Escrever foi sempre um desejo e um embaraço. Cedo gostei de brincar com as palavras. Por isso, esse desejo manifestava-se sob a forma de um prazer lúdico tão intenso como o era o do jogo do berlinde ou do pião. O embaraço, sentia-o por não saber exactamente sobre o que escrever. Valorizava tudo: um carreiro de formigas; a corrida entre um palito e um pau de fósforo, deslocando-se na corrente das águas das últimas chuvas, junto à berma do passeio da minha rua; as azinhagas e os pátios dos bairros pobres do Alto do Pina; o rosto do meu avô; o Tejo nos lugares que me foram pintados pelo Tapadinhas. Tudo. A tudo isso eu sempre dei muito valor e ficava embaraçado só de pensar que, quem me lesse, não lho reconheceria. Só nas aulas de português, por vezes, uma redacção de tema livre ou outro, servia como teste que o professor carimbava com um solitário "Bom". Só perdi essa timidez quando li "O Mundo dos Outros" e exactamente quando a voz se me embargou quando li, em voz alta à Teresa, aquele conto, "A Boca Enorme", sem outro assunto que não fosse um sentimento. Desde esse dia, marquei o José Gomes Ferreira, como minha referência. Escrevia-lhe as frases todas-assim-ligadas-como-uma-corrente-poética. Seguiu-se um período de cartas escritas 2 por semana mais de cem semanas a fio. Depois aconteceu um período longo, de quase 40 anos, de escrita cinzenta e pejada de palavras importadas e que eram, invariavelmente tituladas de relatórios. Relatórios disto e daquilo, destinados a aprovação de patrões ou "cavaleiros da industria" que não liam mais que uma página de um "Sumário Executivo"...
Há poucos meses, sem esquecer o meu poeta original, consenti que fosse Saramago a empurrar-me para novos textos. O tema escolhi-o eu: a natureza humana e os seus caminhos. A forma é a de um livro virtual de viagens. Para o escrever tomo recomendações sábias e que incluo na
HOMILIA DE HOJE
- "Aqui, cada um com seu desgosto e todos com a mesma pena."
- "...é o que as palavras simples têm de simpático, não sabem enganar."
- "O código genético disso a que, sem pensar muito, nos temos contentado em chamar natureza humana, não se esgota na hélice orgânica do ácido desoxirribonucléico, ou DNA, tem muito mais que se lhe diga e muito mais para nos contar, mas essa, por dizê-lo de maneira figurada, é a espiral complementar que ainda não conseguimos fazer sair do jardim de infância, apesar de multidões de psicólogos e analistas das mais diversas escolas e calibres que têm partido as unhas a tentar abrir-lhe os ferrolhos."
José Saramago in “Ensaio sobre a lucidez”
A natureza humana... assunto complicado...
ResponderEliminarMeu amigo.
ResponderEliminarCom Saramago a acompanhá-lo e a aconselhá-lo, não admira que todo o seu potencial literário venha ao de cima.
Compreendo-o bem porque aqui redescobri também, o prazer (esquecido por tantos anos) que tinha quando fazia as célebres redacções.
"Aqui, cada um com seu desgosto e todos com a mesma pena."
Beijinhos e boa semana, cheia de inspiração :-)
...."é o que as palavras simples têm de simpático, não sabem enganar".
ResponderEliminarÁs vezes, caro Rogério, às vezes...
Abraço
:)))
Caro Rogério
ResponderEliminarÉ de lamentar que hajam palavras que não se podem dizer, porque também não conseguem ser ouvidas, os humanos raça complicada!!!
Beijinho
Caro Rogério
ResponderEliminarEmbatuquei naquele acido impronunciável e bloqueei...
Pronto cada vez os seus textos são mais apaixonantes. Pena ter perdido aquele tempo todo a escrever relatórios. Quem sabe.
Não sei sei se há alguma semelhança, mas faz-me lembrar o Carlos Paredes. Uma vida inteira a arquivar radiografias.
Abraço
A natureza humana é complexa, complexa, complexa.
ResponderEliminarAté logo.
Eu gosto das palavras simples, pois atingem plenamente seu objetivo, sendo que as metaforas nos possiblitam outras interpretações...
ResponderEliminarabraços
Também eu o digo "cada vez os seus textos são mais apaixonantes."
ResponderEliminarEstava convencida que era um texto do Saramago, com avô e tudo, só quando cheguei à Teresa é que compreendi que este belíssimo texto é do Rogério. Parabéns!
Afinal, o Rogério e a sua "amiga burguesa" têm algumas coisas em comum. Não o desejo de lutar por uma sociedade mais justa, mas a admiracão por certos poetas, e desta vez é o José Gomes Ferreira.
Abração e agora vou navegar pelos seus caminhos...
a simplicidade dá muito trabalho...
ResponderEliminarabraços
Esta é uma casa de "gente boa". Encontro palavras "que não sabem enganar"... e gosto!
ResponderEliminarL.B.
Amigo Rogério!
ResponderEliminar"Quanto mais inteligente é um homem, mais originalidade ele descobre nos homens. Pessoas ordinárias não descobrem nenhuma diferença entre eles.
Blaise Pascal"
Parabéns pelo texto!
Escrever foi então... desde sempre (no meu caso, seguramente muito mais)... uma enorme vontade e um grande embaraço.
Ainda bem que para ti essa vontade vingou e o embaraço perdeu-se. A prova está aqui!
Concordo com Saramago, as palavras simples não sabem enganar.
"Quando nos fazemos entender falamos sempre bem.
(Jean Molière)"
Desculpa por estar em falta contigo.
Já estou melhor e de casa arrumada.
Beijinhos
Ná