26 janeiro, 2017

Poesia (uma por dia) - 88

O CEGO DAS ESQUINAS

- Digo-te a bruma coada na cidade, para êxtase do porvir. Incito-te ao levantamento do chão, onde adormecem lábios e pedras, murmúrios e salivas - só para te ver transgredir as pautas. 
- Digo-te uma luz ao fundo, numa campânula de sons em arco.
- Repara no cego.
- Repara no cão. 
Quando chega a casa- imagino um cubículo de madeira - o cego das esquinas mergulha as mãos no saco das bofetadas, retira-as para o tampo da mesa e conta o abandono a que o votaram em cada moeda coitadinha. 
- O cego das esquinas. O tempo de rastos.
- Quem anda a montar o tempo?
- São os donos dos prédios altos que fazem esquinas para cegos. 
- São os fazedores de cegos, os vendedores de concertinas.
Eufrázio Filipe
Caçador de Relâmpagos

10 comentários:

  1. Embora a braços com os primeiros (?) sintomas de uma cegueira muito funcional, estou a gostar muito desta tua série de poesias diárias, Rogério!

    Abraço!


    Mª João

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  2. «[...]e conta o abandono a que o votaram em cada moeda coitadinha.»

    Sec. XXI e cada vez mais e mais altos prédio, cada vez mais vendedores de concertinas...
    Contassem os "cegos" bofetadas, mas é mesmo moedas "coitadinhas", o que a maioria conta.

    Lídia

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    Respostas
    1. Salva-se a alma,
      por cada moeda-bofetada

      há cegos com telefonias
      alegrando ruas... é que as concertinas pagam elevados IVAs

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  3. Um poema diferente. Onde o poeta não se prende em floreados. É cru e duro.
    Uma pedrada no charco da nossa indiferença.
    Um abraço e bom fim de semana

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  4. Há moedas/esmolas dadas a 'cegos' que são como bofetadas!
    O 'nosso' Poeta sabe usar as metáforas como ninguém...

    Um abraço a ambos.

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