Com muitos livros se constroem edifícios. Eu construí o meu e um dia destes mostrei os meus alicerces... Faço questão em ir, sempre que me ocorre ou quero assumir, mostrar outros livros que me dão paredes, umbrais de portas, telhado, vidraças e outras peças de tantas e tantas que me dão estrutura.
Quando soube que a poesia da Lídia tinha sido premiada, fui a correr dizer-lhe que seu livro faz parte desse meu edifício, que é uma peça da minha janela e que vejo o mundo através dela.
Dei-lhe os parabéns. E ei-la, mulher inteira, desvendado-nos o nome e o rosto, disposta a não continuar a esconder-se atrás da sua obra. Parabéns Lídia.
"Lidos os jornais, embolam-se-me as ideias na boca. Que querem? Não tivesse eu bebido só água e… A chuva lá fora, descarta-se rapidamente da poesia. Não passa de decoração dispensável e o frio, cá dentro, vem da falta de uma porta de saída desta sórdida realidade: o caos travestido de ordem. Tento escrever. Abro o meu caderno e a página que devia ser branca e lisa como sempre é, toma-se de obscuras tonalidades, de rugosas texturas. Um lodaçal autêntico, gente que passa abstracta, sombras, medos, desassossegos, ameaças, algas que se entrelaçam, contorcido desespero e, de repente, um crocodilo aberrante sai, em corrida desenfreada pelo caderno afora. A cauda viril, ameaçadora, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. - Monstro – cogito - quem te deu aqui entrada? Em lágrimas, o malvado, ri de mim, grosseiro, pleno de impenetrabilidade e falsa sensaboria.
E, para além desta negra página, deste crocodilo, nenhum outro animal, palavra ou frase se adivinha nas folhas do meu caderno, hoje, depois de lidos os jornais. Fecho-o devagar, ainda na esperança de ver sair de dentro dele, um caçador de crocodilos bem equipado. Mas não!
Música! A música é sempre um lugar seguro. Inacessível, (por enquanto), a crocodilos invasores dos domínios alheios. Ligo o aparelho – Chopin! Entre reflexões despropositadas penso que talvez devesse procurar uma loja de consertar pensamentos ou, até, indo mais longe, comprar um novo mecanismo de pensar, mais actualizado, mais em conformidade com os tempos que correm. Disseram-me que aqueles que já actualizaram o seu software pensante, pensam agora que, para melhor viver, o melhor é não pensar. Incorporaram em si uma espécie de dispositivo anestesiante, indolor e muito confortável.
Gosto tanto desta música. Nem triste nem alegre. Música apenas com a evidência da vida pelo meio: o caos e um crocodilo enorme a destruir tudo, à sua passagem. Da janela vejo as árvores trémulas, tristes… - Porque estais tristes? - Não sabem a resposta. E, só de não saberem a resposta, parecem-me ainda mais tristes.
Esta música!.. Vou ouvi-la até que me entre na circulação do sangue e me invada, de rompante, o coração, vivificando-o. É preciso um coração vivo quando, à solta, perto de nós, há um crocodilo cruel para abater.
Não, caro leitor! Nada disto é ficção. Não lhe disse já que é real a falta de uma porta para fugir à realidade? Impossível continuar a jogar às escondidas com ela. Sonhar, é agora um delírio por demais palpável e, um delírio nestas condições, perde a insubstancialidade que o nomeia. "
Lídia Borges, "À boca de cena"
Para que saibam, ela é uma Seara de Versos, mesmo quando escreve prosa.
Caro Rogério
ResponderEliminarQue mais há para dizer? Pronto "gosto" do que a Lídia escreve" (do pouco que li) do prémio merecido e da divulgação que o meu caro faz.
Abraço
Rodrigo
Não lhe conhecia a prosa!
ResponderEliminarAgradeço a divulgação!
Bem merecido!
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ResponderEliminarAlgumas das suas críticas (na forma de comentários) fizeram-me escrever melhor.
Obrigada Rogério.
Um beijo
Já tive oportunidade de lhe dar os meus parabéns...apesar de a conhecer só destas lides. Mas sempre gostei do que li.
ResponderEliminarAbraço
Que bela homenagem, Rogério!
ResponderEliminarParabéns a ambos: à Lídia pelo prémio, a si pela sensibilidade.
Nos pequenos detalhes se conhece um grande carácter.
Beijinhos
Bom Dia!
ResponderEliminarVim conhecer o seu blogue e, deparo-me com este belíssimo texto. Já tive oportunidade de felicitar a Lídia pelo prémio obtido.
Deixo um abraço e o desejo de um óptimo fim de semana...
ResponderEliminarÉ um acalento poder lê-la, um aconchego decifrar-lhe as palavras.
Beijo
Laura
Deixo os meus parabéns à Lídia. :)
ResponderEliminarBoa tarde! :)
Um belo poema dela
ResponderEliminar"Há um tempo em que tudo se alheia de artifícios.
A vida cansa-se de metafísicas, doutrinas, filosofias
revela-se nua…. sangue, carne, ossos.
Por exemplo:
aquela mulher de corpo mirrado e olhar inquieto
sentada na berma da existência
às portas da cidade… Que sabe ela dos poemas, dos poetas,
dos versos semeadas em terra de não dar pão?
Do vento, desconhece cantigas e carícias,
o vento, … um bicho que uiva,
um frio que corta e gela nas noites sem teto e sem solução.
E do amor? Ah!... Do amor, perdeu-se…. sem volta
mas, crê ainda que seja ele a encontrá-la.
[ Isto sabe-se pelo sorriso tresloucado
que lhe vem à boca, aqui e ali.]
Uma noite, subitamente, quando a sombra se fizer faca
pronta a desferir o golpe de misericórdia,
uma mão tomba-lhe……cálida
no ombro: vamos, isto não é lugar de gente!
E a morte a virar costas, a vociferar …. insolências
de braços caídos, rompendo a bruma, praguejando
Porque há um tempo,
em que o sonhar é a única forma
de se ficar vivo.
Tenho uma mancheia de verbos
insubmissos, fugindo da sua real condição… inutilidade
a incitar revoltas no meu rascunho
a morder-me os dedos em desvario
como se não fosse este um tempo
alheado de artifícios,
como se a vida não estivesse já
farta de metafísicas, doutrinas, filosofias..."
Lídia Borges
È fabuloso, o poema da Lídia que trouxeste ao Conversa Avinagrada! Não sei de qual dos dois mais gostar... se do poema, se do texto em prosa que me recordo perfeitamente de já ter lido... provavelmente na Seara dela... disso já não estou tão segura... também poderia ter sido aqui.Mas é um daqueles textos que não se esquecem nunca.
ResponderEliminarAbraço grande!
Excelente Poema! Grata pela visita ao meu espaço.
ResponderEliminarAbraço amigo!
A nossa Lídia
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