21 dezembro, 2012

Um conto de Natal (que, como todos, não acaba mal)

imagem "Morte e Vida" de Gustav Klimt 

"A morte voltou para a cama, 
abraçou-se ao homem e, sem 
compreender o que lhe estava a suceder, 
ela que nunca dormia, sentiu que o sono 
lhe fazia descair suavemente as pálpebras.
No dia seguinte ninguém morreu." 
Saramago - As intermitência da morte" - pág. 214


Se a Morte tivesse qualquer sentimento, como em tempos terá sentido, esse sentimento seria o da surpresa aliada à sua confessada impotência de, por si mesma, acabar com a vida. A surpresa tida foi pela manifesta ignorância do ministros. Mas foi da sua impotência em satisfazer o governo que falou demoradamente, naquele conselho onde o primeiro ministro a quis presente. "É a vida que determina quando intervenho", disse a Morte. Disse-o mais que uma vez e ilustrou que é coisa humana o acontecer encurtar-lhe a chamada. Mesmo que o último sopro de vida seja coisa natural, ela tem de esperar que tal aconteça para cumprir a sua tarefa. Explicou que não se desespera pela espera, nem se apoquenta se a vida se prolonga. Todos os ministros a escutaram, contrafeitos por não terem, como esperavam, uma colaboração a contento. A um dado momento, a Morte deixou insinuar que apenas tinha alguma capacidade de persuasão aos vivos deprimidos para se deixarem levar por ela. Gostaram dessa parte e logo o  ministro da coisa social lhe estendeu uma pen, dizendo-lhe. "Tem nesta base de dados milhares de coitados a quem cortámos a pensão, a quem lhes vai faltando a sopa e o pão, a todos cortaram a electricidade por falta de pagamento e a água ser-lhes-á cortada a qualquer momento, faça o seu melhor".

A Morte saiu à rua pronta para cumprir a tarefa prometida de ir, na medida dos seus saberes, acabando com a vida. E assim fez, seguindo a lista que o ministro lhe dera. O tempo foi-se passando e com a sua forte persuasão aumentaram os suicídios, os parricídios e muitos outros crimes de sangue. Alguns nomes da lista eram apenas convencidos a deixarem-se morrer, e morriam. Quando restava um único nome na lista, para toda a sua missão se considerar cumprida. dispôs-se a ir convencê-lo a acabar com a vida.

O homem estava sentado no escuro, pouco se incomodando com ele. Conhecia todos os cantos à casa, a disposição de todos os móveis e a colocação de tudo o que precisava mas que deixou de usar. Não era a escuridão que o incomodava. A fome ia-a enganando como podia e a sede era saciada com a chuva que ia apanhando numa bacia, numa jarra e numa panela, colocadas, uma em cada janela. Ia sobrevivendo ocupando o pensamento com coisas de não pensar. O homem levantou-se e numa decisão, não pensada, tomou um destino impensável: ser um sem-abrigo. Na rua, andou, andou, andou e os pés e pernas lhe incharam de tanto andar. Perdeu a noção dos dias. Perdeu a noção de tudo. Fugia de todos, até dos outros sem-abrigo. A Morte, que o seguia, sentindo a falta do luar, resolveu ser a altura certa para o abordar. "Que vida esta, aquela que tu levas?" e o homem não lhe respondeu. "Porque não lhe pões fim?" e o homem não lhe respondeu. "Ninguém suporta uma vida assim..." e o homem parou, olhou a morte de frente e, sorrindo sem lhe responder, seguiu-lhe a sugestão. Seguiu em frente, virou à direita, meteu-se pela rua estreita e depois por outra, larga, que dava para a marginal. Atravessou-a, lentamente, direito ao penhasco que havia ali, sobre o mar. Nem ouviu o que se teria ouvido se mais gente por ali andasse. E o carro com travões a fundo e guinando para um dos lados, não evitou o embate...

Uma luz clara inundava todo o branco ambiente que se ia alegrando com os tons coloridos das luzes que iam piscando, de um canto. Abriu os olhos e deu com uma cara de anjo que o não era pois os anjos, que se saiba, não usam estetoscópios pendurados em pescoços bem torneados. A médica sorriu-lhe, "Livrou-se de boa, dorme há três dias. Amanhã, se tudo correr bem, já pode ter alta" e quando ia a sair regressou "Há uma senhora, que tem vindo todos estes dias, deixou-lhe este recado." e estendeu-lhe um papel perfumado. Dizia:
"O governo foi demitido depois da sublevação impetuosa dos sem-abrigo... tu eras o último da lista... Não te incomodo mais. Incomoda-me tu a mim." e tinha um número de telefone de uma rede fixa, no fim.

Rogério Pereira
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Atenção, o conto é meu
O que não pareceu a alguém que o leu

21 comentários:

  1. Curiosíssima sintonia! Este é um dos Saramagos que não cheguei a ler... namorei-o durante uns bons tempos, assim que começaram a publicitá-lo, mas nunca cheguei a comprá-lo...

    Só agora entendo bem o teu comentário à minha brincadeira em sextilhas...

    Abraço!

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  2. Amigo Rogério, gostei e acho que até sou capaz de o adquirir, pois fiquei curiosa. Passei para lhe desejar um Natal muito feliz, Com muita saúde, paz e muito amor, junto de seus entes queridos. Beijos com carinho

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  3. Eu li! Duas vezes!...
    Sempre que vou ao correio penso na cartinha violeta. :)

    Obrigada por esta visão tão positiva que "aquece".

    FELIZ NATAL!

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  4. Finalmente consegui que a ligação estabilizasse um pouco... volto para deixar, muito publicamente, a confissão de ter tomado o teu conto por uma transcrição da obra do Saramago... penso que me desculpas por isso, eheheh... e dou-te os meus parabéns!

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  5. Maria João,

    Não são precisas desculpas depois de me teres dado
    um elogio tão... rasgado

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  6. Adoro Klimt
    Este livro do Saramago é um dos mais deliciosos e já o devo ter oferecido a uma boa dúzia de amigos
    O teu conto é muito interessante!
    Pergunto-me, com um sorriso largo, o que nos faria a troika se a morte dormisse uma semana abraçada ao homem...

    :)
    Beijo.

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  7. Sempre bom vir aqui.

    Desejo de Muito Amor, Luz e Paz
    BShell

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  8. Intermitências da morte, adoro este livro que apesar do inusitado da ideia em muito se aplica aos dias cotidianos.
    Muitos bjs querido amigo

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  9. Nesta quadra festiva venho desejar um

    ……………¨♥*✫♥,
    ………,•✯´………´*✫
    …….♥*……………. __/\__
    .….*♥…………….....*-:¦:-*
    …¸.•✫…… FELIZ NATAL!!!!
    ...*♥...........................¨♥*✫♥........
    .,•✯´................................,•✯´.......

    ...............................Muitos beijinhos (^^)

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  10. Belíssimo conto Rogério, este sim um conto de Natal, com outros brilhos e outras lutas, traduzindo bem a expulsão dos "vendilhões do templo", que temos por aí, essa sim terá que ser feita com muito amor e entrega, com muita vida e não com historinhas de ilusões.

    Se Jesus viesse hoje ao mundo e a este nosso país, seria com toda a certeza um dos autores e talvez o comandante da "sublevação impetuosa dos sem-abrigo..." desta sua história tão "real", pena que a maior parte dos religiosos não lhe sigam todos os exemplos de sublevação e se entreguem mais à submissão, que ele nunca apreguou.

    Fiquei deslumbrada por este conto.

    Beijos e que tenhas um bom e aconchegante Natal, ainda que pensando nos outros, mas por isso mesmo, por ser esse o espírito de Natal e de todos os dias, que a vida te traga em dobro o que desejas para os outros.
    E há sempre retorno, quanto mais não seja o prazer do dever cumprido, para connosco e para com a humanidade.

    Beijos
    Branca

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  11. Meu amigo, sabe que já há tempos que ando a pensar que um dos objectivos deste des(governo) é matar-nos, a uns mais devagar que a outros.
    Uma sublevação dos sem-abrigo, até consigo visualizar e não acaba mal :)

    Excelente!

    beijinho

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  12. Neste país de alternâncias
    a precisar de alternativas
    não há morte nem princípio

    mas os sem abrigo estão em riste

    Belíssimo o teu texto


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  13. Meu amigo Rogério

    Mais avinagrado que o meu, mas de uma realidade infelizmente muito verdadeira.



    Que o espírito do verdadeiro Natal renasça nas mãos de uma criança

    Os meus votos de Feliz Natal junto de todos que te são queridos e
    que a felicidade e o amor estejam sempre presentes na tua vida.

    Um beijinho com carinho
    Sonhadora

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  14. este é um conto verdadeiramente seu, Rogério


    cada um de nós, escreve segundo a sua natureza, as suas convicções, as suas esperanças

    e isso é bom, porque a morte por encomenda de ministros, não suporta a força verdadeira e legítima

    um abraço

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  15. E que conto!
    Feliz Natal, Rogério!
    Abraço

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  16. ✫✫✫
    Passei para conhecer o seu blog.
    É incrível sua criatividade e o seu poder de transformar realidade em literatura.... parabéns!!!

    ✫✫✫
    "Que o Natal seja mais um momento
    em que as pessoas acreditem
    que vale a pena viver um
    ANO NOVO!!!"

    Feliz Natal!!!

    (⁀‵⁀,) ✫✫✫
    .`⋎´✫✫¸.•°*”˜˜”*°•.✫
    ✫¸.•°*”˜˜”*°•.✫✫
    .•°*”˜˜”*°•.✫✫✫ MERRY CHRISTMAS!

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  17. Retrato real de um país, onde diria "nem a morte" quer ficar.
    Muito bem.

    Um Bom Natal.

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  18. Pelo andar da carruagem o regime atual só descansará quando já não houver capacidade de resistência.
    É flagrante que nos estão a forçar ao desânimo completo, a baixarmos os braços e entregarmo-nos nas mãos dum salvador escolhido pela sua cor laranja azulada, ainda que de sabor amargo como o fel.

    E aí continuam, implacavelmente, pela calada, do dia após dia, festas da tradição, comprimidos para apagar a memória, shots para colorir as mentiras constantes, a insinuante tática de se ir largando, suavemente, fracionadamente, o fedor das trafulhices gigantescas com que fomos roubados indecentemente nos últimos anos.

    Tudo isto para tentar que a fatura seja paga por terceiros, que não pelos devedores/beneficiários.

    E vamos permitir que a "morte" nos ceife a esperança e a vida?!...

    Um excelente conto de natal...
    Mas que me parece que vai acabar mal...
    que ainda não chegou ao fim.

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  19. Muito belo seu conto, que aborda uma realidade sem conforto.
    Desejo-lhe um Natal de luz e paz, ao lado das pessoas que lhe são queridas, a ser vivido no real sentido da data. Abraços!

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  20. Consegui ler e ainda bem!
    Um belo conto e um boa maneira de sair do coma...

    Abraço

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