31 dezembro, 2010
30 dezembro, 2010
28 dezembro, 2010
Da minha janela - 4
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma regra: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim".
27 dezembro, 2010
Da minha janela - 3
-----------------------U2 - Window in the Skies
26 dezembro, 2010
Homilias dominicais (citando Saramago) - 21
(...) Porque o Menino, a Criança é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, com uma varanda dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança
(...) Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
“Porquê?”, pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: “À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”.
Muitos anos depois destas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: “E eles ainda estão tristes?”. Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso."Um Conto de Natal de José Saramago
22 dezembro, 2010
As minhas canções de Natal - (4)
Debate nº 5 - Cavaco Silva Vs Francisco Lopes
20 dezembro, 2010
Sorria, é Natal...
19 dezembro, 2010
Homilias dominicais (citando Saramago) - 20
Ironia perfeita - "Fernando Pessoa é o irónico por excelência. E toda essa invenção dos heterónimos é uma obra-prima de ironia. Esse dotar de voz própria ao conjunto de “eus” que convivem em cada um de nós parece-me a ironia perfeita."
“Saramago: ‘La CE, un eufemismo”, El Independiente, Madrid, 29 de Agosto de 1987O que caiu no esquecimento - "Nos meus livros, a História não aparece como reconstrução arqueológica, como se tivesse viajado ao passado, tirado uma fotografia e relatasse o que mostra essa imagem. O que eu faço nada tem a ver com isso. Eu sei ou creio saber o que se passou antes e revejo-o à luz do tempo em que vivo. Quando me perguntam se escrevo novelas históricas, respondo que não, pelo menos não no sentido oitocentista da palavra tal como o faziam Alexandre Dumas ou Walter Scott ou Flaubert em Salammbô. A minha intenção é a da procura do que caiu no esquecimento pela História."
“Con el escritor portugués José Saramago: ‘La escritura es otra forma de realidad”, El País (Suplemento Cultural), Montevideo, 24 de Junho de 1994
Os textos de Saramago foram retirados daqui
Debate nº 4 - Manuel Alegre Vs Francisco Lopes
18 dezembro, 2010
O livro que estou a escrever?... Vá lá ver!
Um livro escrito
para dar testemunho que a guerra
pode trazer a consciência
não só da nossa humanidade
mas também
da inevitabilidade
histórica da libertação
dos povos
(para ler o que estou a escrever)
--
"A violência que presidiu a instauração do mundo colonial e provocou incansavelmente a destruição das formas sociais autóctones demoliu sem restrição os sistemas de referência da economia, as formas de aparência, de indumentária, será reivindicada e assumida pelo colonizado, no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonizada investir as cidades proibidas. Explodir o mundo colonial é então uma imagem de ação muito clara, muito compreensível, que pode ser retomada pelos indivíduos que constituem o povo colonizado.” – Frantz Fanon in "Condenados da Terra"/1961
Debate nº 3 - Fernando Nobre Vs Cavaco Silva
17 dezembro, 2010
Debate nº 2 - Manuel Alegre Vs Defensor Moura
16 dezembro, 2010
Um conto colectivo para ler e uma canção a condizer...
A verdade sobre o Pai de Natal
Este post resulta de um gesto feio
pois foi buscar trabalho alheio (aqui)
15 dezembro, 2010
Debate nº 1 - Fernando Nobre Vs Francisco Lopes
Hoje comprei o DN e o Público. Parecia disparate mas não foi pois os jornais on-line não disponibilizam todos os textos publicados no formato papel. Ao custo incorrido tive de adicionar o esforço na digitalização e correr o risco de má legibilidade da imagem ao lado (aumentem o formato clicando na imagem a ver o que é que dá).
13 dezembro, 2010
As minhas canções de Natal (2)
Ah, esta minha alma celta e o cinzento destes dias... Há alegria neste Natal?
Claro! Anda por aí e eu acho que já a vi...
12 dezembro, 2010
Homilias dominicais (citando Saramago) - 19
Julgava, quando decidi escrever o meu livro, que o facto de não ter preocupações de escrever a história me libertava da responsabilidades normalmente atribuíveis a um historiador. José Saramago fez-me mudar a minha opinião e, pela compreensão do “efeito borboleta” que se inscreve na teoria do caos, posso admitir que todos aqueles acontecimentos narrados por mim poderão explicar, por si sós, a queda do império colonial. Não, não estou a ver-me grande demais. Esses acontecimentos que descrevo é que poderão ter tido uma importância muito maior que aquela que eu próprio lhe atribuía inicialmente(*)
HOMILIA DE HOJE
A coerência no caos - "A nossa relação com o tempo faz-se por intermédio de algo a que chamamos História e a História é algo que se escreve como consequência da eleição de dados, datas e circunstâncias que vão ser organizadas pelo historiador para que toda essa pilha de informação seja coerente consigo mesma. A História não seria mais que a tentativa de introduzir a coerência no caos dos múltiplos factos de todos os dias."
In José Saramago nas Suas Palavras
11 dezembro, 2010
As minhas canções de Natal (1)
The colors of the rainbow, so pretty in the sky
Are also on the faces of people going by
I see friends shaking hands, saying,
"how do you do?"
They're really saying, "I love you"
10 dezembro, 2010
Entrevista a um poeta meu (e de todos nós...)
Jorge de Sena
--
Lamento do Poeta Objectivo
Anda-me o amor tomando a própria vida,
como se, amando, eu existisse mais.
E leva-me o Destino em voz traída,
como se houvera encontros desiguais.
A multidão me cerca, e, renascida,
já dela terei fome de sinais.
E, mal a noite se demora ardida,
o medo e a solidão me esfriam tais
as cinzas desse amor que sacrifico.
Não é futura a só miséria. A queixa
também não é: e apenas acontece
no vácuo imenso que este amor me deixa,
quando maior, quando de si mais rico,
se dá de mundo em mundo, e lá me esquece.
Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'
09 dezembro, 2010
O DN financia o candidato Cavaco Silva?
"O Diário de Notícias dispensa apresentações. Com mais de 140 anos de história, continua nos dias de hoje um importante título na imprensa nacional. Tem mantido ao longo dos tempos a capacidade de se reinventar e adaptar a novas realidades e exigências dos leitores, sem nunca perder o carisma e o seu lugar como o jornal de referência dos grandes temas económicos e políticos da vida nacional e internacional. Os seus conteúdos são ricos e diversificados, fazendo do DN um jornal completo, abrangente e de confiança."
Texto do site da Controlinveste, proprietária do Diário de Notícias
Tabela de publicidade do DN (ver aqui)
Peguei no DN de hoje e logo percebi porque razão a sua proprietária, no texto acima, não refere o qualificativo "isenção" nos conteúdos do jornal limitando-se a referir que estes "são ricos e diversificados". Honestidade e coerência tem tal escrito. De facto as notícias e textos que publica sobre as eleições presidenciais, de isenção nada possuem. Contudo percebe-se que por motivos financeiros não possa dar tratamento equitativo a todos. Vejamos só o que o DN perdeu por deixar de vender publicidade no espaço que dedicou a cada um dos candidatos: - Cavaco Silva, 1/4 da sua página 3, mais 1/4 da página 11 Tudo somado dá meia página, em lugar ímpar ao alto e soma 5 100 euros. As fotos são risonhas (apesar das tristes fronhas). - Manuel Alegre e Fernando Nobre, ocupam ambos um 1/8 da página 10 ao baixo. Somados roubam ao DN 960 euros de boa publicidade (480 € cada). Destes, não há fotos para ninguém pois é pressuposto que os leitores os conhecem bem. - Francisco Lopes está fora da tabela mostrada, mas não significa que não tenha dado um pequeno prejuízo (certamente na proporção do valor que o DN atribui à sua candidatura). Pelo espaço por ele ocupado, cerca de 1/32 de página terá implicado uma verba de 120 euros (ele não merece mais). Deste também não há imagem pois se alguém mais o conhecer tudo pode acontecer... Poderá entender-se e mesmo dizer-se que Cavaco Silva está a ser financiado. Mas o Sr. Presidente iria ficar irritado e a Controlinveste também. Acho eu!
Para os restantes candidatos não houve espaço algum...
NOTA: Se as contas estiverem mal feitas, aceitam-se reclamações. Contudo, seria interessante que fosse o DN a aceitá-las
08 dezembro, 2010
07 dezembro, 2010
Propostas de redução de custos...
Recomenda-se a leitura deste post ao som desta sinfonia:
Consultor preocupado e diligente, contratado por quem deve e pode, recebeu carta branca para propor medidas de redução de custos. Fê-lo em todos os domínios da actividade e até noutros, tal era sua gana. Perante tão numeroso número de propostas, caiu-me os olhos nesta por inusitadamente incidir sobre a obra de Schubert, aqui mesmo a ser tocada. Diz o relatório:
Depois de exautiva análise e tendo em conta as melhores práticas de gestão , deixo à consideração da Ex.ª Administração, as seguintes medidas de racionalização de custos nesta peça:
1. Os oboés estiveram desocupados durante largo tempo. Deverá reduzir-se o seu número e distribuir o trabalho por toda a orquestra evitando-se assim picos de inactividade
2. Os doze violinos tocavam notas idênticas. Parece ser uma duplicação desnecessária e o pessoal deste sector deve ser drasticamente reduzido. Se for realmente necessário um grande volume de som poderá usar-se um amplificador.
3. Foi dispendido um esforço considerável a tocar fusas. Parecer ser um requinte desnecessário pelo que se recomenda que todas as notas sejam arredondadas para a semi-colcheia mais próxima. Assim será possível utilizar estagiários em vez de profissionais especializados.
4. Não se vê qualquer utilidade na repetição pelas trompas de passagens já tocadas pelos violinos. Se todo todas essas passagens redundantes forem eliminadas poderão estes metais serem dispensados com evidentes economias.
5. Propõe-se a aplicação destas medidas a todas as orquestras do mundo inteiro com ordens severas que assegurem o respeito da sua introdução de que resultarão, não só economias monumentais, como se evita a produção de Sinfonias Inacabadas e a sua entrega fora de prazo…A bem da cultura autosustentada
Texto arranjado a partir de várias versões, nomeadamente desta
06 dezembro, 2010
Caminhos do Meu Navegar, agora noutro lugar...
- Este espaço precisa de retornar aos objectivos para que foi criado, dentro dos principios que enunciei para aquilo que considero acção cívica
- O livro carece de informação adicional e que não quero integrar no texto. Este espaço já não tem condições para alojar mais informações
- Algumas passagens do "... Meu Navegar" poderão suscitar interesse de professores e outros educadores pelo que achei dever isolar o texto do livro de outros conteúdos menos apropriados
PASSAR A LER O MEU LIVRO NO MEU NOVO BLOGUE "CAMINHOS DO MEU NAVEGAR"
05 dezembro, 2010
Homilias dominicais (citando Saramago) - 18
Se virem, no vosso espaço, uma passarola mesmo que estilizada, que tal não vos embarasse. Ela é verdadeira. É ela que me leva onde o sonho perseguido merece ser levado. Mesmo que as palavras que vos deixo possam soar amargas escutem-nas pois elas se inspiram na esperança e nas reflexões de um homem bom...
HOMILIA DE HOJE
A pior das mortes - Um país como Portugal, e não é o único nesta situação, que não tem uma ideia própria de futuro para toda a colectividade, vive numa situação de total dependência. Não temos mais ideias para além das que nos dizem que devemos ter. A União Europeia dita-nos o que devemos fazer em todas as ordens da vida. Encaminhamo-nos para a pior das mortes: a morte por falta de vontade, por abdicação. Esta renúncia é também a morte da cultura. Por isso creio que um país morto, como Portugal, não pode fazer uma cultura viva.
“José Saramago: ‘El mundo se está quedando ciego”, La Verdad, Murcia, 15 de Março de 1994Globalizar o pão - Se amanhã me disserem que vão globalizar o pão não encontrareis globalizador mais entusiasta que eu. E se me disserem – e fazem-no – que vão globalizar tudo quanto milhares de milhões de seres humanos estão necessitando para viver dignamente, então asseguro-vos que me vereis convertido num seu fanático. Mas a globalização está a acrescentar miséria à miséria, fome à fome, exploração à exploração.
José Saramago, “Soy un relativista”, Vistazo, Guayaquil, 19 de Fevereiro de 2004
03 dezembro, 2010
Caminhos do Meu Navegar (6)
Cap II - Por terras de Angola (cont.)
Um curandeiro eficaz
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22 – “Furrié dotor, esminino tem muntu quente nus cabeça e dói os corpo todo” – Estava a separar as lâminas dos bisturis, as boas das que me pareciam ser de não usar, quando o António, um dos pretos contratados como guia e tradutor, assomou à porta interrompendo “Furrié dotor dá co lecensa?” mas não a esperou e foi dizendo com ar aparentemente desesperado “Furrié dotor, esminino tem muntu quente nus cabeça e dói us corpo todo”. Enquanto dizia estas cantantes palavras, uma mulher de olhos tímidos e cara de sofrimento alheio , sendo que tal alheio lhe preenchia o colo. Era um menino com a cara de todos os meninos só que com os olhos mortiços e a respiração muito entrecortada. Seu peito arfava. Minha Alma afastou-se deste grupo e Meu Contrário disse-me com voz que me deu confiança: “Rogério, tu sabes tratar desta criança. Basta que te lembres do que a Teresa fez à tua João naquela valente constipação”. Estava convencido que esta situação era mais grave mas o Meu Contrário tinha acabado de depositar em mim grande confiança. Disse ao António para perguntar à mulher há quanto tempo estava a criança assim, se tinha vomitado, se tinha diarreia ou arrepios de frio enquanto eu próprio ia colocando o termómetro e fazendo todos os possíveis para mostrar segurança na voz e nos gestos. “Furrié dotor, mulher diz que filho num ter vómitadu nem nadas dissu, o qui tem mesmo é munta fevre e dor nus corpo todo. Diz tamem que num tem cágádu”. Vi a febre bem elevada e sempre dando mostras de segurança, parti um LM (*) em quatro. Enchi de anti-tussico meio de um outro frasco. Expliquei as tomas. De seguida passei uma compressa pela torneira e estendi a compressa molhada indicando a testa do miúdo, gesto que a mãe compreendeu. Pedi ao António para explicar à mulher que quando chegasse à sanzala repetisse esses pachos de água fria e à noite também. Dispensei recomendação para o agasalhar bem pois vinha bem enroupado. “Volta depois de amanhã” disse como despedida, que foi compreendida com a ajuda do António, admirado por tal pedido, pois era normal fazer-se àquela gente. A mulher ergueu-se mas entretanto, lembrando-me do que faltava, fiz-lhe um gesto de espera. Peguei numa pequena colher e entrei no espaço onde estavam os medicamentos, procurando qualquer coisa que servisse para libertar aquele miúdo sabe-se lá se de lombrigas ou ténias. Levei um tempo infinito na procura mas fui bem sucedido. Dei-lhe uma única colher, mal cheia… E pelo seu ar percebi que seria doce como doce era o seu olhar… Fora estava um velho que esperava. Tratei-o da coceira sarnosa já não me recordo com que unguento…
23 – “apto para todo o serviço” – Tinha de memória palavras que não sabia serem as exactas, como resultado da minha inspecção prévia ao ingresso no serviço militar: “Apto para todo o serviço”. Seria? Olhei para o estetoscópio e percorri as imagens que havia colocado na parede. Tomei uma decisão: ultrapassar-me. Foi assim que fiquei por ali a estudar o registo de doentes para perceber o que fora ministrado de forma igual para diagnósticos diferentes e dessa arrevesada maneira tentar entender o campo de aplicação de cada fármaco. Li e reli horas a fio, com a Minha Alma quieta e o Meu Contrário calado. Ambos estavam do meu lado…
24 – “só apareceu o António” – No dia seguinte, lá fui para a minha tarefa de curandeiro mal formado. Esperei por quem aparecesse. O cabo maqueiro também apareceu e ficou por ali limpado o pó, varrendo o chão e fervendo seringas e agulhas. O tempo passava e ninguém chegava. Por fim chegou um sorridente António. “Furrié, esmino já brinca um bucado. Cagou tanto bicho que mulhé chamou todo o kimbo pra vê”. Sorri também, contei ao cabo o sucedido na véspera e fui emendar o registo. Risquei “pneumonia” e escrevi “constipação”, sem estar bem certo do termo mais adequado ou se a emenda se justificava...
01 dezembro, 2010
Caminhos do Meu Navegar - (5)
Cap II - Por terras de Angola (cont.)
Tantos dias sem Maria do Sol, nem Senhora do Mar
17 – Colocados num corredor de infiltração. Na frente de guerra, não – O nosso comando (capitão, sargentos e alferes) recebia do outro todos os pormenores de carácter militar e operacional a que estiveram sujeitos. Terão descrito como a guerrilha tinha evoluído na zona, agora apaziguada e como vinha o efectivo militar a ser solicitado para outras zonas onde a guerrilha tinha crescido em ataques e flagelações. E porque os segredos militares, se existiam era para serem contados, depressa todos souberam que, na zona, os guerrilheiros limitavam-se a aliciar as populações e a atravessar a fronteira de Angola para o Congo e do Congo para ela, na faixa que ia de não sei onde até Maquela, ou até mesmo para além dela… A guerrilha não iria chatear mesmo que nós chateássemos a guerrilha, pois uma coisa era para eles importante: manter um corredor de passagem para abastecimento, munições e reforço das suas hostes. Ali não corriamos grande perigo...
18 – Matámos os últimos daquela espécie? – O furriel vagomestre, encarregue de assegurar a alimentação do efectivo militar que ia ficar, pegou na listagem e conferiu os pratos, copos, tachos, talheres, panelas, cafeteiras. Tudo conforme. Seguiram-se os géneros: massa, arroz, feijão grão, batatas, atum, outros enlatados e muitas outras mercearias. Tudo conforme. Por fim os frescos e o vinho, medidos a olho. Parecia estar mais do que devia, sem sobrar, pois nessa noite seria reforçada a ceia e talvez até o jantar. Tudo parecia pronto e cumprido. Mas não. Faltava transmitir conhecimento das zonas e locais de caça à pacaça. Na madrugada do dia seguinte saíram dois unimogs com voluntários sorteados, pois os que se ofereciam para um primeiro safari eram bem mais do que o máximo autorizado e o sorteio veio resolver quem seriam os eleitos. Foram e regressaram 4 horas depois com dois animais e um acto heróico para contar. A maior pacaça tinha sido abatida com tiro à queima-roupa, depois de ferida, pelo alferes Sanches. Como todos os actos heróicos esta bravura fora cometida na mais ingénua ignorância, mas o feito correu por todas as sanzalas em redor e todos ficaram a admirar o feito. Mesmo aqueles pretos, e eram muitos, os que privados de eles próprios caçarem e de montarem as armadilhas para acederem periodicamente a uma refeição de carne, elogiavam o feito e passaram a ter-lhe um enorme respeito. Claro que o respeito se devia à frieza e ao uso da arma, não à forma em que se expressava a sua alma. Fica como memória que aqueles dois animais foram os únicos a deixarem-se abater. A região estava dizimada e nos locais indicados, mesmo as junto às linhas de água, não havia nada…
19 – Também eu rendi, com a Minha Alma por perto – De manhã, o furriel enfermeiro (velhinho) veio-me chamar, apressado em desenvencilhar-se de tudo o que tinha pesado sobre os seus ombros durante a comissão militar que terminaria dias depois. Segui-o até à enfermaria e pouco depois juntar-se-iam todos os cabos maqueiros, para ajudar na contagem de instrumentos e material de consumo, medicamentos, xaropes e soros. A contagem levou toda a manhã e parte da tarde. “Pronto, já está. Assina aí a guia!”. Assinei. E de pronto passou ele aos lamentos: “É pá, de inicio o médico vinha cá duas vezes por semana. Depois passou a vir só às 5ªs feiras e desde Março que não põe cá os pés” e depressa passou aos conselhos: “Mas tu não terás muito que fazer. Num caso mais bicudo evacuas para Maquela”. Abanei com a cabeça, inexpressivamente mas Minha Alma não se conteve: “Foi duro isto?” perguntou ela usando a minha fala. “Só será duro se quiseres. Se ligares a essa gente que aparece por aí “ disse referindo-se à população preta das sanzalas em redor “…e se lhe deres muita confiança, tens trabalho de sobra. Eu de inicio embarquei, mas depois cortei pela raiz pois estávamos convencidos que grande parte dos casos era pretexto para virem buscar remédios ao “tugas” e dá-los aos “turras”. Se queres um conselho, nunca dês doses para levar. Se for necessário, que venham aqui fazer as tomas…”. Voltei a abanar a cabeça. Minha Alma interrogava-se “Como caminhar 3 ou 6 quilómetros para cada lado apenas para uma colher de xarope, um comprimido ou uma pequena fricção?”…
20 – Tantos dias sem Maria do Sol nem Senhora do Mar – Terminada a rotação das companhias e formalizada a rendição, fez-se uma calma imensa. Também tensa. Tensa e fria. A estação do cacimbo determinava, para aquela região, um frio húmido e dias cinzentos com pequenos rasgos de um sol fraco, anémico. A ausência de chuva escondia-me a Senhora do Mar. Os fins de tarde não tiveram a luminosidade que tivera à nossa chegada. A Maria do Sol não aparecia a anunciar o sol do outro dia. Em redor, o arame farpado impunha a sua também fria e ambígua imposição. Serviria ele para impedir a invasão do inimigo ou evitar a fuga das nossas almas?
29 novembro, 2010
"Caminhos do Meu Navegar" (4)
Cap II - Por terras de Angola
Afinal o destino estava para além de Maquela(*)
14 – Mais pó da picada – Após uma curta paragem, a coluna prosseguiu viagem, agora já sem os carros civis que traziam mantimentos para toda a população. À saída de Maquela, uma placa indicava vários destinos em duas direcções. Seguimos a que referia a fronteira com o Congo, direitos à Kimbata. Poucos não sabiam que o destino final era a Fazenda Costa, a cerca de 35 km de Maquela, antiga roça de café, que a guerra se encarregara de transformar em acampamento militar. Era onde iríamos ficar. Pelo caminho, passámos por 3 sanzalas e muitos grupos de negros deslocando-se, recolhendo de um dia de trabalho nas lavras, seu único meio de sustento. À nossa aproximação embrenhavam-se capim dentro, prosseguindo a uns 15 ou 20 metros. Minha Alma interrogou-me mas só muitos dias depois, quando soube, lhe disse que era costume, em tempos idos, os veículos militares irromperem em sua direcção, passando por cima dos menos lestos e desprevenidos. Minha Alma nem queria acreditar. O Meu Contrário, não aceitou tal explicação e disse, ainda que pouco convictamente: “Fogem do pó da picada, não da maldade dos homens”…
15 – “Olha a nossa salvação!” – Passado um declive muito acentuado, a coluna subiu uma ravina pouco inclinada mas longa e avistou o aquartelamento. Logo a seguir, mais de uma centena se soldados vieram ao nosso encontro gritando coisas diversas. Fixei apenas uma exclamação: “Olha a nossa salvação!”. E éramos. Vínhamos render aquela gente e por isso estavam tão felizes. No céu, para onde olhei inadvertidamente, talvez para perceber de que lado estava Deus, se com a satisfação dos que iam regressar se com a tristeza dos que acabavam de chegar, apenas vi uma tonalidade avermelhada e calma do sol a partir. Era uma tonalidade tão bela que só poderia ser obra de mulher a afastar o sol no horizonte. Chamei àquela luminusidade serena, Maria do Sol e ela antes de a estrelada noite aparecer, pareceu-me ter dito “Rogério, amanhã ele voltará, para te alegrar a Alma”…
(*) Este sub-capitulo é exclusivamente dedicado a contextualização geográfica do meu caminho pelo norte de Angola, os personagens passaram aqui para segundo plano. Retomarão já a seguir o papel que lhes reservei neste meu caminhar.
(**) Tivesse este livro preocupações históricas e eu não deixaria de citar o trabalho "Os Zombo na Tradição, na Colónia e na Independência", do Professor Doutor José Carlos de Oliveira, publicado na "Revista Militar" e a que podem aceder aqui: (I Parte); (II Parte); (III Parte)
28 novembro, 2010
Homilias dominicais (citando Saramago) - 17
- "Aqui, cada um com seu desgosto e todos com a mesma pena."
- "...é o que as palavras simples têm de simpático, não sabem enganar."
- "O código genético disso a que, sem pensar muito, nos temos contentado em chamar natureza humana, não se esgota na hélice orgânica do ácido desoxirribonucléico, ou DNA, tem muito mais que se lhe diga e muito mais para nos contar, mas essa, por dizê-lo de maneira figurada, é a espiral complementar que ainda não conseguimos fazer sair do jardim de infância, apesar de multidões de psicólogos e analistas das mais diversas escolas e calibres que têm partido as unhas a tentar abrir-lhe os ferrolhos."
José Saramago in “Ensaio sobre a lucidez”
26 novembro, 2010
Caminhos do Meu Navegar (3)
Cap II - Por terras de Angola
Zombando, rumo a Maquela do Zombo
8 – A lua anda, em Luanda – 5 da manhã, 21 de Julho de 1969, hora de desembarcar do navio Vera Cruz. A lua tinha já fugido colocando-se, ela e os astronautas que por lá andaram, fora do meu pensamento. Eu, o Meu Contrário e a Minha Alma, olhávamos a luz do nascer do dia. Luz muito clara àquela hora e ainda morna. Os três, em conjunto, fixámos aquele céu antes de olhar para o que dali se avistava da cidade. Aquele céu não nos pareceu tão estranho quanto a terra. Antes de a pisar, fizemos um acordo. Zombar com tudo aquilo que viesse a acontecer. À medida que descia do portaló ia dizendo: “Nada do que irá acontecer, será levado a sério nesta vã tentativa de se adiar o futuro”. O Meu Contrário, que para os que só agora tomaram contacto com estas narrativas, não é mais que a outra parte de mim e a quem alguns chamam consciência, reforçou-me a decisão com um tom sentencioso: “Rogério, estou de acordo desde que isso não te leve a coisas disparatadas e que tanto dizes condenar”. A Minha Alma, foi mais reticente, mas lá se convenceu em pactuar. Chegou a alvitrar que talvez fosse mais aconselhável assumir um comportamento de zumbi, um morto vivo, em vez da opção escolhida de passar a ser um ser vivo confrontado com uma realidade que se propunha ridicularizar. Ficámos assim, num acordo forçado, de troçar com a tentativa do regime em impedir a queda do império colonial…
9 – O comboio malandro – Não sei se o poeta se referia ao comboio que liga o porto de Luanda ao Campo Militar do Grafanil, num percurso de cerca de 15 quilómetros, quando escreveu aquele poema que eu fui buscar antes mesmo de ele o pensar fazer. Este não é o do poeta, mas é um comboio malandro também. Minha Alma segredava-me com a ironia que tínhamos contratualizado: “Este comboio é um malandro cansado”. Tinha razão o comboio. Desde 1961, aquele máquina tinha já transportado mais de 300 000 praças e sargentos, seus contrários e outras tantas almas. Mas o comboio, todo inteiro, talvez soubesse que sua reforma não equivaleria à reforma daquele teimoso trajecto que muitos queriam apelidar de heróico. Cansado, arrastava-se nos carris e chiava ao peso da sua elevada carga, cerca de 3000 pessoas de verde fardadas. Cansado era também o fumo intenso e negro que, em excesso de malandrice, ia envolvendo tudo e todos e se ia desfazendo pela paisagem composta por um imenso casario abarracado, pois toda a periferia da cidade eram muceques. A marcha do comboio malandro era tão vagarosa, que permitia que centenas de crianças pretas a acompanhasse, uns dizendo adeus sorridentes, outros apenas mostrando os dentes (pois os sorrisos tinham-se esgotado nos últimos comboios que por ali tinham passado), outros ainda pedindo um moeda. Por parar um ou outro fazendo gesto de agachar, fiquei com a ideia que eram bastantes os soldados que mandavam seus trocos. Seria naquele dia um reforço àquela economia, pois que se tinham organizado para o peditório. Chegados ao campo de concentração militar (a expressão é cruelmente ambígua e irónica), houve tempo de desfile, parada e discurso de boas vindas. Tínhamos assim chegado à guerra colonial de forma mais oficial, embora a distribuição do armamento só viesse a ocorrer dias depois…
10 - A primeira carta – Aos sargentos e oficiais era facultada a pernoita nas respectivas messes, no centro de Luanda. Ainda havia sol quando cheguei ao quarto, depus o saco e saí. Procurei um café e de pronto escrevi a minha primeira carta à Teresa. Confirmava que ia ser deslocado para a Fazenda Costa, perto de Maquela do Zombo e que iria ficar em Luanda mais oito dias sendo a data de partida prevista para 30 de Julho. No fim da carta desenhei um navio e um comboio malandro para a minha filha João, com uma pequena descrição terminando enviando-lhe beijos e mil outros para a minha outra filha, a Sandra. Entre as notícias e este findar desenhado, era um desfilar de coisas ridículas, pois uma carta de amor, como todas as cartas de amor, tem de ser ridículas… Mais à noite, no serviço telefónico agendado, teria a oportunidade de falar com todas elas, um bom bocado. Pensei, se à época houvesse as actuais comunicações o Império Colonial teria caído naquele dia, logo a seguir à chegada do homem à Lua…
11 – Uma montra – Só no dia seguinte vagueei pela cidade. Apenas iria ter relação com a cidade, muitos meses depois e, destes dias, guardo apenas difusas recordações. Lembro-me de ter parado frente a uma montra de roupa de criança. Roupa europeia. Olhei atentamente à procura de peças que imaginei poderem-se ajustar ao corpo pequenino das minhas filhas. Estendi a mão abrindo-lhe um palmo e coloquei-a quase sobre o vidro. Fechei um dos olhos, como se estivesse a fazer pontaria, mas apenas tirava medidas, sobre uma saiazinha cor de rosa. Estava eu neste estar, passaram duas catorzinhas cafecos que gargalharam, comentando “Os furrié tens os maluco nos cabeça dére”. O Meu Contrário, aproveitou para troçar e repetiu "Furriel, essa pose indica que tens já uma cabeça que amalucou". Minha Alma, silenciada, só nas minhas filhas pensava. Tirando aquela loja, tenho a vaga ideia de que Luanda não me pareceu uma cidade militarmente ocupada, mas certamente que estava...
25 novembro, 2010
"Caminhos do Meu Navegar", a ler amanhã , 6ª feira...
"Mas eu sabia, caro Rogério, eu sabia!
Sabia que os seus "Caminhos do Meu Navegar" nos haveriam de pôr a bordo,na barca das suas "viagens", levando-nos na aventura em que está a transformar-se a leitura do que escreve. Escrita a um tempo empolgante, crítica, mordaz e criativa, fugindo ao convencional, trazendo para o presente, quer o passado como o futuro! É inegável que Saramago o está a acompanhar. Escreve, portanto, na melhor companhia.
Espero, expectante, por Maquela do Zombo. Como já lhe disse estive na Buela, indo algumas vezes a Maquela do Zombo. Não sei qual foi o seu itinerário, o meu foi por aqui: Luanda/Caxito/Ambriz/Ambrizete/Tomboco/São Salvador/Cuimba/Buela. Daqui por vezes ia a Maquela, mas, quase sempre, descia até à ponte do Rio M'Bridge a socorrer tropas chegadas da "Metrópole", por regra ali emboscadas.
Até amanhã
Os que fizeram greve
Palavras de um hipotético grevista
Parei aeroportos, aviões, portos, navios, embarcações, comboios e autocarros. O país deixou de fazer carros e baixou considerávelmente o fabrico de componentes. Deixei de tratar doentes, atrasei a redução de contas bancárias e parei escolas. Mas não parei a educação. Os meninos do meu país souberam a força que eu tenho e eu próprio o aprendi. Nem todos o fizeram e muita actividade sobrou na cidade? Sim, claro! Mas essa fraqueza é a maior debilidade da nossa economia. Sabia? As muitos pequenas empresas são mais de 250 mil e patrão não faz greve contra si mesmo (embora por vezes tal fosse conveniente, para um país mais decente). O comércio emprega sem direitos nem preceitos. Até pode dizer (e diz): "se não vieres trabalhar amanhã, escusas de aparecer mais". Não há vínculos contratuais.
Greve. Que ganho eu com isso? Talvez o reconhecimento de que o país sou eu e eu sou este país, pois quem vive à custa do meu trabalho parece estar a mais. Talvez comigo resolvam falar, discutindo o meu futuro e, se ele tem que ser duro, que o seja igualmente para toda a gente... A greve foi bem sucedida? Não sei ainda, mas fiquei com esta lição aprendida. Tenho força e devo usá-la. Usá-la-ei até que esta politica seja mudada. Já pouco tenho a perder, ou quase nada!