12 abril, 2020

Senhor Covid-19 se pensa que paramos, tire daí o sentido! (4)


Inserido na iniciativa "Contemos Contos Uns aos Outros" após ajustado o projecto à actual situação, nós, "Desenhadores de Sonhos", aqui vos deixamos mais um conto. 

É um belo texto de Miguel Torga, uma verdadeira mensagem de esperança nesta Páscoa. Esperança e luta contra a adversa natureza... e contra o isolamento a que está votado quem se vê obrigado a ganhar a vida afastado do mundo...

O conto "Um Filho" foi a escolha dos nossos associados Jorge e Isabel Vasconcelos. A voz é, mais uma vez, de André Levy.

Oiça! Mas também pode ouvir e ler


«Contemplado do alto da Mantelinha, o mundo parece tudo menos um vale de lágrimas. 

Em janeiro, então, quem não é cego da alma e, de lá, vê tudo em redor coberto de neve pura, mesmo que seja pastor e tenha o gado na loja morto com fome, acaba por acreditar que a terra foi gerada só para ser possível uma brancura assim. 

Por isso não admira que em Provezende ninguém tivesse entendido a simplicidade com que o Rebel um dia desceu do monte, falou à filha do Jaime, a pediu em casamento, a recebeu, e com ela e a maluquice se foi. 

O Rebel era a fraga cimeira da Mantelinha, lavada todos os dias pelo bafo do céu; e Provezende fica nos fundegos da Ribeira, aonde até o ar chega por favor. De forma que não podia de nenhum modo ter olhos para tamanha claridade.  

À própria Júlia, à noiva, valeu-lhe ser dona dum coração feito de confiança, e os seus vinte anos poderem mais do que todas as razões sensatas. De contrário, ali ficaria a chorar a mãe, que morrera há anos, a ralhar com o pai, sempre metido no vinho, sem nunca conhecer sequer o perfume das giestas da Mantelinha. 
O velho, numa hora de bebida regrada, ainda lhe disse: 

"- Quem bem fizer a cama... "

Mas ela ouviu-o a pensar na desgraça em que viviam. E como era animosa, e a idade lhe pedia um homem a cheirar a urzes e com ar de lobo, gostou do rapaz, casou-se, pôs à cabeça as duas mantas que herdara, e a seu lado meteu-se pela encosta acima à ventura. 

"Quem bem fizer a cama..." De pouco valia o eco das palavras paternas a persegui-la! Levada nas asas da imaginação, chegou leve de preocupações à porta do ninho, e, com cinco réis e um prego, fez tal barulho, que daí a dias o casebre solitário da Mantelinha parecia o Palácio da Ilusão. 

E o Rebel, ao meio-dia, depois de regressar das lombas e comer o caldo, debruçava-se à janela, punha os olhos no craveiro a estalar de cravos e nas dez léguas à volta cobertinhas de sonho, e dizia à mulher: 

"- Nem há riqueza como a nossa, ó Júlia!"
 E não havia mesmo. A Mantelinha era já de si um paraíso.»

 Contos da Montanha, "Um Filho", de Miguel Torga

7 comentários:


  1. "Contos da Montanha". Lido/ouvido à luz dos dias de hoje, diria que torna pouco sedutora a ideia de um regresso às origens. Caminho feito é caminho sem retorno.

    Ainda que seja romântica esta ideia de "o teu amor e uma cabana". Romântica, apenas, e mais nada!

    Lídia

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  2. Não ha riqueza como a nossa em viver em família e simplicidade .

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  3. COVID-19 não é uma senhora⁉

    Adiante...

    Li "Contos da Montanha" do transmontano há muito tempo. Gostei de recordar este conto na voz de André Levy.

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  4. Quando era criança, pensava exactamente o mesmo que agora penso; não há no mundo quem escreva contos tão belos quanto os do Torga.

    Abraço!

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  5. Um excelente conto que li há muitos anos e que gostei de recordar.
    Abraço e uma boa semana

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  6. Um conto muito bonito de Miguel Torga. Um extasio de leitura

    Uma semana feliz

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