Dez da noite e o moto-gerador foi desligado. Na messe aprontaram-se os dois petromax mas apenas um funcionou pois a «camisa» de um deles danificou-se irremediavelmente. Nada perturbados pela reduzida iluminação, a mesa da «lerpa» continuou a jogar sem qualquer interrupção ou outro lamento que não fosse as queixas pelo azar ao jogo distribuído pela «mesa».
Noutro lado, mais iluminado, o grupo de leitura fazia o que sempre fizera naqueles serões da retaguarda da luta. Lia. Eu, por meu lado, entretinha-me com distracções menos frequentes como seja acompanhar borboletas e abelhões esvoaçando à volta da luz como se a pretendessem devorar, oferecendo-nos em troca a escuridão. Tinha voltado, desde o Natal, ao costume de ter quase sempre o copo de uísque na mão e dentro, outra vez a simular gelo, a bala de G3. O tilintar do metal no vidro continuava a sugerir maior frescura na bebida e assim estava. O furriel Alma Séria levantou-se de repelão como que sacudido por uma decisão. Pegou no velho rádio de pilhas a um canto e ligou-o no posto já sintonizado mas com ruídos e interferências. Pacientemente procurou melhorar a sintonia o que conseguiu. Música congolesa. Mil tentativas tinham sido já ensaiadas, mil vezes sem sucesso de apanhar outros postos que não fossem emissoras do Congo ou da Tanzânia. «Desliga essa porcaria», reclamou o furriel Alma Redonda, enxofrado pelo mau jogo que lhe tinha calhado. «Desculpa pá, mas hoje tenho de ouvir os gajos.» Não percebi o porquê da importância daquele dia para a audição, mas não fiquei muito tempo na ignorância do significado da data. Segundos depois um hino conhecido fazia-se ouvir sem atrapalhar os afazeres e de seguida as palavras de abertura do programa: «Camaradas e companheiros de luta, boa noite.» (...) O noticiário irritou o sargento Meia Alma: «Calem-me essa gaja, não sei como podem aguentar essas lavagens ao cérebro.» Mas ninguém desligou o rádio. Acho que todos ignoraram o que consideravam propaganda: número de vítimas provocadas nas nossas tropas; deserções; a laudatória aos actos heróicos das forças do MPLA.
Noutro lado, mais iluminado, o grupo de leitura fazia o que sempre fizera naqueles serões da retaguarda da luta. Lia. Eu, por meu lado, entretinha-me com distracções menos frequentes como seja acompanhar borboletas e abelhões esvoaçando à volta da luz como se a pretendessem devorar, oferecendo-nos em troca a escuridão. Tinha voltado, desde o Natal, ao costume de ter quase sempre o copo de uísque na mão e dentro, outra vez a simular gelo, a bala de G3. O tilintar do metal no vidro continuava a sugerir maior frescura na bebida e assim estava. O furriel Alma Séria levantou-se de repelão como que sacudido por uma decisão. Pegou no velho rádio de pilhas a um canto e ligou-o no posto já sintonizado mas com ruídos e interferências. Pacientemente procurou melhorar a sintonia o que conseguiu. Música congolesa. Mil tentativas tinham sido já ensaiadas, mil vezes sem sucesso de apanhar outros postos que não fossem emissoras do Congo ou da Tanzânia. «Desliga essa porcaria», reclamou o furriel Alma Redonda, enxofrado pelo mau jogo que lhe tinha calhado. «Desculpa pá, mas hoje tenho de ouvir os gajos.» Não percebi o porquê da importância daquele dia para a audição, mas não fiquei muito tempo na ignorância do significado da data. Segundos depois um hino conhecido fazia-se ouvir sem atrapalhar os afazeres e de seguida as palavras de abertura do programa: «Camaradas e companheiros de luta, boa noite.» (...) O noticiário irritou o sargento Meia Alma: «Calem-me essa gaja, não sei como podem aguentar essas lavagens ao cérebro.» Mas ninguém desligou o rádio. Acho que todos ignoraram o que consideravam propaganda: número de vítimas provocadas nas nossas tropas; deserções; a laudatória aos actos heróicos das forças do MPLA.
Nossas mentes foram só perturbadas quando chegou a descrição dos acontecimentos de 4 de Fevereiro de 1961 num texto de Mário de Andrade lido com ensaiado dramatismo e que acabava assim:
«…A vida de um africano não contava, nessa época, mais do que a de um cão. Para o fim de Fevereiro, uma noite, os civis portugueses, enfurecidos, acabaram por pôr fogo aos bairros africanos. Sulcavam a cidade em viatura, armados de espingardas de caça e de bidons de gasolina. Os habitantes que procuravam escapar às chamas caem pelas balas, que não poupavam nem as mulheres nem as crianças. Nenhuma família angolana escapa a estes dias sangrentos de Fevereiro. Várias fontes insuspeitas alvitram a cifra das vítimas deste primeiro genocídio perpetrado em Luanda: 3000 mortos.»
Perturbadas também ficaram as mentes do furriel Alma Séria e do Alma Boa pela leitura de partes do texto da Resolução da ONU de 1966, condenando a política colonial portuguesa e apelando ao reconhecimento à autodeterminação das colónias. Reparei que todos tinham parado o que faziam quando terminou o programa, com a palavra de ordem do costume: «A luta continua e a vitória é certa.» O sargento Meia Alma, levantou-se pousando as cartas dizendo contristado: «Vou-me deitar. Já devia estar deitado.» Eu e todos lhe seguimos o exemplo, silenciosos.
No meu banco ficou um copo com uma bala de G3 dentro, sem se derreter…
Rogério Pereira, in "Almas Que Não Foram Fardadas", pág. 73
Edição "Espaço e Memória" - 2012
Sou de uma geração, que por muito pouco, não viveu a guerra colonial. No entanto, mesmo ainda adolescente, lembro-me bem do terror estampado no rosto de muitas mães, mulheres, namoradas, que viam partir os seus entes queridos, sem saberem se os voltariam a ver de novo.
ResponderEliminarNada justifica uma guerra...Nada!
Absolutamente Nada! Não existe nenhuma justificação para a violência, nem para a falta de liberdade de um ser humano. Todos temos direito a fazer as nossas opções...em consciência e lealdade para com a nossa essência.
Noite tranquila Rogério...abraço amigo...:)
Horrível!! Lembro-me do ano de 61 - horribilis para Salazar, dizem! Horribilis para todos nós que esperámos "calmamente" durante mais 13 anos para nos livrarmos dele(s). E agora... estamos quase lá outra vez!
ResponderEliminarQue fúria!!
Memórias vivas
ResponderEliminarOlá amigo!
ResponderEliminarGostei do que li por aqui neste meu regresso. Voltarei com mais tempo, porque me parece que nestas semanas perdi muito boas prosas.
Abraço
Gostei de te reler, tanto como tinha gostado de te ler.
ResponderEliminartempos que não se querem mais...
ResponderEliminarEmocionei-me de novo.
ResponderEliminarMuitas lembranças dolorosas mas que nunca devem ser esquecidas.
beijinho
Na minha companhia, que esteve colocada no norte de Angola, à hora de ir para o ar o programa do MPLA, que se chamava Voz de Angola Combatente, eu já sabia o que ia encontrar quando entrava na caserna: todos os rádios estavam sintonizados na emissão do MPLA. Sem se preocuparem em disfarçar o que quer que fosse, todos os soldados e cabos, fossem brancos, negros ou mestiços (na minha companhia também havia angolanos, incomparáveis companheiros pelos quais eu era capaz de dar a vida, o que quase aconteceu) ouviam atentamente o que era dito através das ondas hertzianas a partir de Brazzaville.
ResponderEliminarO trecho de Mário Pinto de Andrade que reproduz fez-me lembrar os acontecimentos ocorridos em Luanda a seguir ao 25 de Abril. Embora, talvez, não tenham atingido as dimensões de 1961, os "incidentes" (como a imprensa da época lhes chamou) de 1974 apresentaram muitas semelhanças com as descritas no trecho que reproduz. Eu terminei a minha comissão em fins de agosto de 1974 e fui tomando conhecimento deles através dos noticiários das rádios de Luanda. Encontrava-me então junto à fronteira norte de Angola.
Permita-me que o remeta para o testemunho pessoal de Sebastião Coelho, um angolano branco que era muito conhecido por fazer um programa de rádio muito popular, apoiava a causa da independência de Angola e, por causa disso, era alvo de um ódio de morte por parte dos colonialistas, que o consideravam um "traidor". Dizia-se que ele era do MPLA, mas não creio que o fosse. Se militou em alguma organização política, terá sido no Movimento Democrático de Angola, que era o equivalente angolano ao MDP/CDE. No âmbito dos "incidentes" referidos, Sebastião Coelho escapou por um triz a um linchamento às mãos de um bando de motoristas de táxi (que em Luanda eram todos brancos), os quais foram aos estúdios de rádio que ele tinha na baixa de Luanda para o matar.
Se não se importa, remeto-o para quatro crónicas que ele escreveu para o Jornal de Angola um ou dois anos antes de morrer. A primeira crónica descreve o modo como ele escapou ao linchamento e conseguiu fugir de avião para Lisboa. As restantes crónicas descrevem outros acontecimentos ocorridos na mesma altura. As crónicas são as seguintes:
- http://web.archive.org/web/20030803191923/http://www.ebonet.net/sebastiaocoelho/resumo.cfm?ID=5;
- http://web.archive.org/web/20030803192448/http://www.ebonet.net/sebastiaocoelho/resumo.cfm?ID=6;
- http://web.archive.org/web/20031026044608/http://www.ebonet.net/sebastiaocoelho/resumo.cfm?ID=7;
- http://web.archive.org/web/20030803192607/http://www.ebonet.net/sebastiaocoelho/resumo.cfm?ID=8.
Obrigado caro Fernando Ribeiro,
ResponderEliminarIrei ler os textos que me enviou e, se achar caso disso, editarei um post mais tarde
Abraço