- Olhemos
para a Europa como quem olha para uma família. Uma família em que há
irmãos bem-sucedidos e outros pobretanas. É desta articulação e a partir
deste mapa que podemos compreender a singularidade de Portugal e o
momento que o país atravessa?
- A comparação com a família é
bastante forçada. A Europa não é uma família de Estados, nem pouco mais
ou menos. Na Europa não se vê - e desde o Tratado de Maastricht em 1992 -
suficiente autonomia para os irmãos perseguirem aquilo que lhes dá mais
êxito em termos de futuro. Numa família, em princípio, os irmãos são
autónomos. Uns têm êxito, outros não têm. mas resulta da sua própria
liberdade de escolha. Hoje criou-se um sistema de regras que prejudica o
futuro de muitos Estados. Esse é o problema dramático da Europa.
- Por que é que não somos uma família? Apesar desta estrutura ser
heteróclita, desconjuntada, desafinada neste momento, se olharmos para a
História europeia e mundial, existe uma coisa que se chama património
identitário europeu. Isso pode dar-nos a ilusão de que somos uma
família.
- Diz bem, uma ilusão. Numa família, cada membro
considera que a família é algo que muitas vezes se sobrepõe aos
interesses individuais. Numa família, as pessoas estão dispostas a
sacrificarem-se em benefício da família no seu conjunto. Entre Estados
não é assim. Um português não aceita ser sacrificado para a Europa ficar
melhor. Como um alemão ou um dinamarquês não aceitam. É um erro grave
pensar que existe um grau de solidariedade na Europa. Não existe.
- É por causa da falta da solidariedade, em primeira instância, que não nos considera uma grande família.
- Exacto. O facto de haver proximidade cultural - de que gosto de ser
herdeiro - não implica que tenha que haver, do ponto de vista político,
esta coneepção de família, esta solução [institucional]. Existem ao
mesmo tempo histórias nacionais muito longas, que não podem ser apagadas
em benefício de uma entidade mítica - uma Europa que apareceria descida
do céu.
- Primeiro grande equívoco: forcar esse sentimento de pertença e identidade comum?
- É um grande equívoco. Isto tem tradução política na tentativa de
criar um super-Estado europeu. Que não se consegue criar. É perigoso e
pode levar a Europa a becos sem saída.
- Perigoso, becos sem saída... Pode explicar melhor?
- O caso típico é a moeda única. Era fundamentalmente um projecto
político para forçar a criação de um super-Estado europeu. É
perigosíssimo. Tirou a muitos dos Estados o instrumento fundamenta] para
poderem singrar. Criou ao mesmo tempo tensões na Europa, que estamos
hoje a sofrer, e que não se apresentam de fácil resolução.
- As
vozes que mais recorrentemente se ouvem, que são a favor e confiam no
projecto europeu, apontam o modo como ele foi erguido, nomeadamente o
euro. A sua voz é mais radical.
- O euro foi muito mal
concebido, isso é consensual. Mas vou para além disso. O euro é um
projecto que exige a existência de um Estado europeu. O euro não pode
ser um factor de criação de um Estado europeu (como se pretendeu).
Quanto muito, se houvesse um Estado europeu, então poder-se-ia ter
criado o euro.
- Para que um Estado europeu tivesse viabilidade
seria preciso, pelo menos, um sistema fiscal comum, uma Constituição
europeia, outros cimentos?
- Mas esses cimentos não existem.
Nada existe quando os povos não aceitam. A construção europeia foi
chumbada em dois referendos. Se tivesse havido mais, em mais teria sido
chumbada. A lealdade que os povos têm é ao seu próprio Estado, não é a
uma Europa que não sabem o que é. É um absurdo tentar assentar
instituições europeias, que mexem em aspectos essenciais da autonomia de
um Estado, num vazio.
- Qual é o vazio?
- É a inexistência de um povo europeu e de uma nacionalidade europeia.
- Na sua opinião, tudo está mal, desde o princípio?
- Não. Sou muito admirador do projecto de integração europeia até à
moeda única. A partir de Maastricht, tudo foi desaparecendo, até chegar a
estes dois últimos remates, o Tratado de Lisboa e o Tratado Orçamental,
que criou uma camisa-de-forças impossível para os estados endividados.
- Vamos à Comunidade do Carvão e do Aço e ao Tratado do Biseu.
Vamos pensar no que era um projecto eminentemente prático, porque era
preciso reconstruir a Europa depois da Segunda Guerra. Porém, havia um
ideal que o insuflava.
- Esse ideal, sou a favor dele: é criar
condições para a paz na Europa. Essa foi a genialidade dos pais
fundadores. Essa paz seria garantida pelo prosseguimento dos interesses
comuns da área económica. Daí o carvão e o aço, duas matérias-primas
essenciais para a guerra. A seguir, a integração económica. Isso não põe
em causa a autonomia de cada Estado. Quando se entra na moeda, está a
pôr-se em causa a autonomia de cada Estado.
A moeda é um factor
essencial, não só pelo instrumento em si próprio, mas também condiciona
as opções orçamentais. E o orçamento e a direcção das finanças públicas
é algo que nasceu com a democracia e é fundamental.
- Indo a esta crise, se tivéssemos moeda própria e capacidade de gerir a inflação, seria outra coisa.
- Seria. A nossa economia não estaria desequilibrada como esteve quando
sucedeu a crise. Ela tornou-se muito mais grave por esse facto. Ter
moeda própria ter-nos-ia evitado um enorme endividamento da economia no
seu conjunto - não do Estado -, que existia à data da crise.
- Mas não contámos durante muito tempo com o dinheiro da Europa?
- Contámos. Infelizmente, em Portugal, gostamos muito de contar com o
dinheiro dos outros. A nossa estratégia europeia foi quase sempre uma
estratégia de maximização dos fundos estruturais. Não tivemos muitos
outros objectivos. Uma estratégia dessas está condenada ao fracasso.
- Isso é uma espécie de "same old story". Se olharmos para séculos passados...
- Tivemos o ouro do Brasil. O Brasil era nosso, mas era um recurso
exógeno. Tivemos outras épocas em que vivemos à custa do endividamento
externo. No liberalismo, as grandes obras públicas levaram a problemas
recorrentes de endividamento externo, alguns bastante dramáticos.
A diferença está em que, sem moeda, e como foi o caso, podemos
alegremente aumentar o nosso endividamento sem nos apercebermos disso.
- Alegremente. Gosto do seu advérbio.
- Tudo isto era uma festa. O dinheiro era barato, os bancos não tinham
dificuldade nenhuma em obter dinheiro nos bancos estrangeiros e depois
emprestar internamente. Se tivéssemos moeda própria, rapidamente a nossa
moeda se iria desvalorizar e daria sinal de que nos estávamos a
endividar demais.
- O seu ponto é que não poderíamos chegar tão longe como chegámos porque havia sinais de alerta.
- Muito antes [do nível de endividamento a que chegámos] teria havido
[sinais]. E a desvalorização cambial contribui também para a correcção
do problema. Não é meramente anunciar que estamos mal. É, por esse
facto, entrar na correcção do problema. A desgraça da Europa é, de
facto, a Moeda Única. Não tanto por ser uma moeda europeia mas por ser
tendencialmente única. E a desgraça de Portugal foi ter aderido à Moeda
Única.
- Entretanto, passaram 20 anos.
- Sim, desde
que se começou o caminho. A política que tivemos de seguir a partir de
1902, de preparação para a Moeda Única, já era inadequada para nós.
- Se a preparação começa em 1992, e se identificou Maastricht como um
ponto em que as coisas começam irremediavelmente a resvalar, isso não
coincide com a imagem dos anos 90 em Portugal. Parecia um tempo de tal
modo heróico, de prosperidade, com a Expo 98, que custa a acreditar que o
ovo da serpente estava lá a ser germinado.
- [risos] Pois,
para mini nunca foi. Olhando com atenção, via-se muito bem o ovo da
serpente. O endividamento externo estava a atingir níveis brutais. A
partir do ano 2000, até um pouco antes, estávamos com deficit na balança
de pagamentos na ordem dos 3% do PIB. E estou convencido que, se não
tem havido crise financeira geral, teríamos tido a nossa própria crise
financeira. Não por causa do Estado, mas por causa da economia no seu
conjunto. Muita gente pensou que a Europa acomodaria sempre este nosso
desequilíbrio. Mas isso é contar com a tal solidariedade que não existe.
- Estava a lembrar-me de uma entrevista que Vasco Vieira de
Almeida deu ao Negócios, em plena crise, em que dizia: "Ou caímos todos
ou não cai nenhum". Falava desse ideal de solidariedade que estava no
imaginário colectivo.
- Tenho uma visão um pouco mais céptica.
Isso não é tanto pelo ideal de solidariedade. É com medo do efeito
dominó. Caía um e os outros seriam arrastados, isso é verdade. Claro que
a política foi desenvencilhar-se desse risco. Nem sequer estou a
criticar os países com mais possibilidades e mais recursos.
- Não?
- Ponho-me na pele deles. Vamos supor que Portugal estava bem e tinha
dinheiro; se aparecesse alguém a pedir-nos auxilio na Eslovénia, qual
era a nossa atitude? Se as pessoas tiverem que pagar mais, o entusiasmo
reduz-se rapidamente. Não é um problema dos alemães, é um problema de
toda a gente.
- Aí depende, de facto, de os considerarmos um
irmão. E com isto voltamos à históría inicial. Se é um irmão, estamos
dispostos a dar um rim.
- Por isso é que acho que não somos
irmãos. Um Estado tem a sua autonomia, deve ter boas relações com os
outros, mas o modelo família não dá bom resultado. Se as famílias têm
solidariedade, muitas vezes também têm zangas das piores. Os Estados
devem ser tratados como Estados. As relações entre Estados devem ser de
cooperação, de amizade, mas cada um com a sua autonomia. Quando a UE
começa a entrar por domínios por onde não devia entrar, que têm a ver
com a autonomia de cada Estado, está o caldo entornado.
- Não
engrossa o coro de pessoas que acham que a culpa disto tudo é da
Alemanha, da sua memória curta. Que estamos a sentar na pele os efeitos
da reunificação, e que esse foi o grande cisma da União Europeia.
- Isso da reunificação é verdade. Alterou as relações de poder na
Europa. Encaro a Alemanha como tendo a possibilidade de exercer o poder
que exerceu. Se fosse alemão, teria o mesmo tipo de estratégia.
O Presidente Mitterrand, em França, com medo que a Alemanha, após a
reunificação, se virasse para Oeste e se desinteressasse da integração
europeia, tentou barrar a Alemanha através da criação de uma moeda
única. Os alemães disseram que só a aceitavam se fosse feita de acordo
com aquilo que queriam.
- Tendo o marco como modelo.
-
O Presidente Mitterrand aceitou, e os outros governos, tirando a Sra.
Thatcher, que se pôs logo fora, também. Foi um erro fatal. A partir daí,
a Alemanha, que com a reunificação se tornou num Estado claramente
superior aos outros, começou a dominar a política monetária. Foi
ganhando peso, obrigou a Europa a assinar o Tratado de Lisboa e o
Tratado Orçamental. A Alemanha exerceu o poder que estava ao seu
alcance. Fê-lo de forma legítima, não invadiu com exércitos. De que é
que nos podemos queixar? Demos-lhe a oportunidade para isso.
-
Leu a entrevista que Philippe Legrain, o ex-assessor de Durão Barroso,
deu há semanas ao Público? Dizia que está muito mal contada a história
do resgate aos países periféricos. Serviu para salvar bancos alemães.
- Exacto. A primeira coisa que a solidariedade tez foi afastar o efeito
dominó reduzindo a exposição dos bancos alemães às dívidas mais
problemáticas. Mas mais uma vez, não critico a Alemanha. Defendeu os
seus interesses.
Há um erro muito grande nos europeístas
extremistas, que é pensar que se pode criar uma Europa forte com Estados
fracos. Não pode. A Europa só será forte se os Estados forem fortes, se
tiverem autonomia para perseguir os seus interesses. O que é essencial
na Europa é que o prosseguimento desses interesses se faça de uma forma
equilibrada, que não haja domínio de uns sobre outros.
- Os
resultados eleitorais recentes, que levam cerca de 120 deputados de
extrema-direita e eurocépticos ao Parlamento Europeu, são expressão
disso?
- A Europa está fraquíssima, em decadência clara, quer
do ponto de vista económico, quer social, quer até político. Mas isso
não é surpresa. Rompeu-se aqui um equilíbrio que assegurava a grande
originalidade do processo de integração europeia.
- Então,
futurologia. Daqui a dez, 20 anos, como é que imagina que vamos olhar
para estas eleições que expuseram a fragilidade da Europa?
-
Não vou fazer futurologia. mas vou dizer quais são os meus receios.
Dificilmente a Europa se manterá. A degradação já é tal que é muito
difícil a Europa voltar a beneficiar do ambiente de estabilidade. Se não
garante a estabilidade, desagrega-se. Esse cenário é cada vez mais
provável.
Seria muito mau a União Europeia desagregar-se. É
diferente da Zona Euro, que é um cancro. Se ela se desagregar de forma
controlada, óptimo.
- É possível dissociar os dois movimentos?
- Claro que sim. A Europa pode funcionar perfeitamente sem moeda única.
Ou um grupo de países cria uma moeda com um porque acha que vale a
pena.
- Ainda vai a tempo? É como com os croquetes; uma vez que é carne picada não volta a ser bife inteiro.
- Tem havido muitos casos em que o croquete voltou a ser bife inteiro.
Muitos países tinham uma moeda comum e quando se desagregaram criaram
moedas próprias.
- Seria preciso garantir o quê, para isso?
- Um regime de cooperação monetária a nível europeu. Mesmo assim estou
bastante pessimista em relação ao futuro da União Europeia. Entrou-se
num caminho que dificilmente é reversível. Pode haver factores-surpresa
bem-vindos. Imagine que os juízes europeus se sentam à mesa e dizem:
"Temos que fazer uma refundação disto porque já não funciona. Vamos
retomar o espírito inicial da Comunidade Económica Europeia". Se for
assim, talvez haja esperança para a Europa. Da forma como as coisas
estão, o cenário da desagregação é bastante plausível.
- A médio prazo?
- Sim. Um espaço que aceita que haja 40 ou 50% de desemprego jovem é um
espaço sem futuro. Um espaço que aceita que os países devedores sejam
protectorados dos países credores é um espaço sem futuro. A Europa
transformou-se na antítese do que era a Europa anterior.
- Como descreveria a Europa anterior?
- Era um espaço de progresso, de cooperação em termos de igualdade, com
harmonia entre os interesses comuns cos interesses nacionais. Tudo isso
se rompeu. A Europa transformou-se - como digo no meu livro - num
império pindérico, que nem sequer é império.
- Temos uma Europa de fancaria?
- Sim [risos]. Esta Europa, se se mantiver assim, já é um mortovivo. É
uma Europa de retrocesso, não é uma Europa de progresso. Ou há um grande
golpe de rins e se reentra naquilo que foi o melhor da reintegração
europeia, ou isto vai ser penoso. E esperemos que não dê origem a
violências piores.
- A relação entre a Alemanha e a Rússia,
esses dois grandes blocos desde sempre na Europa, é fundamental para
orientar as coisas num sentido ou noutro?
- Pode dizer-se isso e
o seu contrário, é tudo possível. Essa velha situação de
conflito/cooperação (embora na maior parte das vezes tenha sido
conflito): não gostava de ver o meu país envolvido nisso.
- Como assim?
- Se a Europa é para ser como tem sido nos últimos anos, impulsionada
pelos interesses alemães, e se esses interesses implicam uma atitude de
rivalidade em relação à Rússia, preferia que Portugal não estivesse
metido nisso. Não temos vantagem nenhuma em meter-mo-nos em velhas
contas a ajustar entre várias regiões do globo. Se a atitude entre a
Alemanha e a Rússia for de cooperação e de benefício económico, isso só
beneficiará a Europa.
- Como vê a actuação da União Europeia em relação à Ucrânia?
- Foi um desastre. Vimos a União Europeia a apoiar publicamente uma
insurreição contra um governo legítimo. Podia ser corrupto ou não, o
anterior presidente, mas a verdade é que a União Europeia estava a
negociar com ele.
- Era uma espécie de bomba a retardador. A Crimeia sempre foi russa, há 50 anos é que foi oferecida de presente à Ucrânia.
- Poder-se-á dizer que foi a negociação que foi preciso fazer para
manter as armas de destruição maciça dentro, para evitar que ficassem
dispersas por aí, que [foi isso que] obrigou a essa atribuição da
Crimeia à Ucrânia. Poder-se-á dizer que tudo isso não estava estável,
mas a solução não era apoiar uma insurreição, ainda por cima de grupos
muito duvidosos. Foi um erro gravíssimo da União Europeia.
-
Indo mais ao coração dos seus livros, e dizendo numa formulação
provocadora: aquilo não nos atira para um "orgulhosamente sós"?
- Não vejo porquê. As pessoas confundem autonomia com "orgulhosamente
sós". E muito português pensar que precisamos sempre de um paizinho, e
que se não temos um paizinho ou uma mãezinha estamos sós. Podemos
exercer a nossa autonomia, de país que já tem longos séculos de
autonomia, cooperando com outros países na gestão de interesses comuns.
Por isso fui e sou a favor da participação de Portugal na União
Europeia.
Se não fazer parte da União Europeia fosse estar
"orgulhosamente sós", haveria 165 países no mundo "orgulhosamente sós".
Isso é um disparate federalista.
- Um disparate federalista?
- O federalismo e uma teoria perigosa na Europa porque se apoia num
mito (o da solidariedade). Tentar forçar uma realidade que não existe é
do pior que se pode fazer em política.
- Gostei de o ouvir
dizer "política". Temos estado a falar de coisas que não são
estritamente política. Nos últimos anos, a política tem sido engolida
pela economia e pelas finanças. Desapareceu do vocabulário dos líderes
europeus.
- Claro. Alguns sabem muito bem o que é a política e
exercemna. A Alemanha exerce uma política e tem ideias muito claras
sobre os seus objectivos políticos. Depois usa todos os instrumentos que
estão ao seu dispor, incluindo os económicos, financeiros e monetários,
para isso.
Portugal não é assim porque nunca tivemos uma
política decente em relação à Europa. A nossa prioridade foi sempre
sacar o mais possível dinheiro comunitário. A enorme leviandade com que
cedemos a nossa soberania tornou especialmente antipática, para mim, a
classe política nas suas relações com a Europa. A política, neste
contexto, não é nada. mas a culpa é nossa, não é da realidade.
- Esse retrato que traça é muito pouco simpático para Portugal.
- Não, não, para as elites políticas portuguesas. Vistas em
perspectiva, as nossas relações com a Europa têm sido vergonhosas. Uma
subordinação completa. Sempre com dinheiros de fundos estruturais e um
bloqueio da discussão interna, impedindo referendos e debates
aprofundados. Admite-se que tenhamos cedido a soberania, nos mais
diversos domínios, sem uma única consulta popular?
- Especifique quais são os domínios em que cedemos a nossa soberania.
- O domínio monetário foi o primeiro, que é essencial. O domínio
orçamental, ficámos bastante reduzidos. O domínio, muito importante, da
unanimidade das decisões na União Europeia, que com o Tratado de Lisboa
foi reduzido a quase nada. Isto significa que, pelo menos teoricamente,
podíamos vetar decisões que agora não podemos. O primado do direito
comunitário sobre o direito nacional, inclusive a Constituição.
A democracia representativa existe para os nossos representantes
exercerem o poder em nosso nome. Não existe para cederem o poder a
outros. Quando é assim, tem que haver referendos.
- Como é que íamos manter a prerrogativa de vetar, de dizer não, se, basicamente, não crescemos desde 1995?
- Não crescemos porque em grande parte cedemos a nossa soberania
monetária. Porque adoptámos uma moeda que não estava ajustada à nossa
estrutura produtiva. Mas o programa de ajustamento financeiro não seria o
que foi se tivéssemos a possibilidade de vetar decisões comunitárias.
- Quando olha para a troika, olha para o FMI, apesar de tudo, como nosso amigo e a Europa como a má da fita?
- O grande engano é que essas duas entidades nos estão a fazer um
favor. Não estão. Estão a defender os credores. O que é legítimo para o
FMI. Já não é legítimo para a Comissão Europeia. A Comissão Europeia tem
como objectivo defender os tratados. É inaceitável que a Comissão
Europeia tenha defendido coisas que vão contra os tratados. O FMI é uma
entidade que vela pela sustentabilidade financeira mundial e nisso tem
que [cuidar] que os devedores paguem aos credores.
- No início deste ano, veio a Portugal uma delegação do Parlamento Europeu fiscalizar a acção da Comissão.
- E fez um relatório bastante crítico, e com justiça. Os tratados dizem
que a legislação laborai é da competência de cada Estado. Nunca a
Comissão Europeia deveria pressionar para alterar legislações laborais.
Esta Comissão Europeia foi um desastre do ponto de vista económico.
- Parêntesis. Se Durão se candidatar à presidência, como tudo indica,
pensa que pode ser penalizado pela sua acção enquanto presidente da
Comissão?
- Penso que sim. É difícil largar esse lastro. Embora
a responsabilidade seja mais do comissário para os Assuntos Económicos,
o Olli Rehn, Durão Barroso era o presidente da Comissão. Se o
presidente não concorda com o que está a ser feito, tem sempre a
possibilidade de se demitir e dizer porque é que se demitiu. Ele não fez
isso e ficou ligado a estes programas de austeridade, que foram muito
nocivos. Não só para Portugal, para a Europa.
- Se exceptuarmos o Governo, não vejo ninguém de garrafa de champanhe na mão a celebrar a famosa saída limpa da troika.
- Não vai alterar nada de fundamental [a saída formal]. Vamos ficar
sujeitos às regras do Tratado Orçamental, que não podemos cumprir.
- Não podemos cumprir?
- Não temos margem para cumprir. O que nos é exigido é impossível de
cumprir. Reduzirmos o déficit a quase zero, até é possível, desde que
não seja amanhã. Mas reduzir a dívida pública para 60% do PIB em 20 anos
é inexequível. Isto põe o país numa situação falsa. Um país nunca se
deve comprometer com coisas que não pode cumprir. Segundo o Tratado,
vamos ter que fazer uma parceria - gosto do nome [risos] com a Comissão
Europeia para ela nos impor um conjunto de políticas económicas durante
20 anos.
- Ou seja, vamos continuar atados.
- Não
vamos. Antes disso alguma coisa vai suceder. Ninguém aceita 20 anos de
austeridade, que é o que propõe o Tratado Orçamental. Entretanto a
Europa ou dá uma grande volta ou desaparece.
- Um cataclismo?
- Não é o mais provável, mas é possível. Se houver uma nova crise
financeira mundial, a Europa não tem margem para se ajustar. Não pode
subir mais o desemprego, já não pode reduzir mais os rendimentos.
- 2008 pode repetir-se e isso pode desencadear...
- ... É como uma zona sísmica. Sabemos que há sismos, não sabemos é
quando nem com que intensidade. O que sabemos é que haverá uma crise
financeira, no prazo de cinco, seis, sete anos. Se for com a intensidade
da de 2007, ou até um pouco inferior, a Europa não tem capacidade para
se ajustar. Todos os cartuchos foram queimados. Países como Portugal,
Grécia, Espanha, França, estão já com a sua capacidade de manobra muito
restringida.
- Não é nada optimista.
- Por que é que
haveria de ser? Quando vejo um projecto que não tem viabilidade, sou
pessimista. Não sou o único. Os europeístas dizem o mesmo. Não vejo
capacidade a nível europeu para refundar a Europa em bases equilibradas e
seguras. Como é que posso estar optimista?
- Esses europeístas não têm títulos como "Porque Devemos Sair do Euro", ou "Em Defesa da Independência Nacional".
- Não têm títulos de nada. não têm solução nenhuma. Têm desejos.
Desejos de solidariedade, de acabarem os egoísmos nacionais. Mas isso
não é política, é expressão de sentimentos. Políticas é apresentar
soluções concretas e realizáveis.
- E como vamos viver até lá? Numa frase do Império Romano, "panis et circenses". O povo, quem vota, precisa de pão e circo.
- Circo, vão tê-lo, isso não falta. Vão precisar de mais pão. E isso a
Europa não nos vai dar, nem Portugal dentro dessa Europa. O que vem a
seguir não sei, mas antes dos 20 anos haverá acontecimentos.
- Precisamos de sonho, também. De qualquer coisa que dá um sentido, um horizonte futuro. Onde é que nos agarramos?
- É voltar a ter autonomia política, é o sonho. A autonomia política é
essencial para o nosso desenvolvimento, não é por qualquer mito serôdio,
é porque é a única forma de termos instrumentos para nos
desenvolvermos. Senão se remos, na mel hordas hipóteses, abastecedores
de mão-de-obra para a Europa.
- Defende a saída do euro...
- As pessoas têm medo do que acontecerá com a saída. Se fosse possível sair sem problemas, uma enorme maioria aceitaria sair.
- Isso seria possível rasgando o papel e dizendo: "Não honramos os nossos compromissos, não pagamos"?
- Possível talvez fosse, não era desejável. A saída deve ser negociada e
controlada. Não pagar o que devemos só cm desespero de causa. Mas temos
mais capacidade de pagar o que devemos fora do euro do que dentro do
euro.
Segunda coisa, que exige o tal consenso dos partidos: o país não aceitar mais cedências de soberania a longo prazo.
Terceira: temos que reconstruir o Estado, começando pela Administração
Pública. A Administração Pública tem vindo a ser destruída e a
debilitar-se e isso é essencial para que o Estado possa ter autonomia de
decisão.
- O que sugere pressupõe uma confiança nos políticos.
Estamos, ao contrário, num período de extremo descrédito em relação à
classe política.
- Sim, mas se houver políticos com uma agenda
deste tipo, ganharão a confiança. O problema dos políticos e que hoje
não se distinguem, a não ser nas promessas. Não oiço em Portugal, nos
chamados partidos do arco do poder, críticas às instituições
comunitárias. Como é que alguém pode ter confiança nesta classe
política? As pessoas não são parvas, percebem que políticos assim não
têm capacidade nenhuma para que o país tenha vontade própria.
- Seria preciso que saíssem de fora dos aparelhos partidários, das jotas.
- Talvez, mas há gente boa em todos os partidos. Não é preciso esperar
que venha um salvador de outros lados quaisquer. Tenho notado isso, ao
discutir as minhas teses com algumas pessoas de partidos.
- Essas não aparecem com vozes dissonantes da do partido.
- Não, mas um dia poderão aparecer.
- Então não importa nada esta crise no PS, o resultado das legislativas daqui a um ano, se nada de estrutural mudar.
- Com certeza. Os partidos socialistas estão numa posição muito difícil
na Europa. Não é por acaso que grande parte deles está a caminho da
irrelevância. Aprovaram um conjunto de coisas que está contra a essência
de um partido socialista.
- Como é que sente que os seus
livros foram recebidos, sobretudo o "Porque Devemos Sair do Euro"?
Inicialmente era uma voz no deserto...
- O livro teve um impacto internacional, apesar de não ter sido traduzido.
- Como?
- Através do Wall Street Journal e de outros órgãos de comunicação
social. O ambiente nos média começou a mudar. Hoje já se podem pôr em
causa as opções europeias, incluindo a protecção da Zona Euro, sem se
ser considerado um anormal.
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Agradecimento: Agradeço este texto a Jorge Faria, que o editou na sua página do facebook