que não fazem outra coisa para a refeição senão sopa é que é mesmo só sopa aquilo que lhes dão mas não sei se terão emenda quando houver outra votação.

Eu pago, eu pago, mas ao menos quero saber o quê, carago!


Todas as questões são pertinentes,
 e todas as respostas são importantes. Conheça-as aqui
<>O<>
(leia e divulgue)

16 março, 2012

A Dª Esmeralda e a vizinha do 4º andar, a conversar (8)


Vizinha do 4º andar - Olhe D. Esmeralda, isto de fazer greve para que é que serve? Só afunda mais o país...
D. Esmeralda - Qual país? O que já está lá no fundo? O dos que vão passar a poder trabalhar às horas que o patrão quiser, e deixam de poder ver os filhos e a mulher? O país dos que ganham um magro  salário mínimo nacional? O do trabalho sem direitos? O país que passou a despedir sem justa causa e a pouco pagar para despedir? O país dos que perderam subsídios de férias e o 13ª mês? O país que vê degradar o ensino e encarecer a saúde? O país que está à venda e vê sair a renda? O país...
Vizinha do 4º andar (atalhando) - Até pode ter razão, mas fazer greve mês sim, mês não, é uma banalização!!!
D. Esmeralda - O seu homem fez greve, da última que foi convocada?
Vizinha do 4º andar - Não!, credo...
D. Esmeralda - E a sua filha? seu filho?, e a sua nora?
Vizinha do 4º andar - Nem pensar....
Rogérito (da janela do 3º) - D. Esmeralda, a família da vizinha do 4º andar banalizou o deixa andar...

15 março, 2012

Um dia em que se celebra muito mais que uma ironia


Dia do consumidor e dos seus direitos. Que ironia celebrar este dia. Por certo o celebra quem defende o direito de optar numa suprema liberdade de aceder a tudo, entre o público e o privado, esquecendo que hoje a opção é determinada por ter ou não condições para, pura e simplesmente, se manter... consumidor.  Celebrarão também aqueles que limitam suas exigências à transparência no processo de privatizações dos operadores de serviço público, cuja posse,  por parte do Estado, deveria ser considerada como a sua própria génese e razão de existir. Vale tudo, desde que a transparência e a visibilidade dessa transferência seja devidamente garantida oferecendo-se, assim puro, o espectáculo da perda do sentido do próprio Estado.

Não o celebrarão os outros. Não o celebrarão os que colocam como direito primeiro do consumidor o direito a um salário mínimo digno, sem o qual deixarão pura e simplesmente de ser gente. 
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Há mãos e vozes atadas 
no fundo de cabazes de misérias, 
amargo pão que o diabo amassou. Entala-se 
entre a fome e os dentes na boca dos homens 
para que não possam gritar...
...........................................................................(recuperado de um comentário da Lídia Borges)

14 março, 2012

Os tais papelinhos amarelinhos...

Porque os papeis se guardam e depois nem sempre sabemos onde estão. Porque os devia ter lido onde ele gostaria que os lesse e eu, por outro acto comovido, acabei por os não ler. Porque é um marco na rota das minhas escritas e afectos. Por tudo isso, resolvi guardar aqui e partilhar as palavras de um amigo. Obrigado, meu caro Eufrázio Filipe.
.

"Duas breves palavras que trago a este encontro de amigos – as primeiras e inevitáveis dirigem-se ao Rogério, que me honrou com o seu convite para deste modo partilhar este momento. 
Não participei na guerra colonial mas sempre estive envolvido em lutas contra ela. Na verdade, fardaram-me por um mês, mas a natureza impôs aos mandantes que me desfardassem. Com 14 dioptrias, fui recrutado para ser oficial, mas na primeira oportunidade perante um amanuense do regime a apontar-me um quadro com letras colossais para testar meus pobres olhos – respondi – desculpe comandante mas não vejo o quadro. De facto eu não destinguia um sargento de um general pelas divisas, pelo que sempre chamei comandante a todos os que exibiam qualquer coisa nas presilhas da farda. 
Não conhecia o Rogério de lado algum. Tropecei-o no blogue “Conversa Avinagrada” e despertei para as suas homilias acerca de meu amigo e camarada José Saramago que um dia visitei na sua antiga casa junto a S. Bento para timidamente lhe solicitar um parecer acerca de um punhado de poemas que transportei nas mãos trémulas. Saramago não me estimulou mas por delicadeza também não me sugeriu que desistisse. Foi um pai – de tal modo que hoje não me considero poeta mas tão só um artesão de palavras. Nós não deixamos morrer os nossos mortos e o Rogério é um inexcedível divulgador de Saramago - obviamente que me atraiu para as suas homilias. 
Um dia publiquei um livrinho com apresentação pública na Galeria Augusto Cabrita no Fórum Municipal do Seixal e uma pessoa afável cumprimentou-me sorridente. Perguntei-lhe com quem estou a falar? E a pessoa afável respondeu – com o Conversa Avinagrada. Despertei e abraçamo-nos. Mais tarde um novo livrinho e lá estava – agora sim, o meu amigo Rogério, que há muito partilhava textos acerca da guerra colonial – textos que desde sempre considerei viagens de afectos em todos os seus apeadeiros – um olhar critico da guerra, numa linguagem de espelhos, quando se interroga e nos interroga, quando sugere a todos uma leitura de corpo inteiro. 
“Almas que não foram fardadas” é o titulo feliz de um livro vivido – escrito numa linguagem simples que tantas vezes se transcende pela poética que nos oferece – um testemunho original que ajuda a não apagar a memória – um legado humanista em três dimensões aos jovens de todas as idades. “Almas que não foram fardadas” pela transparência da narrativa e a autenticidade do autor que entendeu por bem expor-se em livro, merece divulgação nacional, uma leitura atenta – apetece-me dizer – um livro que se recomenda às bibliotecas municipais para mais ampla compreensão de um período negro do nosso quotidiano colectivo. Meu caro Rogério, tentei ser breve. Aceita mais este abraço e o desejo de grande sucesso para esta tua obra." 
Eufrázio Filipe 

13 março, 2012

O Processo Histórico, o "cenador" Mário Soares, António Gedeão e... a tal geração

Imagem de há um ano atrás e um link para um ultimato meu 

O Processo Histórico - Sabem, quem me lê, quanto uso a dialéctica como ferramenta para entender o mundo. Sabem, também, que dou valor às lições da memória, minha e de quem escreve a história. Nesta, há, na sua própria dialéctica, o conflito geracional como processo do próprio movimento da história. Neste domínio, o mundo pula, avança ou regride consoante um conjunto de situações e os valores em causa: os que são defendidos pelos velhos e os contrapostos pelos novos. A síntese será o que for, em cada momento. Mas se numa dada situação, como parece ser a de hoje,  os velhos valores são difusos, contraditórios, incoerentes e inconstantes, a par de outros que agressivamente se afirmam, não se espere dos novos outra coisa senão a abulia, a negação pela negação e a queixa dorida de quem, nem sequer, consegue entender o que contradizer. Entre resistir e desistir, há um gradiente de opções pouco temerário para se poderem operar mudanças. No horizonte só se vislumbram alterações relevantes se os novos descobrirem (se descobrirem) que nada terão a esperar de quem está à frente dos poderes e da cultura. Ou, pior, que essa descobeerta lhes venha cair em cima.

O "cenador" Mário Soares - Mário Soares é um senador e homem de valores. Valores que marcam uma época. Não alinhando pela teoria de que são os heróis que são o motor da história, falo do seu nome como um paradigma das lideranças e das ideias, que durante a vida dos da minha geração, sobreviveram e continuam a influenciar a maneira de pensar, mesmo quando se pensa em contra-ciclo do poder, que circunstancialmente é detido por quem parece defender outras.  Mário Soares meteu o socialismo na gaveta sem que se saiba exactamente o que lá meteu e defende-se o socialismo democrático sem que se saiba exactamente o que isso é. Na difusa afirmação do que isso possa ser, regressa, em força, o neo-liberalismo. E isso sente-se o que seja. Mário Soares, defende hoje no Diário de Notícias "o passado pertence aos historiadores e o que conta, na atual emergência, é o presente e o futuro para onde caminhamos. É o que interessa aos portugueses." Este apelo para que se enterre a memória é, nesse mesmo artigo, continuado pela afirmação, válida para quem aceita perder a memória: "talvez seja o momento de o Governo português renegociar com a troika e deixar-se de complexos. Não devemos deixar degradar mais a situação!" O senador passa a cenador (acho que acabei de inventar a palavra) e encena mais uma vez a cena do olhar tutelar da sociedade portuguesa. Outros cenadores lhe continuarão a comédia... Não admira a desorientação dos jovens que, sem os contrariar, deixaram de saber em que situações "Soares é fixe" e poder avaliar o "porreiro, pá".

António Gedeão - Falei, num post atrasado, do meu poeta, sem que muitos se apercebessem das implicações desse meu escrito. Para mim é claro. Ou por razões atrás descritas, ou outras, António Gedeão não vê que a tal bola colorida possa pular e avançar nas mãos de uma outra criança que não seja um neto dos meus netos. Ele não espera grandes coisas destas próximas gerações. Os poetas vêem muito para além do seu poema... Lamento é que os culpados disso sejamos nós.

12 março, 2012

Na Associação 25 de Abril, lugar onde sempre pensei poder vir a falar deste meu livro...


"... Entre o sonho e o pesadelo fiquei adormecido. De manhã não me lembrava de nada. Sabia apenas que dali a poucas horas iria encetar a minha viagem de regresso a Lisboa. Chegado lá, também iria aguardar um recomeço. Que viria a acontecer, menos de três anos depois, no dia 25 de Abril de 1974."
in "Almas que não foram fardadas", pág.  184

O livro, que assim termina, foi apresentado na passada sexta-feira. Seguem-se imagens, recolhidas pela minha amiga São, a quem tanto agradeço.
As pessoas foram chegando. 
Para uns, a sala estaria meio vazia.
Para outros meio cheia.  
Para mim, estava como era preciso: com um sorriso
.
Autografando o livro à São. Perto, a Emília, antecipava a leitura...  

A mesa, presidida pelo coronel Vasco Lourenço. 
Como eu queria...
Um "capitão" de Abril abriu a sessão. 
Joaquim Boiça (Espaço e Memória)
apresentou-me, com um texto meu, que leu....
.
falou das minhas memórias, de factos. 
Fê-lo com voz sumida  mas com uma energia inesperada. 
Ele sabia bem do que falava...
.
... o que me impediu de entrar directo nos afectos. 
As pequenas 
folhas amarelas e muito queridas, 
acabaram por não serem lidas.
Tive que falar do que o Mário e sua obra significavam para mim...
.
Para a memória dos afectos, das angústias e dos medos estava Jorge Castro.
Leu passagens que escolheu.
Ao ouvi-las, pareciam ganhar outra vida

No final, havia acalorado diálogo e algumas promessas.
Se forem cumpridas, darei conta delas
______________________________________
Reeditado em 13 de Março, às  12 h

11 março, 2012

Homilias dominicais (citando Saramago) - 74

Por cada texto escrito, aqui, diariamente, eu leio milhares de palavras: leio frequentemente para optar sobre o tema que devo escolher ou fundamentar os meus escritos; leio o que se escreve e o que escrevem amigos. A estes quase sempre deixo um comentário, de improviso. Essa tarefa diária de o fazer, vai-me marcando cada vez mais a impressão de que meus amigos se afundam na vã procura de uma felicidade que entretanto afirmam inalcançável. Parece que foram tomados pela desilusão de, durante o que lhes resta da vida, chegarem a ela um dia. A mim, se fosse dado a depressões, deprimir-me-ia  mais que não se procure a harmonia das coisas, o seu equilíbrio e que para isso não se procure, na relação com o outro, as pontes para entendimentos mais estáveis do que as que estimulam os sentidos, o prazer, a paixão, ou o inverso de tudo isso... Vivemos numa sociedade que se deixou envolver por um individualismo atroz que a si próprio se engana e que serve para enganar (ou distrair) os outros. E esses outros a outros ainda. Será por isso que um meu poeta dedicou aos "netos dos meus netos" as suas memórias? Talvez, pois não vejo nem nestas nem nas próximas gerações qualquer apetência ou mesmo aptidão para outras procuras que não seja essa vã tentativa de chegar à felicidade individual...

HOMILIA DE HOJE
«Eu não gosto de falar de felicidade, mas sim de harmonia: viver em harmonia com a nossa própria consciência, com o nosso meio envolvente, com a pessoa de quem se gosta, com os amigos. A harmonia é compatível com a indignação e a luta; a felicidade não, a felicidade é egoísta.»

10 março, 2012

Nem Cavaco é o bronco que parece, nem o governo o incompetente que dizem ser...


Há erros de análise perfeitamente justificáveis pela tosca postura e alguns deslizes dos governantes e da primeira figura do Estado. No essencial, nada se passa como se diz parecer que passa, apesar do alarido.

Cavaco, que não dá ponta sem nó (nem parece preocupado com descidas, mesmo que abruptas, de popularidade), vem colocar, por escrito, um problema (muito) difícil de resolver a Seguro: quando este se preparava para se demarcar da responsabilidade assumida por Sócrates em assinar o acordo com a troika, é obrigado a salvar-lhe a imagem. Jogada genial, desse jogador abstruso que ajuda, mais uma vez o coelho a sair da cartola. A quatro anos de ser verdadeiramente escrutinado o mandato, o timing é perfeito. 

O governo, não tem a incompetência que se lhe aponta. Com pequenas e pouco relevantes excepções (quem disse que o ministro Álvaro tinha que fazer o que se lhe critica não ter capacidade para fazer?) o governo está a cumprir, com toda a eficácia e (até) eficiência, as medidas a que se comprometeu. Que isso nos vai levar a uma situação dramática e de recuo civilizacional, vai. Mas o compromisso assumido nada tem a ver com isso. Seu desempenho está a ser considerado... exemplar. A grande questão não é pois uma questão de competência, mas sim do objectivo e das politicas seguidas para o atingir... custe o que custar. 

08 março, 2012

Ainda as mulheres, em Nharêa

"O «Meia-Cuca» permanecia com rosto malicioso e deixou-me sem palavras por momentos. Nesses segundos, ia reflectindo no que pensara o miúdo. Rompi o momentâneo embaraço, com a insistência: «Sabes ou não onde mora a mulatinha surda?» O ar do «Meia-Cuca» alterou-se. Ficou entre a dúvida e o espanto. Repeti, mudando os termos, e o garoto explodiu em gargalhadas e disse, deixando-me desorientado: «Us mulher que tu procurar, saber ouvir meismo bem, só que tem marido perdido e fica no fingir não ter ouvido de ouvir coisa d´home.» Pesava-me mais a malícia do que a notícia, pois pareceu-me natural o expediente da mulata bonita. Essa representação, afinal, era tão coincidente com o ditado popular «mulher séria não tem ouvidos», tendo ela, assumido o sentido literal de tal ditado, mesmo se me parecesse nunca o ter ela escutado. «Eu sei onde ficar us cubata dera, te levo lá.» Escusei-me, mas pedi-lhe que fosse lá ele perguntar se ela queria ser minha lavadeira. Voltou-lhe o ar malicioso e foi, a correr. Já distante, vi-o pular para com os dedos tentar tocar o ramo mais saliente de uma mangueira. Não esperei muito e de volta trouxe como recado que meu convite fora negado. «Volta lá e diz-lhe que pago o que paguei pela fruta.» Sempre julguei que pela satisfação que ela teve ao receber tal quantia, que fosse um preço razoável, tanto mais que pagava menos da metade desse valor à lavadeira que tinha. Ele foi e logo voltou a dizer que ela negou. Mas trazia um argumento. O preço oferecido era quanto, num só dia, ganhava o marido e ela não podia ganhar tão pouco num mês. Mandei o «Meia-Cuca» voltar, sem que este se mostrasse cansado ou enfastiado por aquele ir e regressar, levando e trazendo recado. «Meia-Cuca» pensava que o seu dia ia ser bem pago, não importava como. Julgo até que se divertia enquanto vinha e ia, ia e vinha. «Diz-lhe que lhe pago não ao mês mas à semana, a quantia de que falei.» O «Meia-Cuca» foi mas não regressou só, com ele vinha a mulata escurinha. Como não vinham a correr, deu para lhe voltar a admirar a maneira de andar e pensar como pode um homem ser contratado por valor tão baixo e perder a relação com mulher tão bela. Chegados, ela falou sem tirar os olhos do chão, por certo envergonhada, da mentira que me pregara. «É verdade meismo quí tu mi paga quinze escudo por semana de rôpa?» Abanei a cabeça afirmativamente, mas ela não viu esse gesto pois não tirava os olhos de onde os tinha posto. Ia a estender a mão para lhe pegar no queixo, e levantar-lhe o rosto, mas desisti, limitando-me a dizer a palavra «sim». «E qui vai tu dizer a tua lavadeira de agora?», perguntou olhando-me pela primeira vez. Respondi: «Deixa comigo, ela não fica sem ocupação.» E não. A primeira coisa que fiz quando cheguei ao aquartela-mento foi dizer ao Alma Loura: «Já te arranjei quem te lave a roupa…»"
Rogério Pereira, in "Almas que não foram fardadas", pág. 107/108 
Foto da net 

Lembro-me delas todos os dias

As mulheres sempre foram o que de melhor a vida me deu...
<>O<> 

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Mandou, pois o Senhor Deus um profundo sono a Adão; e, enquanto ele estava dormindo, tirou uma das suas costelas, e pôs carne no lugar dela. 22 – E da costela, que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus uma Mulher; e a levou a Adão. 23 - E Adão disse: Eis aqui agora o osso de meus ossos e a carne da minha carne; ela se chamará Virago, porque do varão foi tomada. 24 – Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois numa só carne. 25 - Ora um e outro, isto é, Adão e sua mulher, estavam nus; e não se envergonhavam (porque ainda eram inocentes)."
GÊNESIS 2: 21-25.
Em vez disto (que risco), um poema  


(este post reescreve os que editei em anos anteriores )

07 março, 2012

Angola (1969-1971) - Memórias de factos, afectos, angústias e medos

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------Foto retirada daqui
Era uma tonalidade tão bela que só poderia ser obra de mulher 
a afastar o sol no horizonte. Chamei-lhe Maria do Sol
"Passado um declive muito acentuado, a coluna subiu uma ravina pouco inclinada e avistou o aquartelamento. Logo a seguir, mais de uma centena de soldados vieram ao nosso encontro gritando coisas diversas. Fixei apenas uma exclamação: «Olha a nossa salvação!» E éramos. Vínhamos render aquela gente e por isso estavam tão felizes. No céu, para onde olhei inadvertidamente, talvez para perceber de que lado estava Deus, se com a satisfação dos que iam regressar se com a tristeza dos que acabavam de chegar, apenas vi uma tonalidade avermelhada e calma do sol a partir. Era uma tonalidade tão bela que só poderia ser obra de mulher a afastar o sol no horizonte. Chamei-lhe Maria do Sol e ela antes de a estrelada noite aparecer, pareceu-me ter dito: «Rogério, amanhã o sol voltará, para te alegrar a Alma…»"
Rogério Pereira, in "Almas que não foram fardadas", pág. 33 

06 março, 2012

José Gil, o filósofo e o pensamento de... magazine

Antes de dar este título fui confirmar no dicionário se magazine queria mesmo dizer magazine, não fosse o uso inapropriado do termo espatifar todo o argumento deste escrito. Estava exacto, correcto. Magazine queria mesmo dizer magazine. Pois magazine foi mesmo, sem tirar nem pôr, o formato escolhido pelo director da edição de ontem do Público para lhe emprestar uma tiragem elevada. Há quem diga que foi por ser à borla, a custo zero. Eu acho que foi pela insinuante e habilidosa montagem da capa que o Público se fartou de "vender". É que muitos terão se interrogado, como eu, "Ele vale zero?". Vamos ver o que vale um filósofo, e foram todos a correr o Público ler. Mas vamos à sua escrita. Numa das partes, onde penetrando em matéria incontestável como é a da psicanálise, o filósofo propõe-se medir o que pré-anuncia ser imensurável. Diz ele: "Esta secção mede a relação de adesão e pertença subjectiva a uma comunidade". Uhau, exclamaria a minha-filha-mais-nova se o tivesse podido ler. É que as pertenças colectivas são, de facto... subjectivas. Eu é que estou todo trocado ao ter escolhido um herói da antiguidade Clistenes, a quem se deve a lei que instituiu que o poder deve pertencer a um colectivo e que quem ameaça a Democracia deve ser condenado ao ostracismo. Esta sabedoria de outrora nunca teria vingado se fosse conhecido o pensamento de José Gil (ainda bem que os Islandeses também o ignoram e deixam a psicanálise para as opções dos verdadeiramente doentes que escolhem tal técnica de terapia). Mas continuando, diz ainda o filósofo:
"Quando os políticos fazem apelos à coesão nacional não pensam nos factores essenciais que reforçam ou dissolvem o ego no seu investimento na comunidade. Quer dizer que não pensam nas forças e energias que são bloqueadas pela imagem que cada um tem de si. Saber qual o peso do ego contribuiria para perceber os factores que o enquistam e reforçam. Quando se fala de egoísmo, altruísmo, individualismo do que se está a falar é do ego. O ego é uma força de bloqueio, mas nunca se pensa nele. É um factor que não se pode medir mas tem efeitos mensuráveis. Por exemplo, um dos efeitos é a inveja que pode bloquear um sistema de funcionamento na sociedade portuguesa. Todo o discurso em Portugal sobre competitividade, produtividade, empreendedorismo depende de forças vitais e de afectividades. Para que haja coesão, esforço colectivo é preciso que se dê a possibilidade ao ego de se dissolver com entusiasmo num investimento que o ultrapasse e dê força à comunidade."
Repito esta parte para não me esquecer: "Todo o discurso em Portugal sobre competitividade, produtividade, empreendedorismo depende de forças vitais e de afectividades... " Tenho de vos dizer que não exijo que todos os pensadores sejam marxistas, conheçam o trabalho de Goebbels ou que saibam de economia, mas acho, com o diacho, que bem poderiam, disso, saber um pouco... Com sorte está o ministro Gaspar, a partir deste escrito vai-nos tratar do ego e, assim, criar o entusiasmo que falta a quem trabalha... fica por saber como tratar do ego de que já perdeu o emprego.

NOTA FINAL: Este post, foi-me imposto pelo diálogo, agitado, entre Minha Alma e Meu Contrário, reagindo a que tão ilustre pensador os ignore. Digo Eu.

05 março, 2012

Medo, medos... (3)

Ia com as moedas na mão, pousei um euro no balcão e, enquanto pegava no jornal, ia comentando: "este gajo, um zero?" A empregada da tabacaria sorriu como sempre faz às piadas que lhe deixo tão trocadas quanto as moedas que diariamente lhe entrego. Ela ignora a minha aparente ignorância e esclarece. "hoje o Público é à borla..." Fiquei ali mais uns segundos e leio: "...o filosofo  José Gil, quer dar visibilidade ao que não se sabe sobre Portugal, ao "vazio". Um dos grandes 25 pensadores da actualidade para a revista francesa Nouvel Observateur mostra "o estado da nação e o seu avesso..." - "Um dos 25 pensadores?"... penso e estremeço com a responsabilidade deste o homem e com o facto de o NO me ignorar e haver tão pouca gente a pensar.. Leio atentamente. E acho que filosofando coisas interessantes e ausentes das letras do jornais, acaba por ficar-se e perder-se em reflexão que, embora importante, é superficial e foge ao essencial. Apetecia-me pegar num monte de coisas que são ditas por esta sumidade mas, ainda tendo presentes os comentários que me fizeram ontem, opto pelo tema medo (até porque já tinha reflectido nisso uma e outra vez). Transcrevo:
«Quantos portugueses não têm medo da autoridade? Impossível (sabe-lo). Quantos não têm coragem para emigrar? É a mesma coisa. A razão da impossibilidade de ter respostas credíveis, o vazio que aqui se mostra,vem do próprio medo. Isto é a prova do medo. Zero. Zero de coragem. Ou 0,1. Mas será que não nos aproximamos do zero? A verdade é que nós temos muito pouca coragem. Muito pouca coragem para assumir as nossa palavras, para assumirmos as nossas responsabilidades. Mas o Estados e os responsáveis políticos, os media também não contribuem para a cultura do medo? Para quê ousar afirmar os seus direitos, se todo o sistema entrava a acção?”»
É verdade. Mas esta é a verdade acessível a qualquer não-filosofo-importante. Porque não me falou José Gil de outros medos? Porque não me falou dum medo que cada vez mais se instalou na sociedade portuguesa. Veja o video, para que não esqueça. Mas anote o final. É que tem uma comovente mensagem de esperança (coisa de que o filósofo também não falou e anda tão escondida):


A imagem acima foi retirada da 1ª página do "Público",  

04 março, 2012

Homilias dominicais (citando Saramago) - 73

Talvez nem faça falta o lápis azul da censura, nem seja caso para que se convoque reuniões no mais receoso sigilo, como se, clandestinos, passássemos a ser em plena democracia. Ao pensamento único passa a ser suficiente o uso de uma ferramenta eficiente: a omissão. Mas as coisas vão-se sabendo, correm por corredores e por esta coisa, quase milagrosa, a que chamamos tecnologias da informação e comunicação. Durante algum tempo estive na dúvida, se ir à Voz do Operário se antes apetrechar-me de conhecimentos em domínios que me são ainda estranhos, como são os dessa ciência, tão pouco exacta e a que chamamos "economia". Optei por esta última e fui, assim, à conferência promovida no âmbito do 90º aniversário da Seara Nova. Seria bom estar nos dois lados. Talvez um dia, tenha esse misterioso poder que nem Deus tem, de ser omnipresente. Quanto à conferência, foi seu desenrolar bem superior à expectativa, e disso falarei quando, no seu próximo número da revista, forem publicadas as comunicações de António Avelãs Nunes e João Ferreira do Amaral. Fica, para ilustrar esta homilia, este pequeno enquadramento e a composição da Comissão de Honra que preside ao aniversário da revista: Dr. António Arnaut, Prof. António Avelãs Nunes, Prof. António Borges Coelho, Dr. António Costa, Prof. António Reis, Engº. Aquilino Ribeiro Machado, Drª. Catarina Vaz Pinto, Prof.ª Dulce Rebelo, Prof. Eduardo Lourenço, Prof. Fernando Correia, Dr. Francisco Melo, Prof. João Caraça, Prof. José Augusto França, Prof. José Barata Moura, Pintor Júlio Pomar, Pintora Maria Keil, Prof. Manuel Carvalho da Silva, Dr. Mário Soares, Prof. Óscar Lopes, General Pedro Pezarat Correia, Prof. Pedro Saavedra, Drª. Pilar del Rio, Dr. Rui Vilar e Prof. Urbano Tavares Rodrigues. Entre tanta gente, haverá quem se disponibilize para a discussão urgente e necessária, do regresso a caminhos interrompidos.

HOMILIA DE HOJE 
. Entre a intervenção e afirmação politica e me  a   "É impossível não nos apercebermos de que a chamada democracia ocidental entrou em um processo de transformação retrógrada que é totalmente incapaz de parar e inverter, e cujo resultado tudo faz prever que seja a sua própria negação. Não é preciso que alguém assuma a tremenda responsabilidade de liquidar a democracia, ela já se vai suicidando todos os dias. Que fazer, então? Reformá-la? Demasiado sabemos que reformar algo, como escreveu o autor de II gattopardo, não é mais que mudar o suficiente para que tudo se mantenha igual. Regenerá-la? A qual visão suficientemente democrática do passado valeria a pena regressar para, a partir dela, reconstruir com novos materiais o que hoje está em vias de se perder? À da Grécia antiga? À das cidades e repúblicas mercantis da Idade Média? A do liberalismo inglês do século xvii? À do enciclopedismo francês do século XVIII? As respostas seriam com certeza tão fúteis quanto já o foram as perguntas... Que fazer, então? Deixar de considerar a democracia como um dado adquirido, definido de uma vez e para sempre intocável. Num mundo que se habituou a discutir tudo, uma só coisa não se discute, precisamente a democracia. Melífluo e monacal, como era seu estilo retórico, Salazar, o ditador que governou o meu país durante mais de quarenta anos, pontificava: «Não discutimos Deus, não discutimos a Pátria, não discutimos a Família.» Hoje discutimos Deus, discutimos a pátria, e só não discutimos a família porque ela própria se está a discutir a si mesma. Mas não discutimos a democracia. Pois eu digo: discutamo-la, meus senhores, discutamo-la a todas as horas, discutamo-la em todos os foros, porque, se não o fizermos a tempo, se não descobrirmos a maneira de a reinventar, sim, de a re-inventar, não será só a democracia que se perderá, também se perderá a esperança de ver um dia respeitados neste infeliz planeta os direitos humanos. E esse seria o grande fracasso da nossa época, o sinal de traição que marcaria para todo o sempre o rosto da humanidade que agora somos." 

02 março, 2012

Sexta-feira, dia 9, na sede da Associação 25 de Abril. Apareça e talvez... não esqueça


Mário Moutinho de Pádua, médico, foi o primeiro oficial português a desertar em Angola, em 1961. No livro "No percurso das guerras coloniais" ele narra a sua impressionante experiência a seguir à deserção, nomeadamente as prisões e torturas de que foi alvo no Congo, a sua passagem pela Checoslováquia e o seu desencanto com vários aspectos do «socialismo real», a sua participação na construção de uma Argélia recém-libertada do colonialismo, e por fim a sua contribuição como médico na luta travada pelo PAIGC na Guiné. Conheci-o à pouco, enquanto terminava o meu livro. Enviei-lhe uma cópia do meu texto e perguntei-lhe, primeiro, a sua opinião e, de seguida se ele aceitaria prefaciar-me a obra. Aceitou. Agora aceitou também apresentá-la. Será em ambiente que nos diz, a todos, tanto. Será na sede da Associação 25 de Abril, na próxima seita-feiras às 18 e  30 h. Sobre o que me escreveu: 
"...quero salientar que este livro, de leitura fácil e agradável, constrói no dia-a-dia em rápidas pinceladas uma visão objectiva do ambiente vivido entre os militares envolvidos na guerra colonial em Angola nos anos de 1969-1971, sem ocultar os efeitos de uma velha opressão."
Mário Pádua, in Almas que não foram fardadas

Sobre a importância do seu testemunho, que estou certo ele fará, aproveito para destacar outras palavras suas, publicadas no último número da revista Seara Nova:
"Na comunicação social dominante em Portugal fervilham comentadores que se dizem objectivos. Porém animados e protegidos pela vendetta, fogem à reconstituição do ambiente colonial. Em lugar de estudarem as raízes do movimento de independência, impõem aos leitores uma visão militar, tecnicista, dramática pelos grandes sacrifícios infligidos pela guerra a africanos e portugueses, mas desumanizada, porque ignora a brutalidade do colonialismo ao longo de vários séculos."
Mário Pádua, in Notas de Leitura, Seara Nova nº 1718

Na apresentação do meu livro, além de Mário Pádua, participarão representantes da A25A, da editora e de Jorge Castro, que lerá algumas passagens que ele próprio escolherá. Aguardo confirmação de outra presença, querida . Confirma-la-ei, logo que o possa. 

Lembranças de um pai de filhas...

I
Nunca tivera daquelas exclamações de que ter filhas, miúdas, mulheres, era uma dor de cabeça, uma chatice. Nunca as teve porque nunca assim pensou, sendo mais insistente o pensamento de que ter filhos, independentemente do sexo, era, mais de que uma responsabilidade acrescida, uma exigência de conduta. Sempre achou que o exemplo era a maneira mais pedagógica de educar e que esse valor, bem partilhado pela sua mulher e doseado com outros, daria às filhas as armas, porque de armas se trata, para se afirmarem na vida. Lembrava-se que, no dia em que aguardava o nascimento da sua filha-do-meio, nessa mesma clínica, uma parturiente irrompeu em soluçante choro, audível na pequena sala de espera para onde davam as portas todas, a dos quartos e a sala de partos. Aí se ouviam os gritos da mulher clamando de ser desgraça, castigo de Deus o ter tido outra menina. "Aí, quem pode ouvir agora o meu homem..." Este pungente lamento foi mais claro pois coincidiu com a saída da enfermeira que, supunha ele, lá dentro lhe dava assistência. Ia tirando as luvas de borracha e com voz embargada, quase sussurrada dizia como se acabasse de ser insultada: "Alguém que venha tratar esta mulher, eu já a não quero nem ouvir."
II
O jantar estava praticamente no fim. A filha-mais-nova , numa posição que lhe era peculiar, ia garfando as ultimas porções do que tinha sido a refeição. A mãe ia trazendo, para sobremesa, restos do aniversário há pouco passado: bolo de coco, mousse de chocolate, salada de frutas, gelatinas, verdes e vermelhinhas, que a avó Mimi tinha cortado aos cubinhos. Ele ia levantando a mesa e as duas outra filhas permaneciam suspeitosamente silenciosas ocupando as mãos e os olhares por tudo o que estava na sala, com instável concentração. Ele sentou-se.   A mãe sentou-se. A Lobita, a cadela que conquistara até a afeição dele, estirou-se calma contrariando o nome que lhe fora dado. As patas avançadas e o focinho pousado com aquele ar prazenteiro de quem já tinha também alojado e saboreado o seu quinhão, lá na cozinha, apareceu ali a juntar-se à família, como se fizesse parte dela. E fazia. "Mãe, hoje vamos sair à noite." disse a filha-do-meio enquanto a filha-mais-velha, com disfarçada olhadela, tentava descortinar na cara dele uma possível e indesejada reacção, uma rejeição. A mãe, ficou silenciosa, com aquele silencio conivente de quem cala consente, sua característica de sempre. Não foi por mero acaso que o tom emprestado à fala da filha-do-meio, não foi o da interrogação, nem o da procura de consentimento, mas sim a de procura do consenso, da aceitação. A filha-mais-velha, para tranquilizar, lá foi dizendo onde iam, com quem mais iam e que não chegariam tarde. Ele não disse nada. Arranjaram-se aprimorando-se na apresentação, com o gosto de adolescentes de então. Saíram. A filha-mais-nova nem se lamentou, conformada com a sua pouca idade e talvez satisfeita pelo que ia dando na TV. As horas passaram e um pouco depois da hora aprazada chegaram. Chegaram de mansinho para não acordar. Todos dormiam, ou isso pareciam...
III
Logo que teve uma oportunidade deu por desculpa a saída naquela noite. Não precisava de o fazer mas achou que não devia dizer onde ia. Tinha procurado o nome da boite na lista das páginas amarelas e lá foi. Sentou-se. Pediu de beber. Mediu o ambiente, avaliou-o e, mentalmente, inquiriu cada um dos presentes: quem seriam, que fariam, qual seria o seu pensar e maneira de estar. Mediu a estridência das gargalhadas os decibéis das falas, a distância dos corpos e a qualidade da musica que passava...  Depois saiu. De regresso a casa ia pensando, confiante mas constrangido, pelo papel de investigador de um crime não cometido. Anos mais tarde uma das filhas, não se lembra qual, lhe contaria que tinha sido espiado nessa sua inspecção à primeira noite, por um inspeccionado, que por acaso era um adolescente, vizinho do prédio ao lado...