05 abril, 2020

"CHINA ESTENDE A ROTA DA SEDA DA SAÚDE"



Quando em meados de Março o presidente chinês, Xi Jinping, conversou por telefone com o primeiro-ministro de Itália, Giuseppe Conte, antes da chegada de um voo da China Eastern de Xangai para Milão carregado de ajuda médica, o assunto principal foi a promessa chinesa de desenvolver uma Rota da Seda da Saúde (Jiankang Sichou Zhilu).

Esta proposta, na verdade, já estava incluída na estratégia Iniciativa Cintura e Estrada (ICE) desde pelo menos 2017, no contexto de uma mais intensa relação sanitária pan-eurasiana. A pandemia de COVID-19 só fez acelerar o cronograma. A Rota da Seda da Saúde correrá paralela aos múltiplos corredores terrestres e à Rota da Seda Marítima.   
  
Numa demonstração explícita de soft power (poder suave), a China ofereceu até agora ajuda médica e equipamentos hospitalares relacionados com o COVID-19 a nada menos que 89 países, uma lista que continua a crescer.



Nesse conjunto estão países africanos (em especial a África do Sul, a Namíbia e o Quénia, sendo que a empresa chinesa de comércio electrónico Alibaba anunciou, de facto, que enviará ajuda a todas as nações africanas); da América Latina (Brasil, Argentina, Venezuela, Peru); do arco que vai do Leste ao Sudoeste Asiático; e da Europa. 
Entre os principais países europeus que receberam esse apoio estão Itália, Espanha, Bélgica, Holanda, Sérvia e Polónia. Mas a Itália, principalmente, é um caso muito especial. A maior parte da ajuda consiste em doações. Outra parte envolve transacções comerciais - como os milhões de máscaras vendidas a França (e aos Estados Unidos).

Há menos de um ano, a Itália tornou-se o primeiro país do G7 (Grupo dos Sete) a assinar um memorando de entendimento através do qual o país se juntou formalmente à Iniciativa Cintura e Estrada - para enorme desagrado de Washington e da galáxia atlantista, em Bruxelas e mais além.

No início deste ano, na Sicília, discuti em pormenor esse tema complexo com Enrico Fardella, professor de História da Universidade de Pequim e especialista em relações sino-mediterrânicas.

A Itália está a receber apoio numa infinidade de frentes - não apenas no mais alto escalão político mas também por intermédio da Cruz Vermelha Chinesa, de associações sino-italianas, de empresas chinesas de tecnologia e logística e de doações da Alibaba, da Huawei, da ZTE e da LeNovo. Três equipas médicas chinesas encontram-se neste momento em Itália. 

Tudo isto se encaixa no quadro mais amplo da ICE, incluindo investimentos em Génova e Trieste, dois portos de importância chave e futuros nós da Nova Rota da Seda.

Esta ofensiva do soft power chinês foi cuidadosamente calibrada para contrabalançar a atual paralisação das cadeias globais de abastecimento. A China está actualmente a trabalhar em turnos ampliados para abastecer diversas partes do mundo com medicamentos e equipamentos de serviços de saúde – tendo sempre tendo em mente a Cintura e Estrada, como que duplicando a aposta na Globalização 2.0. 

Isto significa interconectividade com os que têm necessidades prementes de desenvolvimento e infraestruturas, e também a existência de bons sistemas e práticas de saúde. 

Além disso, a China prepara o terreno para - quando o COVID-19 estiver mais ou menos contido e a economia se tiver recuperado plenamente – proceder a um relançamento da Cintura e Estrada: uma inexorável tendência histórica, baseada num novo modelo económico que Pequim vê como mais equitativo e voltado para os interesses do Sul Global. 

"Mentira chinesa" 
Uma Rota da Seda da Saúde já está em funcionamento, o que se torna evidente quando a China, a Rússia - e Cuba, com seu sistema de saúde de primeira linha - enviam equipas de médicos e virologistas, além de aviões carregados de equipamentos médicos para a Itália; além de a China enviar medicamentos, kits de testes e suprimentos para o Irão, submetido a sanções ilegais. 

A China entendeu imediatamente o que estava em jogo quando se apercebeu de que o COVID-19 começou a atingir muitos dos pontos-chave do Made in Italy de fama mundial. Com sua oferta de processos de fabricação especializados e mais baratos, a China atraíra há muito grandes marcas da indústria italiana de moda, que passaram a deslocar a sua produção para território chinês, principalmente para Wuhan.   

A relação - que já existe há décadas - funciona nos dois sentidos. Os investidores chineses começaram a chegar ao Norte da Itália no início da década de noventa. Compraram uma série de fábricas, renovaram-nas e criaram suas próprias marcas Made in Italy, trazendo dezenas de milhares de costureiras chinesas para trabalhar nessas indústrias.

Há um grande número de voos directos de Wuhan para a Lombardia – correspondendo às necessidades de pelo menos 300 mil chineses que se instalaram em Itália com caráter permanente para trabalhar nas fábricas de propriedade chinesa que produzem artigos Made in Italy. 

Não é de admirar, portanto, que o Dr. Giuseppe Remuzzi, director do Instituto de Farmacologia Mario Negri, em Milão, se tenha tornado uma vedeta na China. Numa entrevista que se tornou viral, Remuzzi fala de suas descobertas explosivas em conversas com clínicos gerais da Lombardia. 

Isto é o que afirma o Dr. Remuzzi (antes de haver conhecimento formal do COVID-19): "Sabe o que aconteceu? Alguns médicos de família, que são os mais familiarizados com o que se passa no território, pelo menos os mais capazes e atentos, disseram-me recentemente que estavam a par de casos graves de pneumonia que nunca tinha observado até então".

Esses casos de pneumonia não tinham nada a ver com a pneumonia típica das gripes, eram pneumonias intersticiais, [só diagnosticáveis] com tomografias computadorizadas; isso foi apurado em Outubro, Novembro e Dezembro. De modo que este vírus já estava em circulação há muito tempo".  

Isto, de facto, aconteceu em paralelo, ou até mesmo antes, dos primeiros casos de coronavírus em Wuhan, ocorridos em meados de Novembro. Já ficou cientificamente estabelecido que as estirpes de vírus encontradas em Wuhan e na Lombardia são diferentes. Qual delas chegou primeiro, e de onde, são questões que continuam a ser objecto de acesos debates.

Como não poderia deixar de acontecer, a Rota da Seda da Saúde foi repudiada pelo gang atlantista como uma manobra para explorar a pandemia com o intuito de "desestabilizar" e enfraquecer a Europa. Foi essa a narrativa promovida pela EU vs Disinfo, uma entidade financiada pela União Europeia onde os propagandistas, designados “fact-checkers”, ganham a vida a atacar a China e a Rússia, o que fazem com o maior prazer.

Portanto, para a burocracia de Bruxelas a Rota da Seda da Saúde não tem como objetivo salvar vidas mas sim "desestabilizar" a União Europeia e melhorar a imagem de Xi Jinping junto do povo chinês depois de a China ter mentido repetidamente quanto à extensão e à gravidade do coronavírus. Essa, por acaso, é exactamente a mesma narrativa do governo Trump, dos media corporativos norte-americanos e dos serviços de inteligência dos Estados Unidos.    

Isso tem alguma importância? Não para os 89 países que vêm recebendo a tão necessária ajuda em termos de pessoal e equipamentos médicos. Os cães da demonização ladram e a caravana da Rota da Seda da Saúde passa.

Pepe Escobar*, Asia Times/O Lado Oculto
*Jornalista e correspondente de várias publicações internacionais.

1 comentário:

  1. Os cães da demonização sempre foram pródigos em latidos, uivos e rosnidos. Sábios, os gatos da concórdia olham-na em silêncio. Que a caravana siga em paz o seu curso.

    Abraço

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