«União Europeia desapareceu, tragada pelas incidências da pandemia do novo coronavírus. Habituada a criar crises humanitárias em casas alheias, não sabe agora como lidar com um drama sanitário interno e responde da mesma maneira que perante as vagas de refugiados de que é responsável: barrica-se e, cá dentro, é cada um por si. Muito federalista quando se trata de cumprir o catecismo neoliberal contra os cidadãos, a União Europeia eclipsa-se quando é necessário socorrê-los.
Fustigada
pela crise entre as crises, a Itália pediu à Comissão Europeia a
activação do Mecanismo de Protecção Civil para poder contar com a ajuda
dos Estados membros no combate à epidemia. Nesta Europa da
«solidariedade» nenhum país se mostrou disponível para responder. O
único auxílio estrangeiro que o povo italiano recebe é o da China –
através de pessoal de saúde, instrumentos e material clínico; e a região
da Lombardia, neste quadro, decidiu pedir auxílio a Cuba, sobretudo
devido ao êxito de um medicamento cubano contra os efeitos do novo
coronavírus (COVID-19), como tem sido testemunhado nas regiões chinesas
mais atingidas. Havana respondeu afirmativamente, da mesma maneira que
acolheu um cruzeiro britânico com passageiros infectados e que ninguém
queria receber.
A imagem que a União Europeia transmite aos
cidadãos é a de um eclipse progressivo das suas instituições ao ritmo do
avanço da pandemia. Estados fecham fronteiras mesmo sem informar os
vizinhos (a excepção é a Península Ibérica), o Parlamento Europeu foi o
primeiro a fugir de cena refugiando-se na quarentena, não há qualquer
indício de esforços para potenciar, no âmbito dos 27, os recursos
sanitários disponíveis para que as nações menos atingidas possam ajudar
as mais afectadas pela tragédia. Tão prestimosa em cuidar do casino
financeiro, a União Europeia é um fracasso cívico e solidário. Reina o
salve-se quem puder. A pandemia do novo coronavírus, tal como nenhuma
outra situação, expõe a União Europeia como uma entidade que não existe
para servir as pessoas mas para servir-se delas em favor dos interesses
de castas.
A «prontidão» da NATO
Porém, a crer na
informação transmitida pelos canais oficiais da NATO e pelo comandante
supremo aliado na Europa, o general norte-americano Tod Wolters, há um
aspecto em que a União Europeia, como braço político da Aliança
Atlântica, ainda funciona em bloco neste período: o da actividade
militar transnacional.
Os dados das últimas horas divulgados por
fontes atlantistas credenciadas explicam-nos que o novo coronavírus e as
restrições postas em vigor para combatê-lo não impõem o cancelamento do
essencial dos jogos de guerra em curso.
Nos termos do comunicado
disponível no website dos exercícios Defender-Europe 20, a NATO tomou
«uma série de medidas de precaução para reduzir a desnecessária
disseminação da doença», que se reflectem na dimensão e âmbito das
manobras. Essas medidas incluem o cancelamento de um conjunto de
sub-exercícios, mas não das actividades guerreiras consideradas
fulcrais.
«Continuaremos a preservar a prontidão das nossas forças
enquanto maximizamos os esforços para promover as nossas alianças e
parcerias», lê-se no texto. Trata-se, acrescenta, «de construir a
prontidão estratégica para deslocar uma força credível de combate na
Europa para apoiar a NATO e a estratégia de defesa dos Estados Unidos da
América». Esses esforços determinaram «a capacidade do exército para
coordenar movimentos em larga escala com aliados e parceiros».
Isto
é o que nos diz a NATO no momento em que a União Europeia encerra as
suas fronteiras externas, em que fecha muitas fronteiras internas, em
que se declaram estados de emergência que – por muito que sejam
acompanhados pelas mais piedosas declarações – limitarão drasticamente
os direitos e liberdades dos cidadãos.
Como é que os jogos de
guerra da NATO, mesmo «alterados em dimensão e âmbito», se encaixam na
enxurrada de medidas restritivas impostas à generalidade dos cidadãos?
Era importante que o governo de Portugal explicasse como é possível que
isto continue a acontecer enquanto tudo o resto se suspende, tanto mais
que o Ministério da Defesa já revelou a existência de militares
infectados. Certamente terá elementos esclarecedores, uma vez que o país
é membro da NATO e, segundo informa o comunicado da aliança, «há ainda
muitos pormenores que estão a ser trabalhados e discutidos com os nossos
aliados e parceiros». Partilhá-los com os cidadãos seria um gesto
cívico em tempos nos quais os direitos cívicos se diluem em medidas que
suscitam inegáveis reservas democráticas.
O que se seguirá?
A
saída de cena da União Europeia em tempos de coronavírus, por muito que
se diga que os isolamentos nacionais se processam em articulação com as
instituições europeias, é temporária e estender-se-á apenas, muito
provavelmente, pelo período da pandemia.
Depois disso a União
renascerá no seu esplendor, pronta a tornar-se indispensável para lidar
com a crise económica, financeira e social decorrente da crise
sanitária.
Será a ocasião já não de socorrer os cidadãos mas de
estabelecer mecanismos para que estes sejam os instrumentos da
recuperação económica de acordo com os parâmetros habituais, isto é, em
benefício dos grandes interesses privados, incluindo os financeiros.
Então,
os países que não responderam às aflições italianas estarão prontos a
unir-se na disseminação da austeridade, da limitação de direitos
laborais elementares, do desemprego, da contenção salarial e do maior
desprezo ainda pelos horários de trabalho, enfim da inesgotável ambição
patronal pela arbitrariedade.
Sabemos como foi depois de 2008; por
maioria de razão, porque o COVID-19 vai ter as costas muito largas,
assim irá acontecer quando for debelada a pandemia.
Não se trata
de uma antecipação de cenários, muito menos de fazer futurologia. É
apenas uma reflexão de modo a que a generalidade das pessoas não pensem
que o pior já passou quando o vírus for derrotado.
Existem
comportamentos próprios de um passado recente e atitudes assumidas já
nestes dias que fazem prever o pior sobre a exploração da crise
económica, financeira e, sobretudo, social gerada pelo facto de o ataque
do novo coronavírus ter detonado a nova crise do neoliberalismo – que
já se adivinhava há longos meses. Percebendo agora o afã com que grupos e
empresas privadas recorrem à suspensão de postos de trabalho, à
tentação de fazer negócio tirando proveito de situações geradas pelo
combate à pandemia, às reclamações de apoio estatal que já se fazem
ouvir sem pudor, não será difícil prever a hecatombe que aí vem logo que
seja declarado o fim do reinado do COVID-19.
Mais uma vez o
Estado, isto é, os cidadãos, serão chamados a «salvar» os bancos, a
financiar as empresas privadas sob chantagens como as do desemprego em
massa ou do próprio encerramento.
Então ressurgirá, na sua
plenitude, a União Europeia, para seguir os seus guiões habituais,
retocados socialmente para pior por alegada culpa do COVID-19. Bruxelas
terá os seus «semestres europeus» adaptados à nova situação, o Banco
Central Europeu reinventará as «troikas» que considerar necessárias, o
reforço da austeridade voltará a ser uma incontornável solução. Quantos
dos trabalhadores que agora foram mandados «para casa» recuperarão
plenamente os seus postos de trabalho? Quantos deles terão de
sujeitar-se a restrições de direitos, incluindo salariais, para não
perderem o emprego «por causa do coronavírus»? Quantos não serão
obrigados à «revisão» dos seus vínculos laborais porque as experiências
com teletrabalho têm vindo a revelar-se excelentes para o reforço de
lucros e a mitigação de direitos sociais?
Essa será também a
altura em que os Sistemas Nacionais de Saúde, que têm de fazer frente à
pandemia depois de anos e anos de desinvestimento dos governos,
continuarão a tentar sobreviver submetidos a restrições ainda maiores e
ditadas, como sempre, pelas obscuras chantagens do défice.
Estamos
num tempo em que, uma vez debelada a pandemia, nada voltará a ser como
antes de detectado o novo coronavírus. Haverá um antes e um depois do
COVID-19, continuando o sistema neoliberal a gerir a situação e
manipulando agora uma nova crise que parece feita de encomenda.
E
então a União Europeia, que não sabe como socorrer solidariamente os
seus cidadãos, estará certamente unida para sacrificá-los no altar da
necessária recuperação económica e, sobretudo, financeira. Contando,
como sempre, com a sombra protectora da NATO, que para isso não se priva
de trabalhar pela sua «prontidão» perante as «potenciais ameaças» à boa
ordem, mesmo sob os ambientes carregados de ofensivas virais originadas
sabe-se lá onde.»
Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
Longe, muito longe estou de acreditar que o pior tenha passado quando - e se... - o Sars-CoV-2 for derrotado. Sei muitíssimo bem que sairemos de um inferno para entrarmos noutro.
ResponderEliminarEntretanto, junto-me ao merecido aplauso ao auxílio material e humano que a China e Cuba estão a fornecer à massacrada Itália.
Abraço, Rogério!
Bom dia:- E a Pandemia do coronavírus ainda só vai no início. Muito se vai ouvir o grito: QUEM NOS AJUDA?
ResponderEliminar.
Feliz início de semana.
O aplauso é mais que merecido. Cuba na linha da frente e a dar sinais inequívocos.
ResponderEliminarTal como a Rússia ao enviar médicos e material para Itália.
Onde pára a chamada União Europeia?
Cumprimentos, caro Rogério.
Esta Europa continua à deriva
ResponderEliminarAbraço
Que nesta luta ainda hajam muitos aplausos.
ResponderEliminarÉ sinal de Vitória.
Um bem haja a todos os que lutam no dia a dia.
Saúde e esperança para si caro amigo.
Um abraço florido.💐
Megy Maia
Tempos difíceis, meu amigo...a sobrevivência é sempre egoísta.
ResponderEliminarBeijo